Há 21 anos, mães atuam em defesa da educação

Ao contar seu percurso, que se confunde com o do Campe, Keila Leite Chaves aposta na luta coletiva e defende que as famílias precisam saber que a escola é para todas as pessoas

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Em 2003, Keila Leite Chaves recebeu de uma professora uma cópia da Declaração de Salamanca documento elaborado em 1994, que trata do direito à educação para crianças e jovens com deficiência com a afirmação de que o texto faria diferença nas mãos dela. “Eu levei para casa e devorei. Devorei como se eu fosse aquela pessoa que está no deserto e encontra água, sabe? Cheguei no outro dia já perguntando: isso aqui vale no Brasil? Ela disse: ‘Vale’. Quer dizer que a escola aqui perto de casa deve receber meu filho? Ela: ‘É’. E bastava eu não saber para que me fosse negado [esse direito]?” 

Foi assim que Keila descobriu que seu filho David, uma criança com deficiências múltiplas, tinha o direito de estudar em uma escola comum. Até aquele momento ela não sabia disso. Mas, ao se apropriar desse importante marco legal, ela e outras mães — que já se apoiavam em rede — iniciaram uma jornada em defesa da educação inclusiva, que resultou, naquele mesmo ano, na fundação do Centro de Apoio a Mães e Pais de Portadores de Eficiência (Campe) e segue influenciando a política educacional muito além dos limites de Fortaleza, onde moram até hoje.  

“Ela [a Declaração de Salamanca] fez toda a diferença na vida do nosso grupo de mães, que passou a não aceitar mais a negativa da matrícula como resposta. Em 2005, nós incluímos na escola comum 20 pessoas com deficiência, todas em situação de isolamento, de várias idades e sem diagnóstico. Realizamos essa ação com a presença da imprensa, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE) e do Ministério Público”, orgulha-se Keila, que, em junho deste ano, recebeu da Câmara de Vereadores de Fortaleza a medalha Boticário Ferreira. Foi a terceira vez que a casa legislativa reconheceu o trabalho do Campe.  

Ao relembrar a trajetória do Campe, Keila demonstra a força do movimento criado pelo grupo de mães, que há 21 anos busca mobilizar a sociedade em defesa dos direitos de pessoas com deficiência e incidir no marco legal e nas políticas públicas a favor desse público.  

Em sua atuação, o Campe mantém uma comunicação ativa com as famílias via WhatsApp, oferecendo orientações para empoderar mães no diálogo com as escolas e outros serviços da saúde e da assistência social, mesmo aquelas que não têm filhos com deficiência.  

Ao longo de sua história, o grupo construiu uma longeva parceria com o Cedeca-CE, que resultou na realização de seis seminários e de diversos encontros formativos, como a Semana de Educação Inclusiva, incorporada no calendário pela Secretaria Municipal de Educação (SME) de Fortaleza e realizada anualmente pelas escolas da rede.  

“Nossa luta é coletiva. Integramos o comitê diretivo da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. Marcamos presença no Fórum Mundial de Educação em Santa Maria (2008), no Fórum Social em Belém (2009) e nas conferências de educação, juventude e pessoas com deficiência. Lutamos pela criação da Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) e pela ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Brasil (2009)”, lembra. Atualmente, o Campe também integra o Fórum Estadual de Educação (FEE) e o Fórum de Defesa da Criança e Adolescente (FDCA) e participa do Núcleo de Acessibilidade às Pessoas com Necessidades Específicas (Napnes) do Instituto Federal do Ceará (IFC).  

Aprendizados da maternidade: trabalho pela autonomia  

As experiências trazidas pela maternidade, sobretudo após o nascimento de David, levaram Keila a apoiar outras mães e a se engajar na luta política em defesa do direito à educação. Em um cenário bastante adverso, ela não deixou de perseguir alternativas para assegurar os direitos do filho. 

