O caso da Escola Donícia Maria da Costa – Florianópolis

Introdução

Florianópolis construiu uma trajetória de protagonismo em relação à garantia de educação para crianças e adolescentes com deficiência no Brasil. Liderada por Rosangela Machado, a Gerência de Educação Especial desenvolveu um amplo e sólido conjunto de políticas públicas que contempla a oferta de atendimento educacional especializado (AEE), formação continuada, transporte acessível, professores de apoio, entre outros. A Escola Básica Donícia Maria da Costa é uma das unidades educativas da rede municipal que vem se destacando. Seu diretor, Marcos Bueno, investe esforços para envolver a comunidade no processo de gestão e reconhece a relevância da equipe de professoras do AEE para que os estudantes tenham acesso aos conteúdos curriculares. Seus maiores desafios são o combate à prática do bullying, o maior envolvimento das famílias e o pleno desenvolvimento dos alunos. Rosangela tem consciência das grandes conquistas alcançadas e sustenta uma visão positiva sobre o convívio com as diferenças humanas.

Sonhos e adversidades

Ana Carolina cursava o sexto ano em uma escola municipal de Florianópolis. Assim como outros adolescentes de sua faixa etária, tinha planos para o futuro. Queria ter muitos filhos e se tornar professora. Ana gostava bastante de língua portuguesa e artes. Não se interessava muito por matemática. Era uma menina de opinião forte que acreditava na importância de nunca desistir e sempre continuar tentando.

A turma 61 era conhecida como uma das mais difíceis da escola. Considerada muito agitada e bagunceira, praticava bullying com frequência. Os educadores e os próprios estudantes enfrentavam o ânimo e a energia do grupo. Diante da dificuldade de administrar um ambiente com tamanha indisciplina, alguns professores chegavam a chorar em sala de aula. Havia casos de alunos que, apesar da necessidade, deixavam de usar óculos para não se tornar objeto de chacota de seus colegas.

Ana Carolina não era uma exceção. Por utilizar uma prótese no olho esquerdo e por ter o cabelo crespo, alguns alunos a chamavam de “olho de vidro” e “cabelo sarará”. Esses apelidos eram agressivos e desagradáveis, mas ela era forte e reagia, exigindo respeito. Nesse sentido, sabia que podia contar com suas amigas para encarar as “brincadeiras” de mau gosto cometidas com ela. Tais amigas também a auxiliavam durante as atividades em sala de aula. Devido à baixa visão no olho direito, precisava que o conteúdo fosse reescrito em uma pequena lousa produzida com papelão e papel contact pela professora do AEE. Esse procedimento permitia que Ana tivesse acesso ao conteúdo e o transferisse para seu caderno. Suas amigas revezavam a atividade de copiar para a pequena lousa e, quando estavam ausentes, quem assumia essa função era a professora regente.

Ana tinha também deficiência intelectual. Alguns de seus desafios eram a aprendizagem de sequências numéricas e o desenvolvimento de raciocínios lineares. Essas dificuldades eram superadas por meio de atividades de repetição, conduzidas durante o apoio pedagógico¹ que Ana frequentava às sextas-feiras, no contraturno da aula regular. Segundo sua professora de ciências, Salete, “…foi muito bacana trabalhar com ela e ver como ela estava indo bem”.

Além de participar das diversas atividades oferecidas pela escola, Ana frequentava a Associação Catarinense para a Integração do Cego (ACIC), onde praticava letramento, atividades físicas, de vida diária e de estimulação visual. Sua aula favorita era o taekwondo e se orgulhava de já ter conquistado duas medalhas em um torneio.

A Escola Donícia Maria

A Escola Básica Municipal Donícia Maria da Costa foi criada no final da década de 80, no bairro Saco Grande. Seu nome é uma homenagem a um casal: a lavadeira Donícia e o caseiro Janga, responsáveis pelos cuidados do terreno onde foi construída.

Durante os anos 90, houve a construção de moradias populares na Vila Cachoeira, bairro próximo ao Saco Grande. Juntamente com as residências, veio a promessa de uma escola que atendesse às novas demandas da população local. Foi então que, em meados dos anos 2000, a Donícia Maria da Costa foi realocada em um prédio maior e mais próximo das novas moradias.

As escolas municipais de Florianópolis que dispõem de salas multimeios² são definidas como “escolas polo”. Oferecem atendimento educacional especializado aos estudantes público-alvo da educação especial, tanto da própria instituição, como também de outras unidades da rede que não possuem esse equipamento. É o caso da Donícia Maria.

