“A coordenação pedagógica tem de ser um farol crítico”

Para Marcos Cezar de Freitas, autor de livro sobre o tema, esse gestor é o responsável por promover discussões e concatenar as ações desenvolvidas na escola, orientando todos a trabalharem de maneira entrelaçada para formar um ecossistema inclusivo

Um homem branco, de bigode, cavanhaque, óculos com aro azul e boina bege, veste blusa bege com camiseta branca por baixo. No fundo está uma estante de livros. Fim da descrição.
Marcos Cezar de Freitas foi professor da Educação Básica e, desde 1998, atua no Ensino Superior, na graduação e pós-graduação, desenvolvendo pesquisas relacionadas ao universo da educação inclusiva. Crédito: Acervo pessoal

“A coordenação pedagógica é um dos fatores imprescindíveis para que a escola possa ser concebida, governada e vivida como um ecossistema inclusivo”, diz Marcos Cezar de Freitas no livro “Educação Inclusiva e Coordenação Pedagógica”, da Editora Cortez. Isso porque esse profissional deve ser o responsável por concatenar as ações desenvolvidas pela escola, zelando para que a organização de tempos e espaços, a articulação e as interações entre as pessoas e as propostas e estratégias sigam as premissas de uma educação inclusiva, na qual tudo e todos se entrelacem formando uma teia.  

Nessa lógica, em que o ambiente escolar funciona como uma teia ou ecossistema, tudo é pensado para garantir a permanência e a aprendizagem de todos os estudantes, sem exceção. E para isso o trabalho da equipe é interligado, sem espaço para o que Marcos chama de “mundos paralelos”, nos quais estaria concentrada, por exemplo, a atuação com os alunos público-alvo da Educação Especial: pessoas com deficiência, transtorno do espectro do autismo (TEA), superdotação ou altas habilidades. 

Essa separação ainda é uma realidade em muitas instituições de ensino. Marcos, que é coordenador do projeto Educação Inclusiva na Escola Pública (Educinep), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e professor titular do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma universidade, realizou e coordenou várias pesquisas com educadores de escolas públicas da capital e da região metropolitana de São Paulo.  

Nessas interações com os educadores, cujas conclusões estão registradas no livro, ele observou que, em muitos casos, há uma hierarquização dos estudantes em dois grupos: os alunos e os alunos de inclusão. Neste segundo, estariam aqueles público-alvo da Educação Especial.   

A essa divisão se soma uma recorrente desresponsabilização dos professores regentes em relação aos estudantes que frequentam o atendimento educacional especializado (AEE), um direito estabelecido por lei para crianças, jovens e adultos que são público-alvo da Educação Especial (leia reportagem que detalha o que é esse serviço). Nesses casos, a responsabilidade é transferida exclusivamente para o professor do AEE. 

É a coordenação pedagógica quem tem um papel central para quebrar esse isolamento do professor do AEE e do que ocorre na sala de recurso multifuncionais (SRM) e agir para que todos da equipe escolar trabalhem efetivamente juntos e considerem esse grupo de estudantes parte indissociável da teia escolar. Na entrevista a seguir, Marcos detalha como isso pode ser feito, reflete sobre a função do AEE e discute como entender a diferença entre inclusão e acessibilidade, cuidar do vocabulário utilizado nas escolas e organizar formações continuadas pode influenciar a concepção do que é uma escola inclusiva.  

O que é educação inclusiva para você? E escola inclusiva?  

A educação inclusiva é um processo de reconfiguração de toda a escola, um movimento internacional que visa deixar para trás estratégias de segregação no que diz respeito a direitos educacionais. Por quê? A educação inclusiva reconhece que a diversidade é uma parte da solução, e não um problema. Por isso, um conceito fundamental é convivialidade, ou seja, refletir sobre quais desafios devem ser pensados, enfrentados e superados para garantir a convivência. Tudo para que a resposta a eles não seja “vamos separar roxo com roxo”.  

E o que seria uma escola inclusiva? Hoje há uma confusão generalizada entre inclusão e acesso e acessibilidade. Quando eu penso em acesso, refiro-me ao direito a entrar [na escola]: more onde morar, esteja onde estiver, venha de onde vier. Quando falo em acessibilidade, considero a partilha de recursos, estratégias e tecnologias assistivas. E quando penso em inclusão, necessariamente deveria ser: o que eu mudo no todo para que esse ecossistema seja inclusivo? Como conecto tudo e todos? A escola inclusiva é aquela em que eu sempre olho para o todo, como uma teia. 

Ou seja, para pensar a escola como um ecossistema, não basta as pessoas com deficiência estarem nela.  