“Quando David nasceu, estranhei que ele não chorasse. O pessoal da amamentação percebeu que ele não sugava. Mas ninguém dizia nada. Saí do hospital um mês depois [após me recuperar de uma infecção] sem saber nada sobre ele. Tempos depois, em uma consulta, a pediatra apenas disse: ‘Mãezinha, tem de ter muito cuidado, porque a qualquer momento ele pode falecer’. Saí apavorada. Meu Deus, não vou aguentar passar por tudo de novo. Não posso perder mais um, não”, recorda Keila. Sua primeira filha faleceu 20 dias após o nascimento devido a meningite bacteriana. Pouco tempo depois, ela enfrentou o luto novamente, após um aborto espontâneo.  

Keila e o marido, José Gasildo, estão juntos há mais de 40 anos e têm três filhos: Diego, 35 anos, David, 28, e Denis, 25. Com a gravidez do filho caçula, ela deixou o trabalho de representante da empresa Embelleze. “Precisei dar um basta. A rotina era muito puxada, vi que estava pagando para trabalhar e não tinha vida. Era cobrança do marido e da escola e mais a rotina de consultas médicas do David”, recorda.  

Entre idas e vindas em busca de atendimento especializado para David, Keila encontrou profissionais comprometidos no Núcleo de Estimulação Precoce (Nutep) e no Hospital das Clínicas, ambos da Universidade Federal do Ceará (UFC), que ofereciam diferentes formas de suporte e orientação às famílias. Nesses espaços, ela aprendeu os riscos da superproteção, que pode interferir no desenvolvimento da autonomia das pessoas com deficiência.  

“Certa vez, uma fonoaudióloga perguntou se eu havia levado água para o meu filho. Eu, toda orgulhosa, respondi que sim e mostrei a mamadeira. No mesmo instante, levei um verdadeiro sermão. Pensei que estava sendo uma mãe exemplar, mas ela perguntou: ‘O que é isso aqui?’ – referindo-se ao furo que eu tinha feito no bico da mamadeira. Expliquei que aumentei [o furo] porque a água não passava. Na mesma hora, fui alertada de que aquela abertura é proposital para estimular o movimento e fortalecer a musculatura da boca, que favorece o desenvolvimento da fala. Essa lição abriu meus olhos. Compreendi que, ao tentar facilitar, eu estava, na verdade, privando meu filho da oportunidade de desenvolver habilidades fundamentais. Aprendi ali que é necessário permitir que a criança seja desafiada.” 

Felizmente, e contrariando a previsão fatalista dos médicos após seu nascimento, David acabou de completar 28 anos. “Ele não tem diagnóstico. Não fala e anda com dificuldade. Ele atende [quando peço] para se vestir e comer e reconhece pessoas familiares. Nossa comunicação é sobretudo gestual, pela leitura do corpo. É um homem forte e demonstra resistência quando não quer algo”, explica Keila. Para ela, a relação construída entre David e Denis, o irmão caçula, foi fundamental. O diálogo e as brincadeiras favoreceram o desenvolvimento da interação, sobretudo pelo olhar. 

Luta coletiva em prol da educação inclusiva 

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Trocar informações com outras mães era uma prática corriqueira para Keila. “Sempre foi assim. Depois que o Sarah chegou aqui [em Fortaleza], eu sempre andava com o telefone do hospital anotado em um papel. Encaminhei muitas pessoas para lá”, exemplifica. 

A trajetória de Keila e David é um exemplo de como o acesso à informação, partilhada por outras mães ou por profissionais de diferentes áreas, especialmente da saúde, é importante para que as famílias tenham mais elementos para lutar pela efetivação de seus direitos. “O David tinha cinco anos quando uma profissional do Sarah indicou que ele fosse à escola. Até então, eu não vislumbrava esse espaço como um lugar que meu filho pudesse frequentar e que faria parte da vida dele”, recorda-se. 

Encontrar uma instituição de ensino, no entanto, não foi tarefa fácil. “Comecei a buscar, mas não conseguia vaga. Sempre tinha um empecilho ou um novo critério. Ele era velho demais ou muito novo, por exemplo. Nem pagando a mensalidade, as escolas nos recebiam”, lembra, ao citar que a recusa de matrícula de pessoas com deficiência ainda é comum atualmente, apesar de ser crime, segundo a Lei Brasileira de Inclusão e o artigo 8º da Lei nº 7.853/89. 