Em 2015, a escola foi responsável pela educação de 548 estudantes do ensino fundamental I e II, divididos entre dois turnos de quatro horas cada (matutino e vespertino). As professoras do AEE atendiam 22 estudantes, dos quais 3 ainda não tinham diagnóstico. Existia uma ampla abrangência de especificidades, conforme detalhado abaixo:

A parceria estabelecida com a ACIC trouxe uma série de benefícios para os estudantes com deficiência visual e para a própria equipe pedagógica. A cada dois meses, era realizada uma reunião envolvendo um assistente social, um psicólogo, professores do AEE e familiares dos alunos com o objetivo de propiciar a troca de informações. O contato desses educadores com a instituição é bastante importante também para a produção de materiais. Ana Carolina, por exemplo, precisava de materiais ampliados que eram criados com o apoio da ACIC. A mãe da aluna enfatizava a importância de tal trabalho:

Acho que aprende a se desenvolver melhor, a lidar bem com a vida do dia a dia, tipo andar sozinha, pegar um ônibus. Por isso que eu acho que é importante para as pessoas que tem deficiência visual perder o medo de estar em tal lugar e ‘ah, vou no supermercado’, ‘vou pegar um ônibus’. Perder esse trauma que eles têm de ‘porque eu sou cego, porque eu não consigo enxergar’, mas sabe que é capaz de fazer aquilo. A ACIC ensina muito, desenvolve muito a pessoa.

História da educação inclusiva em Florianópolis

Assim como em outros municípios brasileiros, a oferta de escolarização para estudantes com deficiência em Florianópolis foi historicamente construída sob a perspectiva da segregação, segunda a qual tais alunos eram encaminhados para instituições apartadas da rede regular de ensino, ou sob o modelo da integração escolar, no qual há uma inserção parcial dos estudantes da educação especial nas turmas do ensino comum.

Esse contexto começou a se transformar a partir de 2001, quando Rosangela Machado, na época coordenadora da área de educação especial do município, deparou-se pela primeira vez com o conceito de “inclusão total”, apresentado pela professora Maria Teresa Eglér Mantoan, referência internacional na área. “Inclusão tem que ver com tudo e com todos. Não existe inclusão parcial. (…) A inclusão ou é ou não é.” Essas eram algumas das expressões da professora que impactaram Rosangela como respostas para seus questionamentos e angústias. Maria Teresa passou a assessorar o processo de implantação do modelo inclusivo em Florianópolis, esclarecendo a importância de se garantir o acesso de todas as crianças e jovens com deficiência em idade escolar às escolas comuns. Ao mesmo tempo, tornou-se nítida a necessidade de se planejar estratégias de apoio a estes alunos, bem como às equipes pedagógicas das escolas que compunham a rede.

O primeiro passo foi repensar o papel da educação especial, configurando-a como um serviço complementar à escolarização oferecida pelas escolas regulares. Essa nova visão deflagrou a premência de envolver todos os educadores, não somente os professores especializados, na busca por uma escola, de fato, inclusiva. Assim, a formação continuada dos profissionais de educação da rede e a organização progressiva dos serviços de atendimento educacional especializado tornaram-se estratégias prioritárias. O significativo processo de mudanças disparado nesse período levou Florianópolis a ser tornar uma cidade protagonista no movimento em defesa da educação inclusiva no Brasil. Segundo Rosangela:

Nós fomos pioneiros, digamos assim, nesse novo formato de atendimento educacional especializado, que é uma ação da educação especial. E desde 2005, a gente faz inclusão de todas as crianças. É até redundante falar, mas inclusão sem exceção, sem deixar ninguém de fora.

As instituições de educação especial do município passaram a atuar como parceiras desse novo desenho, oferecendo atendimento complementar ao ensino, no contraturno escolar.

Em 2013, após alguns anos de dedicação ao Ministério da Educação³ e ao seu doutorado, Rosangela retornou para a Secretaria de Educação de Florianópolis, assumindo a Gerência de Educação Especial. As transformações iniciadas em 2001 consolidaram-se num conjunto amplo e fortalecido de políticas públicas que traduziam a perseguição contínua por um modelo de ensino que acolhesse a todos. Segundo ela, existem três princípios que orientam tais políticas:

  • O direito à educação: independentemente de suas condições físicas, intelectuais, emocionais e econômicas, todas as crianças e adolescentes são bem-vindos às escolas;
  • O direito à acessibilidade: além de estarem na escola, os estudantes devem usufruir do acesso ao conhecimento por meio do atendimento educacional especializado;
  • O direito à diferença na igualdade de direitos: cada estudante é visto como único e deve ser respeitado em seus tempos e ritmos próprios; todos são capazes de aprender.

