Construção de cultura inclusiva é ação contínua em escola paulistana
Forte parceria entre gestão, professores regentes e do AEE é uma das principais estratégias da equipe da Emef Cecília Meireles para não deixar ninguém para trás
A construção de uma cultura inclusiva, fundamental para a efetivação de uma educação em que todos os estudantes participem e aprendam, exige a estruturação de ações por parte da gestão e o envolvimento de toda a comunidade escolar. Conseguir isso demanda um trabalho contínuo, com avaliações frequentes do que está sendo realizado para que ajustes sejam feitos ao longo do tempo. A Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Cecília Meireles, localizada na zona leste da capital paulista, está nesse processo de construção, com gestores e professores cientes de que há conquistas a comemorar e desafios a encarar.
Um pilar fundamental para essa construção é a articulação do trabalho entre professores regentes e os docentes do atendimento educacional especializado (AEE), serviço que visa identificar e eliminar as barreiras para a plena participação dos estudantes com deficiência, transtorno do espectro do autismo (TEA) e superdotação ou altas habilidades. Neste ano, a escola atende mais de 800 alunos do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental, sendo que 63 são público-alvo da Educação Especial. Fortalecer esse trabalho colaborativo demanda que a experiência de uma docente alimente o trabalho da outra, de modo que o todo seja coerente e siga na mesma direção: potencializar a participação e o aprendizado de cada estudante.
Na Emef Cecília Meireles, muito dessa articulação ocorre durante as horas coletivas de trabalho obrigatórias e opcionais, nas quais os educadores podem participar de formações continuadas e de momentos de troca entre os pares.
A fim de conseguir fazer com que as articulações aconteçam nesses diferentes horários, uma personagem precisa ter participação ativa: a coordenação pedagógica. A equipe conta com duas coordenadoras: Alessandra Pereira dos Santos, que acompanha as turmas da tarde (3º, 6º e 7º anos) e do integral (1º e 2º anos) e Sarah Nascimento, junto das turmas da manhã (4º, 5º, 8º e 9º anos).
Segundo Alessandra, semanalmente as duas coordenadoras se encontram para discutir as situações que vivenciam com suas turmas e se manter atualizadas sobre o andamento das estratégias. Ela afirma ser papel da coordenação fazer com que todos estejam a par do desenvolvimento de cada estudante. “A coordenação precisa fazer as informações circularem entre os professores, além de observar e apoiar a construção e a execução do planejamento da equipe docente.” Daí a importância das trocas ocorridas nesses horários individuais e coletivos e também durante as formações. “Temos de nos reunir, compartilhar o que sabemos sobre o estudante e discutir, usando exemplos e referências, estratégias para que ele possa ter direito à aprendizagem. É necessário fazer com que os docentes vejam diferentes possibilidades e acreditem que todo aluno tem potencial, independentemente da deficiência”, afirma.
Para que os professores consigam conhecer e planejar melhor as estratégias durante a entrada de novos estudantes, as coordenadoras mantêm uma boa relação com as escolas de Educação Infantil do entorno. Isso permite o recebimento de relatórios descritivos, que trazem informações essenciais sobre o desenvolvimento das crianças, suas necessidades pedagógicas, os acompanhamentos realizados durante o período em que elas estiveram naquela unidade e as estratégias que podem ser consideradas agora que as crianças vão para o Ensino Fundamental. “Essa troca de informações é essencial para que os educadores tenham um olhar mais atento e preparado para acolher as crianças desde os primeiros dias de aula, assegurando um ensino inclusivo e alinhado às especificidades de cada um”, comenta Alessandra.
As coordenadoras também têm a responsabilidade de orientar, acompanhar e promover ações para incluir os estagiários de pedagogia e de cursos de licenciatura no desenvolvimento das atividades curriculares, buscando que a atuação deles ocorra de forma articulada com a dos professores.
