Proposta interdisciplinar incentiva preservação do cerrado

Iniciativa em escola do Maranhão atua de forma interdisciplinar para que estudantes conheçam e preservem o território onde estão inseridos

Há 13 anos sou professora no Centro Educa Mais Professor Ribamar Torres, uma escola estadual de educação integral localizada na cidade de Pastos Bons, no interior do Maranhão.  

O município de Pastos Bons foi fundado por vaqueiros baianos e pernambucanos, em 1744 no terreno do Olho d’água do Pinga. Deram o nome de Pastos Bons por ser uma região constituída por olhos d’água, veredas e campos verdes, elementos fundamentais para atividades de criação de rebanhos. Está inserida no MATOPIBA (região que se estende por territórios de quatro estados, formado com as primeiras sílabas dos nomes dessas unidades federativas: Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), com forte expansão agrícola e desmatamento do cerrado para produção de grãos. 

A escola de ensino médio tem aproximadamente 300 estudantes matriculados, 20 educadores em seu corpo docente e um trio gestor (diretor geral, diretor pedagógico e diretor administrativo). 

A maioria dos nossos estudantes é de baixa renda, jovens de 14 a 18 anos em situação de vulnerabilidade social, econômica e programática. Recebemos muitos adolescentes da zona rural e da periferia da cidade.  

Entre os estudantes, temos alguns com dificuldade de aprendizagem e um com altas habilidades, que faz parte do público-alvo da educação especial. Para além desse público, nossa escola trabalha com a inclusão de minorias que estiveram segregadas da educação, como, por exemplo: jovens quilombolas, pessoas pretas e pardas e populações economicamente vulneráveis, desmistificando a ideia de que os espaços educacionais são imutáveis, com modelos pedagógicos desatualizados e ineficazes, servindo apenas para alguns poucos privilegiados. Em nossas propostas, procuramos trazer abordagens diferenciadas com metodologias ativas em cada etapa porque reconhecemos que todos são diferentes e importantes dentro do ambiente escolar. 

Trazemos o educando a repensar a forma que vivemos no mundo e nos portamos nele, tomando como uma responsabilidade individual, tentando abolir a terceirização e a ideia de que a mudança deve ocorrer apenas externamente e não a partir de si. 

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O “Cienvivência”

Seguindo nessa linha de racíocinio no ambiente escolar, desde 2021 temos vários projetos em andamento que fazem parte do macroprojeto “Cienvivência”. Todas as propostas nesse período foram desenvolvidas utilizando o Project Based-Learning (Projeto de Aprendizagem, em português), com objetivo de engajar as alunas e os alunos em atividades práticas do ensino, a partir de temas transversais contemporâneos que contemplassem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas, de forma a relacionar meio ambiente e saúde com a vivência de cada um. 

Com isso trouxemos aulas mais dinâmicas, divertidas e significativas, para fazer com que todos conhecessem o território e cuidassem mais das nascentes, porque mais de 50% da cidade é abastecida por nascentes. 

Assim, a nossa grande preocupação era trazer o que estava fora da escola, sensibilizando o nosso olhar para o entorno, para incorporar ao currículo escolar uma tentativa de “desemparedamento escolar” e construir relações saudáveis em seus territórios, acompanhadas da natureza e de boas práticas de urbanismo envolvendo, ainda, as famílias e a comunidade. 

Grupo de estudantes estão em área de rio e mata para pesquisa em campo. Fim da descrição.
Fonte: arquivo pessoal.

Também tivemos como objetivo a agregação de valor a frutos nativos que são Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs). Nossa intenção era de produzir um alimento com valor nutricional agregado que pudesse consistir em alternativa para a dieta de populações em situação de insegurança alimentar, podendo ser também utilizada na merenda escolar e ajudar a preservar o bioma cerrado. 

A princípio, esse macroprojeto foi pensado com professores de biologia, geografia e química, depois vieram as disciplinas de língua portuguesa, matemática, história, educação física e arte. 

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Início das atividades

O “Cienvivência” começou com uma disciplina optativa chamada “olhos nos olhos”, no qual georreferenciava os “olhos d’água” da zona urbana da cidade e os classificava segundo a preservação da mata ciliar. O georreferenciamento foi possível com o uso da tecnologia, ao utilizar aplicativos no celular e parceria com membros de universidades públicas. 

Descobrimos que metade da cidade é abastecida por olhos d’água e que em alguns bairros da cidade a água não chegava às torneiras com frequência. Também constatamos que em alguns olhos d’água tinham bastante lixo no entorno e fizemos um mutirão de limpeza envolvendo outros estudantes da escola e professores.  

Fomos até o Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Pastos Bons (SAAE), empresa que administra a captação de água potável para consumo na cidade, para sabermos a vazão dos olhos d’água explorados. Com auxílio do professor de matemática, fizemos cálculos com esses dados. 