A segregação é a separação por semelhança. Lógico que em determinadas circunstâncias históricas você compreende o que está acontecendo. Por exemplo, quando há uma pandemia e uma autoridade sanitária diz: ‘Todos os que estão contaminados vão ficar ali para não contaminar esse outro grupo’. Mas a vida não é permanentemente um jogo da ordem da saúde. A separação por semelhança é, na realidade, uma recusa tanto à educação, individualmente falando, quanto à educação inclusiva. O desafio histórico posto é o de pensar a convivência. Não dá para pensar a inclusão simplesmente como o oposto de exclusão, como ocorre em geral. Exclusão é um conceito importante, mas descreve a situação de quem não entrou [na escola]. É muito errado que existam pessoas fora, mas educação inclusiva diz respeito a quem entrou. Por isso, vários pesquisadores preferem termos como “excluídos no interior” ou “presença ignorada” para descrever aqueles que, mesmo dentro das escolas, são colocados em uma espécie de mundo paralelo, fazendo tudo separado dos demais. Ou seja, o meu direito não é apenas o de entrar. É entrar e permanecer. Acesso, acessibilidade e inclusão são conceitos fundamentais e interligados, mas não são sinônimos.  

A escola inclusiva necessariamente é aquela que oferece uma educação integral ou essa ampliação da jornada é um dos requisitos, mas não o único?  

Algumas escolas têm mais tempo para fazer mais coisas, mas não mais tempo para fazer o mesmo. Você tem mais tempo para ler dois livros, não mais tempo para ler as mesmas três páginas. E é impossível ensinar sem repetir. Isso não é um problema, porque diz respeito à arte de ensinar. Mas há um limite [para repetir], porque o professor tem apenas o tempo daquela aula. Se as repetições não dão conta, como eu me encontro novamente com esses saberes? Eu não me encontro mais. Eles nunca mais se reiteram, quando deveriam. Qual é a diferença entre repetição e reiteração? Reiteração é quando o mesmo reaparece de outro modo. 

Seria necessário que os professores dialogassem com a coordenação pedagógica para chegarem à conclusão de que tal ponto é um nó [no processo de ensino]. E pensarem: como reiterar isso? Nas outras disciplinas, em outros espaços escolares, por meio de, por exemplo, canteiros temáticos ou laboratórios de experiências etc. A escola de tempo integral corre o risco de ser apenas uma esticação [do tempo], quando deveria significar ter mais tempo para fazer o mesmo. Lógico, isso não impede acréscimos e tal. Mas a educação inclusiva é um processo permanente de adensamento. Toda vez que os professores conseguem diminuir o tempo de execução de algumas tarefas, com todos, não apenas para quem não consegue, há um adensamento inclusivo. Algumas tarefas não permitem? Não, não permitem. Mas muitas permitem. Então, a escola de tempo integral não é pré-requisito. Pensar o tempo é. 

Qual o papel da coordenação pedagógica para ajudar os professores a adotarem a reiteração no planejamento? 

De um modo geral, coordenadores pedagógicos têm sido tratados como apagadores de incêndio para resolver problemas de toda ordem. Ainda que isso seja necessário, porque não existe uma realidade que não vá trazer problemas, e eles têm suas urgências. Mas a coordenação pedagógica tem o papel de curadoria, de concatenar as ações pedagógicas dentro da escola. Ou seja, de se reunir com professores para discutir, por exemplo, questões que podem ser reiteradas ou espaços que podem ser utilizados em conjunto, ressaltando que reiterar não é fazer o mesmo, mas trazer o mesmo de outro modo.  

Essa ação curatorial exerce um papel pedagógico sobre o todo. Os temas da educação inclusiva são alusivos não a quem tem problema, mas à convivência. A coordenação pedagógica deve perguntar: o que podemos fazer juntos? O que temos em comum? E isso tem um grau de investimento quase zero no mundo escolar. Porque, quando as pessoas vão para o mesmo lugar, não quer dizer que estejam fazendo coisas em comum.  

Pode dar um exemplo? 

É uma tristeza entrar em uma escola e escutar muitos dizendo: ‘Eu tenho 30 alunos e mais quatro de inclusão’. Como assim? Se torna um estigma: ‘Eu sou criança de inclusão’. Nós ficaríamos indignados, e ainda bem que ficaríamos, se alguém dissesse: ‘Eu tenho 20 pessoas, mais quatro mulheres’; ‘Eu tenho 30 pessoas, mais oito negros’; ‘Eu tenho 15 pessoas, mais quatro bolivianos’. Isso é caso de polícia, é muito grave. Mas eu posso falar que tenho 20 pessoas, mais quatro de inclusão. A coordenação pedagógica também deve ser uma espécie de guardiã dos vocabulários imprescindíveis.    