O AEE em prática
Na Cecília Meireles, o AEE conta com uma sala de recursos multifuncionais (SRM), equipada com materiais pedagógicos e recursos de acessibilidade. Quem está à frente do serviço é Iara Costa do Santos, que iniciou a sua trajetória no atendimento há dois anos, na própria escola. “Estive em sala de aula por mais de dez anos e me interessei pela Educação Especial, fui me especializar e me apaixonei pela área”, conta a professora do AEE.
Iara realiza dois tipos de atendimento: o AEE no contraturno e o colaborativo. No primeiro, ela recebe as crianças na sala de recursos no período oposto ao horário regular de aula. No colaborativo, a especialista fica em sala junto com o professor regente durante um período de aula e observa os estudantes público-alvo da Educação Especial. “Em ambos os casos, busco identificar as barreiras existentes para que todos possam acessar o currículo e desenvolver a autonomia. Em cima disso, o professor regente e eu montamos um plano de ação para que a criança consiga participar plenamente das atividades. Já na sala de recursos, trabalho as necessidades de desenvolvimento do aluno, usando aquilo que vi em sala e o que os professores compartilham nos momentos de articulações”, explica.
“Temos, por exemplo, um aluno com TEA que não é verbal, o que nos colocou o desafio de descobrir qual a forma de comunicação dele. Nesse caso, trabalhamos com imagens. Para um outro estudante, a barreira está no relacionamento com os demais. Com ele, faço o atendimento na SRM em um grupo pequeno, de três ou quatro crianças. Eu crio jogos coletivos nos quais ele vai exercitando o convívio com os pares”, exemplifica Iara.
Existem alguns processos que a professora segue para conhecer melhor cada criança atendida. Depois do acolhimento feito pela coordenação, as informações são compartilhadas com Iara, para que ela tenha uma noção de quem vai receber e possa começar o estudo de caso. Para complementar, ela conversa com os familiares do estudante para entender como é a rotina da criança fora da escola. “Eles nos contam do que aquele aluno gosta ou não, informam se faz uso de algum medicamento, quais serviços de saúde utiliza e se ele tem algum foco específico, como gostar de telas ou apego a algum brinquedo ou espaço”, explica Iara. “É um momento fundamental para conhecer a família mostrar o que é o AEE e explicar que a colaboração deles é essencial para que o desenvolvimento aconteça”, completa.
A essas informações iniciais, será somado tudo que a própria professora observa durante suas interações com os estudantes. Ela conta que, em seus atendimentos, realiza registros em fotos e vídeos, com autorização dos familiares, para documentar a evolução de cada um. “Por meio desses registros, posso fazer a avaliação desse estudante e rever o planejamento inicial, além de mostrar o desempenho deles para os demais professores e familiares”, explica.
O planejamento acontece em colaboração com o professor regente por meio do plano de AEE, um documento cadastrado digitalmente no Sistema de Gestão Pedagógica (SGP) da secretaria de educação. Nele são registrados os objetivos de aprendizagem, as estratégias escolhidas e a descrição das ações realizadas. “Montamos um cronograma de trabalho usando as observações feitas em sala de aula e na sala de recursos. Para isso, a colaboração do professor regente se mostra essencial, tanto na elaboração quanto na execução no dia a dia”, afirma Iara.
“Aqui na escola, conseguimos estabelecer uma boa parceria com os professores regentes, tanto dos anos iniciais como dos anos finais. Isso se deve muitos a esses encontros coletivos e formativos. No ano passado, por exemplo, aproveitei o tempo de formação para ressaltar a importância da inclusão e da nossa parceria na aprendizagem dos estudantes”, conta a professora do AEE. Além desses momentos em grupo, Iara sempre reserva um dia da semana para conversas individuais com os professores regentes e com familiares.
Maria Cristina de Oliveira, professora regente de uma turma do 4º ano, afirma que essa colaboração com a docente do AEE auxilia a construir as estratégias pedagógicas. “A presença da professora do AEE ajuda bastante, principalmente quando ela está em sala de aula. Por mais que eu queira, nem sempre consigo observar somente aquele aluno da Educação Especial, pois tenho uma turma toda que precisa de atenção. Então, ela entrar e ter esse foco favorece o entendimento de coisas que passam desapercebidas e que podem servir de subsídio na hora de montar o plano de AEE, que é um documento que contribui no meu planejamento também”, comenta.