Por meio de outra mãe, Keila soube da inauguração de uma nova escola no bairro, que atenderia, no período da tarde, exclusivamente pessoas com deficiência. Ela se mobilizou. “No início, não havia ninguém. Com o passar do tempo, três crianças começaram a frequentar [essa escola], incluindo o David. Eu divulgava o espaço em todas as oportunidades que surgiam. Gradualmente, mais pessoas apareceram.”  

Em pouco tempo, porém, as expectativas de Keila e de outras mães foram frustradas. Nesse período, elas já estavam convictas de que o melhor para seus filhos era o previsto pelo paradigma da educação inclusiva presente na Declaração de Salamanca. “Discordávamos do modo como as crianças e jovens eram tratados. Eles passavam a maior parte do tempo isolados em quartos separados. Era uma prisão”, critica Keila. Ao mesmo tempo, havia um grande esforço coletivo das mães para levantar fundos junto à comunidade visando a aquisição de insumos necessários, como uniformes e alimentação, para apoiar o funcionamento do espaço. 

Nessa experiência, Keila avalia que houve aspectos positivos e negativos. “Ao mobilizar outras mães para matricularem seus filhos em uma instituição que os isolava, eu levei todo mundo para o abismo. Mas foi lá também que a gente se conheceu. Eu diria que foi a melhor faculdade que eu fiz, porque ali aprendi a lidar com crianças com diferentes tipos de deficiências.” 

Foi nesse espaço de segregação das crianças e jovens com deficiência que uma das professoras voluntárias compartilhou com Keila a cópia da Declaração de Salamanca. Influenciada pela perspectiva inclusiva presente no documento, Keila liderou a criação do Campe ao lado de outras mães, como Verônica Rodrigues e Joanice Cordeiro. Foi um período de muita troca, diálogo e aprendizagens. “A gente teve de enfrentar essa cultura capacitista, na qual o importante é ter um lugar para colocar o filho e mais tarde ir buscá-lo”, argumenta. 

Após um ano, mães e filhos deixaram a instituição. Em 2004, elas alugaram uma casa com o objetivo de promover uma série de atividades que julgavam ser importantes para o desenvolvimento das crianças e jovens. A locação do imóvel explicitou conflitos dentro das famílias, suscitando questionamentos sobre como iriam arcar com as despesas e com os cuidados de outras pessoas além de seus próprios filhos.  

“Nós reformamos a casa, que era cheia de mato, e envolvemos a comunidade. Fizemos rifas, bingos e festas. Passávamos as tardes com as crianças e jovens desenvolvendo atividades sobre abraço, solicitude e amizade. Toda sexta-feira, cada um pintava uma página do que, no final do ano, virou um livro para cada um deles. Houve até uma noite de autógrafos. Era um trabalho criativo, divertido e cheio de alegria, com peças teatrais e muitas outras atividades”, lembra Keila. 

As mães compreenderam, no entanto, que aquele espaço seria provisório, pois sabiam que seus filhos tinham direito à educação e não aceitavam mais a segregação como resposta.  

No feriado de 7 de setembro de 2004, o Campe realizou seu primeiro ato público: uma caminhada no próprio bairro divulgando a Declaração de Salamanca. “A gente se apaixonou por ela e passamos a pensar se não teria mais alguém sem saber daquela história. Tiramos xerox e fomos panfletar. Levamos um carro de som anunciando a boa nova: todo mundo tem direito a estar na escola [comum]”. 

Essa movimentação chamou a atenção da imprensa e dos profissionais do Cedeca-CE. “Eles vieram conhecer o trabalho daquele grupo de mães que buscava sensibilizar as pessoas para a inclusão dos meninos, mas a gente ainda não sabia que era isso o que estávamos fazendo. Fomos descobrindo muitas coisas no caminho.” 

Em 2005, mais fortalecidas, as mães do Campe mobilizaram a imprensa local e representantes do Cedeca-CE e da Promotoria da Infância e Juventude do Ministério Público. No início daquele ano letivo, eles foram à Escola Municipal Professor José Sobreira de Amorim e garantiram a matrícula de 20 pessoas com deficiências, entre eles crianças, adolescentes e adultos. Foi nesse momento que David, então com oito anos, entrou na escola pela primeira vez. 