Como o vocabulário utilizado nas escolas e até mesmo nas secretarias de ensino denuncia a existência de percepções equivocadas a respeito do que é inclusão?  

Os vocabulários utilizados demonstram uma clara confusão entre inclusão e acesso. E a repercussão disso é muito grande. Se você dialoga com gestores e pergunta se a escola que eles dirigem é inclusiva, a maioria vai afirmar que sim. Por quê? ‘Porque nós fizemos rampa, temos o AEE, temos computadores etc.’ Quando a pergunta é para os pais, a resposta é não. Mas por quê? ‘Porque não tem estagiário cuidando do meu filho.’  

Nós estamos em um momento em que aquilo que se entende a respeito do que falta para que tenhamos uma educação inclusiva, quando é obtido, não traz a educação inclusiva de fato. Esses recursos, serviços e profissionais dizem respeito a direitos, mas não têm a ver com educação inclusiva. Os vocabulários demonstram a hegemonia da compreensão da deficiência única e exclusivamente como, entre aspas, ‘problema de saúde’.  

Muitos professores alegam que não têm formação [para trabalhar com estudantes com deficiência]. Qual formação você acha que faltaria para você? A de um fonoaudiólogo? A de um neurologista? A de um fisioterapeuta? Nós, o tempo todo, incorremos no erro, diante da complexidade da presença da pessoa com deficiência [na escola], de promover um silenciamento pedagógico, de transferir tudo para a saúde.  

Nas escolas pesquisadas por vocês, qual era o papel da coordenação pedagógica? E o que pode ser feito para aproximar o que existe hoje do que deveria ser?  

São muitos anos de pesquisas. Encontrei coordenadores muito comprometidos, com uma compreensão de que algo está fora da pauta. Muitos se perguntando o que deveriam fazer. Na maior parte dos casos, são pessoas efetivamente empenhadas em fazer com que a escola cresça, mas que têm o seu cotidiano cada vez mais enrolado em uma concepção gerencial da governança escolar. E isso faz com que ela se distorça. No sentido de que, mesmo querendo algo diferente, ela permanece sendo mobilizada para apagar o incêndio. As urgências deixarão de existir? Não. Mas pensar que a coordenação pedagógica se resume a isso retira dela o que ela tem de fazer. 

Como reverter isso? 

O coordenador pedagógico deve ser um porta-voz da beleza das interdependências. Caso contrário, a escola trabalha classificando aqueles que não têm autonomia como pessoas com algum defeito ou problema e que devem ir para o canto. Como reverter isso? Já é um salto imenso o coordenador que nota que essas pessoas estão sendo colocadas em um universo paralelo.  

Vou contar uma coisa chocante. Eu estava em uma escola acompanhando quatro crianças autistas não verbais. Em dado momento, me encontrei com um ex-aluno e perguntei o que ele estava fazendo ali. Ele contou que tinha passado em um edital da prefeitura para ser ‘estagiário de inclusão’. As próprias leis usam esses termos. Eu perguntei em que sala ele estava, porque eu conheço bem a escola. A resposta foi: ‘Não sei’. Como você não sabe? ‘Eu fico com o fulano, eu tomo conta dele. A professora é a fulana, mas não sei qual é a série.’ Veja: naquele lugar, ele é a educação inclusiva.  

O coordenador pedagógico precisa falar: ‘Parou. O que é ser estagiário? O que é ter serviço do AEE? Por que algo está sendo feito em paralelo às atividades dos demais?’. Paralelo não é nem antes nem depois, é ao mesmo tempo, e o paralelo não deve existir. Esse é o papel da coordenação. Como é que se faz isso na prática? Analisando, discutindo. Vamos mudar os repertórios ou vamos insistir nisso? A educação inclusiva, quando começa a se disseminar, as pessoas dizem: ‘Mas isso não é só um novo jeito de pensar a escola, isso é um novo jeito de pensar a vida.’ 

Qual o papel da formação em serviço para efetivar uma educação inclusiva? Isso considerando que o coordenador pedagógico deveria organizar um calendário de formação continuada, garantir que a equipe tenha tempo para participar e que as discussões realmente envolvam essas demandas dos professores.  

O coordenador pedagógico é aquele que chama o tempo todo: vamos estudar? Inclusive sobre aquilo que ele não sabe. Mas muitas vezes as pessoas vão para uma formação de educação inclusiva e começam a falar que ‘o autismo é tal coisa, a surdez se caracteriza por isso e aquilo’. Lógico que esses são conhecimentos importantes. A nossa dificuldade não é entender por que aquela garganta não emite som. A nossa pergunta fundamental é: qual é a experiência que nós podemos ter em comum, eu, que me comunico sonoramente, e, você, que se comunica de outro modo? A educação inclusiva não é a lembrança de que cada um é um, mas a lembrança de que temos algo em comum. Vamos procurar ver o que é específico dele ao mesmo tempo que vamos pensar os pontos em comum. Tem horas que não dá, mas muitas vezes dá. Por isso que as pessoas fazem tanta formação, mas no fundo nada muda.  