A relação com as famílias
Para oferecer uma educação inclusiva, a gestão da escola tem ciência da necessidade de construir uma boa relação com as famílias. De acordo com Michelle Silva, diretora da Emef Cecília Meireles, quando um novo estudante chega à unidade, a equipe realiza o acolhimento, tendo como um dos objetivos deixar os familiares a par da rotina da escola. “O que marca a nossa recepção é a conversa e a escuta. Queremos que todos entendam que estamos aqui para que a experiência daquela criança ou adolescente seja a melhor possível. Quando se trata de parentes de estudantes com deficiência, sabemos que a escola é um refúgio.”
Depois, o diálogo é mantido em reuniões periódicas com todos os pais e responsáveis. Para as famílias dos alunos da Educação Especial, Michelle quer ampliar as possibilidades de encontro e retomar o “café com as famílias”, um momento de troca que reunia os responsáveis pelos estudantes, a gestão escolar e a professora do AEE. Essa ação foi realizada em 2023, quando Michelle esteve pela primeira vez na direção – ela ficou um ano trabalhando como supervisora na SME e agora retomou o posto. “Fazíamos uma apresentação do trabalho que era realizado com essas crianças e mostrávamos seus avanços. Uma ideia que queríamos transmitir é que não se deve comparar um aluno com o outro. Compare o seu filho com ele mesmo”, conta a diretora.
Outro ponto que ela destaca está no fato de mães, pais e demais parentes poderem trocar experiências. “O café serve como uma rede de apoio para eles. Sabemos das inúmeras dificuldades impostas pela sociedade. Aqueles que têm mais experiência podem compartilhar as estratégias que adotaram para os que ainda não sabem lidar com certas situações. Por isso se torna um momento de fala e escuta. Uma coisa é você chamar o pai e ficar só falando. Outra coisa é promover um bate-papo.”
A previsão da retomada do café está para o primeiro semestre de 2025, após os planos de AEE estarem prontos e iniciados.
A política de aproximação com as famílias para estabelecer uma relação de colaboração é compartilhada pela equipe docente, que cria suas próprias estratégias de diálogo. A professora Maria Cristina, por exemplo, gosta de usar a agenda escolar, algo comum em turmas dos primeiros anos, como um canal de comunicação para atualizar mães e pais sobre o que acontece na escola e para receber novidades em relação à criança. “Saber de fatos importantes do aluno, que fogem aos muros da escola, nos ajuda a entender mudanças de comportamento e de desempenho em sala de aula. Por isso, nas reuniões com as famílias, reforço a importância de ser um canal de duas vias”, conta.
Para a educadora, o diálogo com a família permite conhecer a criança como ela é, sem se apegar a algum laudo médico. “Acho que às vezes o papel traz alguns estigmas, por mais que eu seja uma professora que tente separar uma coisa da outra. Não podemos cair no erro de definir alguém pela deficiência. Cada pessoa é diferente da outra. Conviver com o aluno e dialogar com aqueles que vivem com ele fora da escola nos ajuda a desmistificar percepções equivocadas”, afirma a educadora, que também é formada em psicologia.
Uma escola diversa
Entre o público atendido na Emef Cecília Meireles, mais de 200 crianças são migrantes ou filhos de migrantes, a maioria oriunda da Bolívia. A escola se sente preparada para receber esses estudantes, mas entende que há desafios no dia a dia. De acordo com Michelle Silva, o corpo docente segue as orientações de promover a valorização das diferentes culturas dentro dos componentes curriculares e até mesmo na fachada da escola – no muro de entrada, há imagens de crianças de diferentes etnias. “Como parte da estratégia pedagógica, buscamos apresentar textos, imagens, brincadeiras, filmes, pinturas e discussões sobre outras regiões e países, em especial daquelas da origem dos migrantes que recebemos”, diz.