A mobilização não parou por aí. No ano seguinte, em 2006, o Campe incentivou a transferência dos estudantes com deficiência para escolas de outros bairros de Fortaleza. Essa decisão visava garantir a matrícula próxima às residências das famílias, além de mobilizar outros atores a assumir o compromisso com a inclusão.  

“A gente queria que todo mundo entendesse que todas as escolas tinham de receber nossos filhos”, conta Keila. E havia outro fator: a possibilidade de mudar o olhar da comunidade. “Certa vez, escutei o seguinte: ‘Depois que vocês começaram esse trabalho [do Campe], vemos mais pessoas com deficiência na rua’. Era verdade. Mas no bairro vizinho, onde minha mãe morava, isso não ocorria. Foi aí que decidi transferir o Davi para outra escola, perto da minha mãe. Era mais longe, mas o simples fato de a gente sair todo dia e andar alguns quarteirões poderia chamar a atenção de uma mãe que estava com o seu filho em casa sem estudar.” 

Quais ideias orientaram a escolha do nome Campe?

“O Campe surgiu em 2003 como Centro de Apoio às Mães de Portadores de Eficiência. Usamos o termo ‘eficiência’ para demonstrar à comunidade um outro lado dos nossos filhos, aquele que não era visível. A deficiência já saltava aos olhos. A gente queria mostrar a eficiência dessas crianças e jovens e a possibilidade de estarem junto com as demais pessoas. Muitos questionam o porquê de ainda usarmos ‘portadores’. O termo permanece porque a eficiência a gente pode portar. Podemos ser eficiente hoje e, em outro dia, estar cansado e optar por não ser. Outra mudança foi que passamos a incluir os pais. Antes, era Centro de Apoio a Mães. Fizemos esse acréscimo justamente para convocar o homem para sua responsabilidade em relação à paternidade. Por isso, em 2017 atualizamos em nosso estatuto o nome do Campe para Centro de Apoio a Mães e Pais de Portadores de Eficiência”, explica Keila. 

Enfrentando barreiras e ocupando novos espaços 

Após a matrícula na escola comum, mães e filhos enfrentaram muitas barreiras, sendo a mais desafiadora delas a atitudinal. “A resistência ocorre na ponta. Sofremos muito. Pais das outras crianças, professores e equipe gestora criavam situações e estratégias para que desistíssemos. Sempre que havia um problema ou uma situação de conflito, a culpa era atribuída à criança com deficiência. E houve desistências, mesmo com a gente mediando e dando suporte”, lembra Keila. 

Os alunos do Campe, como o grupo de 20 crianças e jovens era conhecido, foram matriculados em diferentes anos, de acordo com a avaliação feita pela equipe escolar. David, por exemplo, aos oito anos entrou na pré-escola, uma decisão baseada sobretudo no fato de ele não falar. “Esse é um exemplo de que a barreira está em nós, na sociedade. A deficiência é nossa. Nós é que não conseguimos acessar o conhecimento que ele tem, e isso justificou a sua ida para a educação infantil”, explica Keila.  

Outro exemplo foi o filho de Maria Ivoneide. O Antônio David Sousa Almeida (conhecido por Davi para diferenciá-lo de David, filho de Keila) é um adolescente com paralisia cerebral que ingressou na escola pela primeira vez aos 16 anos, na antiga 4ª série. Hoje, ele é formado em pedagogia pela Universidade Federal do Ceará, prestou dois concursos públicos e aguarda ser chamado para assumir o posto de professor em um município próximo à Fortaleza. Por se expressar oralmente, ele foi porta-voz do Campe em muitos espaços de debate em defesa da educação inclusiva.  

“Dificilmente ele ia sozinho. Em quase todas as audiências, levávamos todos os outros”, pondera Keila. Um exemplo disso foi a presença de vários integrantes do Campe na cerimônia de assinatura do Decreto Federal nº 7.611/2011, que instituiu o duplo financiamento da matrícula para estudantes com deficiência.  