Também conversamos com moradores para auxílio na história local, identificação do uso e importância da nascente para a comunidade. Tivemos vários apoiadores, dentre eles alguns botânicos que conhecemos nos grupos de identificação botânica na internet e foram fundamentais para o projeto, pois nos ajudaram a fazer a identificação correta das plantas.  

O término da etapa se deu com a produção de uma sala temática com apresentações dos estudantes sobre os olhos d’água visitados, exposição de fotos e de plantas catalogadas. 

Continuidade das atividades

Alguns estudantes solicitaram que continuássemos nossas atividades de campo voltadas para as plantas do cerrado. Eles descobriram que estavam afetados pela cegueira botânica, ou seja, eles não conheciam as plantas do bioma no qual estão inseridos.  

Reiniciamos essa nova etapa, com um grupo menor de jovens que continuam indo a campo à procura de plantas que estejam em floração ou frutificação para coleta de material reprodutivo e identificação dessas plantas (uma vez que o período de floração/ frutificação varia entre as espécies do bioma cerrado). 

Em frente há uma árvore frutífera, uma estudante segura um galho com frutos enquanto é gravada por outro estudante com celular. Fim da descrição.
Fonte: arquivo pessoal.

A equipe que ia à procura das plantas foi intitulada “Rosa aventureira”. Já a outra equipe, que se chama “Cienvivência”, fica responsável pelo levantamento bibliográfico para elaboração do roteiro dos vídeos do vegetal no campo, para que sejam editados e publicados na plataforma TikTok. Temos vídeos com mais de 150 mil visualizações e vários comentários positivos sobre a iniciativa. 

Ampliando o público

Reavaliando com os estudantes o impacto do macroprojeto junto à comunidade e aos familiares, constatamos que muitos dos nossos parentes não possuem o aplicativo TikTok. Mediante a isso, articulamos com agentes do território que pudessem compartilhar seus saberes em atividades formativas, tanto em oficinas, como em rodas de conversa ou apresentações culturais.  

Nessa oportunidade, vieram raizeiros, benzedeiras, artesãos e outras pessoas do entorno para ministrar uma aula/oficina sobre conhecimentos de etnobotânica.  

Aproveitamos para discutir temáticas contemporâneas, como racismo ambiental, agronegócio e soja sustentável, transgênicos, cegueira botânica, diversidade socioambiental e biocultural, mudanças climáticas e sustentabilidade, respeito, conhecimentos tradicionais e valorização dos saberes locais, ecologias e modos de vida, epistemologias da floresta, memória afetiva, alfabetização em futuros, identidade e territórios, memória e resistência, tudo isso ligado aos conteúdos curriculares. 

Um morador da comunidade foi ministrar uma oficina de artesanato ecológico com fibras das palmeiras oriundas da vegetação nativa. Coletamos frutos para seu aproveitamento na produção artesanal de alimentos como pães, bolos e geleias.  

Uma estudante e um morador da comunidade estão agachados enquanto fazem artesanato ecológico com fibras das palmeiras oriundas da vegetação nativa. Ao lado, outro estudante os observa. Fim da descrição.
Fonte: arquivo pessoal.

Essa etapa foi denominada de “Fruturos do Cerrado Maranhense”. Nela, além da coleta de frutos nativos, tivemos aula sobre Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC). Com o que foi colhido, produzimos alimentos com as merendeiras da escola e também na casa de alguns jovens e professores.  

Em cima de um prato há um pote com geleia preparada com fruto nativo do cerrado, a Guabiraba. Ao lado, quatro há quatro fatias de pão, onde três estão com um pouco da geleia por cima. Fim da descrição.
Foto: arquivo pessoal.

Fizemos uma degustação de pães, bolos e geleias para a comunidade escolar e tivemos uma boa aceitação. Estamos construindo um livreto de receitas com frutos nativos.  

Atualmente a coleta de frutos nativos continua, assim como o preparo na casa dos alunos, com o objetivo de permanecer estreitando os laços entre escola e comunidade. Tudo, claro, sendo divulgado no TikTok. 

Criamos outro braço do “Cienvivência” chamado “Rosa aventureira no cerrado maranhense” e estamos trabalhando educação ambiental e os animais, onde abordamos a importância ecológica das cobras, sapos e rãs.  

Outro foco é sobre não incentivar as pessoas a terem animais silvestres em casa. Trouxemos o tema de tráfico de animais silvestres e sua relação com o desequilíbrio ambiental e das doenças que esses animais podem transmitir (zoonoses). 

Desafios e soluções

A nossa maior dificuldade no projeto foi no deslocamento, pois não tínhamos transporte, então íamos a pé para esses locais, que nem sempre eram perto da escola. Já chegamos a caminhar mais de 6 km para fazermos nossas filmagens e coleta de frutos.  

Além disso, não possuímos equipamentos de campo, tais como: sapato adequado, GPS, camisa com proteção ultravioleta, chapéu com proteção de pescoço, mochila para levar o material, luvas de proteção para manuseio de frutos com espículas, tripés, nem celulares com uma boa memória ou câmeras com estabilização óptica para captar cada detalhe da imagem. 