Como avançar na compreensão da educação inclusiva como ecossistema, e não como “uma promessa de uma escola para cada um”, sobretudo em um contexto de ampliação da judicialização para a garantia de apoio à inclusão? 

São vários lados. Acho bastante compreensível que as famílias pensem: ‘Se o outro tem, por que o meu filho não?’. É necessário governar direitos de ordem terapêutica, mas é urgente não interpretar que isso tem um papel substitutivo ao pedagógico. Ela ganhou judicialmente o direito a um acompanhante. Em geral, isso tem significado uma linha só de atuação, que acaba sendo o estudante ter direito à ABA [análise do comportamento aplicada, um tipo de tratamento para pessoas com TEA difundido não só no campo da saúde]. Tudo que  se apresenta como “única saída” deve ser discutido. A coordenação pedagógica deve indicar o risco da sobreposição, mostrando que as pessoas equivocadamente pensam que a deficiência é da saúde e que o pedagógico não tem o que falar nessas circunstâncias. A maioria das escolas silencia ou se queixa que tais coisas estão atrapalhando. Judicialização é um problema de democracia de baixo impacto, quando ainda é preciso reclamar direitos. Mas as distorções são de ordem mercantil. Vem muito pedido [para as escolas] do tipo ‘compre ABA’, ‘compre isso e aquilo’. A escola precisa de uma reflexão crítica. [Se não,] isso pode favorecer separar [o estudante]. Ele está ali, naquele canto, porque está fazendo terapia.  

Qual é o papel da coordenação para quebrar o isolamento do AEE, que, como você aponta no livro, muitas vezes não conversa com os professores regentes e é apontado como o único responsável pelos estudantes com deficiência?  

O coordenador pedagógico, primeiro, deve chamar a atenção. Nós, professores, não criamos as leis, mas vamos perceber que ela está simplesmente dizendo o seguinte: esse [professor do AEE] deve colaborar com aquele [professor regente] em benefício desse estudante com deficiência. Para mim, o colaborativo dá uma ideia de duas escolas, uma colaborando com a outra. Tem algo de imperfeito nisso, de naturalizar o fato de que esse [professor do AEE] discute a deficiência e aquele [professor regente] discute a pedagogia. É necessário promover um diálogo, mas não nos termos do colaborativo, e sim de pensar pedagogicamente de que modo vamos juntar esforços.  

Como deve ser essa articulação, se não usarmos o termo colaborativo?  

Não é que você esteja errada. Articulação e colaboração são palavras importantes e têm o que oferecer. Só que também, criticamente, elas demonstram como nós, quando pensamos o melhor, pensamos ainda em um mundo à parte. A coordenação pedagógica tem de ser um farol crítico [na escola]. A imagem do AEE não pode ser de uma clínica que colabora com o pedagógico para colher o resultado. O AEE tem funcionado muitas vezes com aquilo que sobrou dos velhos tempos da Educação Especial: este aqui é o meu aluno. No fundo, há uma transferência de responsabilidade.  

O ideal era não precisar existir um professor de AEE? Considerando que, em uma escola inclusiva de fato, todos os professores pensariam quais são as barreiras que precisam ser derrubadas para garantir a aprendizagem de todos os estudantes, é isso?  

Sim! Mas eu não acho que o AEE deva desaparecer. Ele precisa ser escutado, porque muitas vezes é o professor do AEE que chama a atenção para o fato de que a escola deve ser a escola do todo. Pense, por exemplo, a biblioteca. A biblioteca é um espaço aonde todos vão para ter uma experiência de leitura. Mas tem aquele menino que só lê com uma lente deste tamanho. A biblioteca não deixa de ser a biblioteca. 

O AEE deve ser pensado como um espaço para que algo especializado seja feito, mas não um espaço exclusivo da pessoa com deficiência. Hoje, o AEE é um espaço permeado por um reducionismo: eu não enxergo, eu não escuto ou eu sou autista e vou para [para as salas de recursos multifuncionais, por exemplo]. O AEE poderia ser um espaço onde tem algo só dele, em que todos os alunos vivenciam a experiência da ludicidade assistida por equipamentos, da ludicidade assistida por estratégias variadas. Quem fica mais na biblioteca e quem fica menos? É a necessidade que determina isso. Quem fica mais e quem fica menos no AEE repensado como um espaço pedagógico, e não como uma clínica de atendimento? 

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