No encontro, Antônio David dividiu a mesa com o então ministro da Educação, Fernando Haddad, e Isabel Maior, primeira pessoa com deficiência a comandar a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. “Nesse dia, fomos de manhã para Brasília e voltamos à noite. Foi a primeira vez que eles viajaram de avião. Esse foi outro desafio, pois não tínhamos essa experiência.”

No biênio de 2010-2011, Antônio David, filho da Maria Ivoneide, foi o único jovem com deficiência a representar a sociedade civil no Conselho Nacional de Juventude. Keila fala com orgulho sobre o fato de todos os anos ele ser convidado pela SME para participar da Semana de Educação Inclusiva, na qual compartilha sua trajetória com estudantes e educadores. 

Antônio David já voltou em escolas nas quais estudou para incentivar outros jovens a não desistir. Em uma delas, ele constatou que o banheiro acessível tinha sido transformado em depósito, sob a alegação de que não precisavam mais daquele espaço, pois não havia novos estudantes com deficiência. Segundo Keila, essa é uma prática comum. “Fazem isso para poderem usar o discurso de que não estão preparados, pois não há acessibilidade na escola. Se a mãe não chega fortalecida, consciente de seus direitos, aceita o argumento e vai em busca de outra escola. Isso ainda acontece, infelizmente”, alerta. 

Contrariando as estatísticas, David e Antônio David concluíram os ensinos fundamental e médio sem reprovação. Trata-se de uma exceção quando analisamos os dados de distorção idade-série que, em 2022, chegou a 31% entre os estudantes público-alvo da educação especial, segundo o Painel da Educação Especial do Instituto Rodrigo Mendes (IRM). 

Vale destacar que o percurso escolar dos alunos do Campe ocorreu em um período de grande mudança na política educacional do país. Eles acompanharam de perto os avanços no marco legal e os desafios de sua implementação. 

Em 2006, o Brasil assinou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi ratificada pelo Congresso Nacional e passou a ter força de emenda constitucional em 2009. Em 2008, foi criada a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI), que promoveu importantes avanços na educação de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, como, por exemplo, a ampliação da matrícula em escolas e classes comuns e a promoção de ações formativas e de apoio técnico e financeiro para a oferta do atendimento educacional especializado (AEE) nas redes de ensino.  

+ Leia também: 10 perguntas e respostas para entender o AEE 

Ao avaliar os apoios técnicos previstos na PNEEPEI, que Davi deveria ter acessado ao longo da educação básica, Keila explica que houve muita instabilidade na oferta. Como exemplo, ela cita o AEE, que por longos períodos não foi oferecido porque não havia sala de recursos multifuncionais (SRM) ou professor do AEE na escola. “O mesmo ocorreu com a comunicação aumentativa e alternativa. Quando havia, os próprios colegas da turma apoiavam, sinalizando que era hora do recreio, por exemplo. Mas isso durou pouco, pois havia essa inconstância.”  

Trajetória escolar de mãe e filho 

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Os processos de escolarização de Keila e seu filho David se cruzaram quando eles cursaram o ensino médio juntos, entre 2016 e 2018. Ao matricular o filho na nova escola, que ficava em um bairro vizinho, a diretora perguntou a Keila sua escolaridade e a convidou a retomar os estudos aos 50 anos. “Eu só tinha [estudado] até o 8º ano. Fui reprovada, e isso foi minando meu interesse. Me casei cedo, com 16 anos. Depois, com a gravidez e o trabalho, acabei desistindo”, explica Keila.   

Mãe e filho não pararam de estudar após concluírem a educação básica. Ambos fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Na primeira tentativa, David não obteve nota. “Enviamos um relatório para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) questionando a acessibilidade do teste”, lembra. 

No ano seguinte, Keila pôde orientar os aplicadores da prova e o filho chegou a pontuar no teste, mas a comunicação ainda se apresentou uma barreira, e ele não fez a redação, que tem um peso importante no processo de seleção para ingresso no ensino superior.  

Após ser aprovada no curso de Letras no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, no campus Baturité, Keila decidiu que o filho faria o curso com ela mesmo sem estar matriculado. Eles estudam juntos, assim como fizeram durante o ensino médio. David a acompanha em todas as aulas. O trajeto de casa, no bairro Itapery, até o instituto é longo: são cerca de cem quilômetros, um percurso no qual ela leva duas horas para ir e outras duas para voltar. Atualmente, eles estão no nono semestre, e é grande a expectativa pela conclusão. 