Embora haja esse cuidado, a gestora relata a existência de situações de conflito entre os estudantes. Por conta disso, a escola criou um grupo de mediação de conflitos formado por estudantes, funcionários de apoio, familiares e equipes docente e gestora. Os encontros acontecem mensalmente para atuar na prevenção, com bastante participação das assistentes de direção, que realizam as formações nas Diretorias Regionais de Ensino (DREs) da SME. “Esses encontros servem para debater estratégias a serem trabalhadas no combate ao preconceito por parte de qualquer pessoa, seja estudante, educador, gestor ou familiar. Mas, quando acontece algum conflito, a comissão se reúne imediatamente para conversar e decidir formas de atuação, de acordo com a situação.”
Michele valoriza essa comissão como um importante caminho para enfrentar o preconceito em um espaço que deve ser de respeito, reconhecendo que seu público é diverso. “A inclusão na escola envolve focar na aprendizagem de todos e na construção de um ambiente em que todos saibam respeitar as diferenças existentes”, afirma.
Mudanças e desafios
O processo de construir uma escola inclusiva, como dito no início, é contínuo. Na Emef Cecília Meireles não é diferente. A equipe gestora reconhece que ainda há o que mudar para oferecer um ensino de qualidade a todos. Um dos pontos é a acessibilidade arquitetônica. A escola tem rampa na entrada principal, mas falta um elevador ou rampa que conecte os dois andares do prédio e permita o acesso às salas de aulas e aos outros espaços do piso superior. “O prédio é antigo, construído em uma época em que a acessibilidade não era considerada. Nós lutamos junto à secretaria para conseguir construir o elevador. Estamos com licitação aberta e devemos ter em breve o início das obras”, diz a diretora.
Outro desafio é administrar o atendimento aos estudantes com deficiência enquanto a equipe espera pela segunda professora do AEE, que poderá dividir a demanda com a professora Iara. De acordo com Michelle, o processo de designação da nova docente está em andamento.
Por outro lado, um avanço comemorado é o compromisso de ter uma escola inclusiva registrado no projeto político-pedagógico (PPP), que foi elaborado em consonância com a proposta curricular do município, que busca a equidade no acesso, na permanência e na aprendizagem de todos os estudantes.
Outro princípio é a gestão democrática. A escola conta com vários canais de participação para a comunidade, como conselho de escola, associação de pais e mestres, reuniões periódicas com as famílias e grupo de mediação, entre outros. “As famílias e a comunidade colaboraram com a construção do PPP, assim como participam dos processos decisórios. Questões como a aplicação de recursos financeiros, a escolha de profissionais e a implementação de projetos são discutidas de forma transparente e colaborativa, sendo deliberadas pelo conselho de escola. Dessa forma, promovemos a corresponsabilidade e fortalecemos a participação de todos na construção de um ambiente educacional mais equitativo e eficiente”, afirma a diretora.
“Nosso objetivo é envolver todos em torno de um mesmo propósito. Na Emef Cecília Meireles a educação inclusiva é prioridade. Sabemos que ela tem de acontecer, é um direito. Entendemos a importância que a escola tem para a comunidade, as famílias e, principalmente, para a vida dos estudantes. Temos o desafio e o estamos encarando”, enfatiza Michelle.
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Raio-X da escola
A Emef Cecília Meireles está localizada no bairro do Cangaíba, zona leste da cidade de São Paulo. Sua infraestrutura contempla 15 salas de aula, uma sala de recursos multifuncionais (SRM), refeitório, laboratórios de informática e de ciências, parquinho, sala de jogos, sala de leitura, pátio interno e externo e quadras de esportes.
A escola atende estudantes que vivem no entorno, muitos vindos das comunidades do Caixa d’Água e do Jardim Piratininga. Ao todo, 819 estudantes estão matriculados do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental.
O quadro de funcionários é composto pela diretora, duas coordenadoras pedagógicas, 14 estagiários, duas auxiliares de vida escolar (AVE), quatro funcionários da alimentação escolar, dez funcionários da limpeza, quatro auxiliares técnicos de educação (ATE) que atuam na secretaria, seis auxiliares técnicos de educação na inspetoria e 73 professores.