Mas, em compensação, tínhamos o apoio da direção em realizar as atividades, a colaboração dos outros professores e, por fim, o envolvimento dos familiares. Até mesmo pessoas da comunidade colaboraram com informações sobre árvores nativas com frutos, para que pudéssemos colher. Outros traziam frutos nativos para a escola, autorizavam que fôssemos filmar nas roças deles e nos levavam até o local, como guias.  

Depois de atingir tanta gente, uma pessoa da secretaria de educação do município soube da atividade e nos ofereceu ajuda, então pudemos utilizar o ônibus da prefeitura para ir a lugares mais distantes. 

As merendeiras da escola também têm se interessado na produção de alimentos com esses frutos e os familiares mais velhos relataram surpresa com o trabalho e uma memória afetiva.  

Já o nosso trabalho audiovisual na rede social tem sido utilizado em aulas da Universidade de São Paulo (USP) no curso de licenciatura em biologia como exemplo de metodologias ativas. 

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Mudanças e participação

As mudanças são visíveis. Os estudantes se interessam mais, houve melhora na colaboração e o estreitamento laços de amizade entre todos que participam. Além disso, cada jovem já sabe se comportar no campo como pesquisador. 

Percebemos o aumento da autoestima das alunas e dos alunos da zona rural. A menina que fala nos vídeos nos disse que o pai está todo feliz e orgulhoso da desenvoltura dela na escola. Ela descobriu que gosta de biologia, vai fazer vestibular para essa área e quer se especializar em botânica.  

Estudantes estão sentados à mesa em pátio da escola. Nas mesas há alguns tipos de plantas que os jovens estão estudando. Fim da descrição.
Fonte: arquivo pessoal.

As famílias de alguns estudantes estão empolgadas ajudando, mandando frutos, avisando onde tem planta nativa com flores, dando ideias na produção dos vídeos, ajudando a produzir doces e geleias com frutos nativos em fogão à lenha. 

Uma outra estudante, de tão empolgada e feliz com o projeto, chamou a mãe e o pai para ajudarem nas atividades. A mãe é benzedeira e o pai raizeiro. Eles fazem garrafadas e mantêm a tradição há quatro gerações.  

Durante toda a trajetória, pensamos em atividades que fossem realmente inclusivas, possibilitando a participação de todos, inclusive os estudantes com dificuldade de aprendizagem e com deficiência, então. Foi muito gratificante vê-los participarem nas tarefas de gravar e editar vídeos; elaborar o design dos rótulos dos produtos que fizemos utilizando softwares; produzir conteúdo para divulgação; catalogar as plantas estudadas; e outras propostas que exigem concentração, atenção, criatividade e os desafiaram, colocando-os como pesquisadores.   

Outro ponto importante é os estudantes verem seus projetos de vida contemplados. Uma das meninas tem como projeto de vida ser empreendedora e, por isso, passou a comercializar e presentear os colegas com produtos à base de frutos do cerrado que produzimos. Recentemente ela prestou vestibular para administração na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).  

Retornos

Os desdobramentos do projeto foram acontecendo a partir da avaliação e reconstrução do caminho a ser seguido. Essa reconstrução foi feita coletivamente com todos os envolvidos na iniciativa. Em grupo, conseguimos encontrar soluções efetivas para os problemas que foram detectados no território junto à comunidade. 

A partir do pensamento crítico e da criatividade tentamos encontrar respostas e reflexões para a série de situações que vão além das disciplinas comuns do currículo escolar. Nós também trabalhamos com a memória afetiva das famílias por meio das plantas e frutos do cerrado. 

As alunas e os alunos desenvolveram sua criatividade com a produção de vídeos, pela conversa com moradores locais, com a produção de alimentos à base de PANCs, na elaboração do livreto de receitas, pela coleta de partes reprodutivas das plantas para a produção de exsicatas (amostra de planta ou alga que é prensada e em seguida seca numa estufa), com a produção de mapas com os pontos georreferenciados, contação de história, na produção de artesanatos com fibras de palmeiras e, por último, no encontro com “guardiões de práticas e saberes ancestrais” como raizeiros e benzedeiras.   

Por estarmos formando jovens protagonistas e por tudo o que estamos desenvolvendo na escola, a gestão tem nos apoiado cada vez mais. Novos equipamentos foram comprados para que possamos trabalhar melhor e a carga horária semanal foi modificada, sendo 4 horas semanais destinadas para que eu possa trabalhar com as disciplinas eletivas e me dedicar mais ao projeto. 

Outro ganho é a nossa participação em eventos científicos (alfabetização científica), apresentando resumos do nosso trabalho em congressos nacionais e internacionais.   

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O Centro Educa Mais Professor Ribamar Torres foi uma das escolas premiadas na edição de 2022 do Prêmio Territórios. 

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