Soluções para derrubar barreiras 

Ao analisar o atual contexto brasileiro, Keila elogia a PNEEPEI, mas indica que ela não está sendo efetivada plenamente. “Ainda encontramos meninos que só vão à escola para frequentar o AEE e seguem excluídos da sala comum. Outro problema é o acesso ao ensino médio nas redes estaduais. Geralmente, os estudantes só vão até o fundamental”, critica.  

Mesmo reconhecendo os desafios, Keila tem visto avanços nas escolas que visita. Ela destaca o trabalho desenvolvido no AEE da Escola Projeto Nascente, que tem promovido uma potente parceria com as famílias. Em outro exemplo, cita a liderança da gestão escolar da EEMTI Estado do Maranhão, que tem buscado construir um projeto político-pedagógico pautado pelos princípios da educação inclusiva e da gestão democrática, promovendo debates com professores e estudantes sobre inclusão, violência sexual e outros temas. As duas escolas ficam em Fortaleza. 

“A inclusão exige parceria. A escola precisa propor atividades em dupla ou em equipe, com um auxiliando o outro para fortalecer o companheirismo e a cooperação. Incluir exige sair da lógica da competitividade, na qual o que sabe mais passa de ano e o que sabe menos é reprovado. Todos nós temos habilidades e dificuldades, somos bons em algumas coisas e, em outras, não. O outro me completa. Isso é Paulo Freire, que nos ensina o poder da troca de saberes para a construção do conhecimento e a transformação da realidade”, defende. 

Ao celebrar o crescimento das matrículas de estudantes com deficiência, Keila reconhece a angústia dos professores, que não se sentem preparados. Ela, porém, acredita que o aprendizado acontece à medida que eles chegam na escola. “Eu me encanto, porque eu sei que ali, nas relações construídas, eles estão aprendendo.” 

+ Leia também: 2024 começa com expectativa sobre avanço das ações para fortalecer a educação inclusiva 

Mirando a superação dos desafios que dificultam a garantia do direito à educação para todas as pessoas, o Campe segue ocupando espaços de controle social e incidência política. O apoio às famílias, por meio da promoção da troca de experiências e informações, permanece como uma das principais formas de atuação desse grupo de mães.  

Ao rever sua trajetória e a do próprio Campe, Keila segue firme na defesa da educação inclusiva. “Temos de compreender que a vida é dinâmica e que o aprendizado se dá nas trocas, no contato com o outro. E qual é o nosso papel? Não impedir que essas trocas aconteçam. Podemos até não desfrutar daquilo que desejamos alcançar, mas estamos atuando para que outras gerações encontrem um mundo mais acessível. Queremos que as pessoas se reconheçam na sociedade, não apontem mais o dedo e não tenham aquele olhar pesado ao ver algo que lhe é estranho”, afirma. “Estamos aqui para abrir caminhos e fazer com que acreditem ser possível. A história do Campe mostra isso. Não podemos nos centrar nas barreiras, porque elas já são muitas. Nosso papel é buscar soluções. Se não tem, a gente cria!”

Declaração de Salamanca completa 30 anos  

A Declaração de Salamanca, construída em 1994, durante a Conferência Mundial sobre Educação Especial, realizada na cidade espanhola que batiza o documento, é considerada um divisor de águas na área da educação. “Seu objetivo era traçar princípios orientadores para o desenvolvimento de políticas e práticas educacionais dirigidas a estudantes com deficiência, respondendo, assim, a movimentos sociais que defendiam o fim da segregação em ambientes/escolas exclusivos/especiais. Essa declaração proclama que as escolas regulares com orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias e que alunos com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola regular”. Como um dos países signatários da declaração, o Brasil assumiu, a partir daquele momento, o compromisso de adotar o princípio da educação inclusiva em sua política educacional.  

Saiba mais sobre esse e outros importantes marcos legais da área no capítulo Histórico da Educação Inclusiva do livro Educação Inclusiva na Prática”, com organização de Rodrigo Hübner Mendes.   

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