Rosangela destaca que a aplicação de tais princípios na prática pedagógica envolve o desprendimento de certos mitos sobre a necessidade de se “preparar” antes de atender, conforme expressado em seu depoimento:

Você pode ter formação de quarenta horas, mil horas sobre o autismo. Essas mil horas não vão dizer tudo sobre aquela criança com autismo que eu tenho na minha sala de aula. O que me faz conhecer aquela criança é o meu encontro com ela, é a minha convivência com ela. As minhas dificuldades, os meus medos e receios não podem ser motivos para eu excluir ou não querer aquela criança em sala de aula.

 

Leia também:
+ O mito do preparo para incluir um estudante com deficiência

Diversificação de políticas

Em Florianópolis, as políticas públicas voltadas à educação inclusiva são planejadas e implementadas pela Gerência de Educação Especial, órgão subordinado à Secretaria Municipal de Educação. Um dos fatores que explicam os significativos avanços promovidos por essa Gerência é a continuidade de suas ações, independentemente da gestão político-partidária vigente. Segundo Rodolfo Pinto da Luz, Secretário Municipal de Educação, este aspecto favoreceu um amadurecimento gradativo, sem rupturas, de diversos aspectos das políticas locais. Além dos esforços para a oferta do AEE e a criação de salas multimeios em diversas unidades escolares, merecem destaque:

Formação continuada

O investimento na formação dos profissionais que atuam na rede de ensino foi um dos pilares que viabilizou a implantação do modelo inclusivo na cidade. Os professores da sala de aula comum e os gestores escolares demandavam uma formação focada nos fundamentos e princípios da educação inclusiva. Isso implicava a discussão sobre uma nova organização da escola e do currículo, que atendesse às diferenças humanas. Segundo Rosangela:

A diferença não está só na criança com deficiência. A criança sem deficiência também apresenta seus interesses próprios, seus ritmos, tempos e modos de aprendizagem. Então, é nesse sentido que se diferencia.

Já os professores do AEE necessitavam de uma formação mais específica, relacionada a estudos de caso, planos de atendimento especializado e recursos de acessibilidade. Os repertórios abordados envolviam tecnologias assistivas, comunicação alternativa, ensino de Língua brasileira de sinais (Libras), ensino da língua portuguesa para surdos etc.

Transporte

Florianópolis já dispunha de linhas de ônibus acessíveis em diversas regiões da cidade. Para os casos de estudantes que residem em locais de difícil acesso, foi criada uma política que disponibiliza veículos para o transporte desses alunos para as escolas.

Atendimento clínico

As escolas atuam como facilitadoras do encaminhamento dos estudantes aos serviços de saúde do município, por meio do Programa Saúde do Escolar e instituições especializadas conveniadas. Quando há suspeita da existência de algum tipo de deficiência, a equipe pedagógica aciona a gestão escolar e o caso é direcionado para a rede de atendimento clínico, agilizando a eventual confirmação por meio de um diagnóstico.

Recursos financeiros

A Gerência de Educação Especial tem autonomia para identificar e planejar necessidades de recursos financeiros para a área da educação inclusiva. Parte desses recursos são obtidos com o Ministério da Educação, que mantém uma série de programas voltados à educação inclusiva. Uma outra parte é provida pela própria prefeitura. Rosangela comenta que:

Nós temos algumas fontes. Uma delas é o ‘Plano de Ações Articuladas do Ministério da Educação’ que oferta algumas ações, como a implantação de salas de recursos multifuncionais… A gente conta com o apoio muito grande no sentido de recursos próprios, recursos da própria prefeitura, para aquisição de materiais, formação de professores, acessibilidade física.

Intersetorialidade

Segundo Rosangela, a questão da intersetorialidade é um grande desafio. Muitas vezes, as políticas públicas são fragmentadas, dificultando a criação de uma rede de serviços. Para mudar esse contexto, foi criada uma rotina de encontros envolvendo outras secretarias e órgãos da prefeitura, chamados de “reuniões da rede intersetorial”. Participam dessas reuniões profissionais da educação, saúde e assistência social com o objetivo de conhecer e aprimorar os serviços existentes.

Profissionais de apoio

Em 2005, as escolas municipais de Florianópolis começaram a receber estudantes com comprometimento físico-motor que necessitavam de acompanhamento de um adulto para alimentação, locomoção e cuidados pessoais. Visando atender essa demanda, a secretaria de educação contratou profissionais de apoio, com formação na área da educação. A medida gerou situações em que os estudantes com deficiência eram pedagogicamente atendidos de forma individualizada, separados das dinâmicas desenvolvidas em sala de aula. Segundo Rosangela, o sentido da inclusão se perdia aí:

A inclusão busca justamente que a criança esteja inserida na sala de aula, participando com todas as crianças, estabelecendo suas relações, e tendo o professor de sala de aula como o professor dela também.

Com a intenção de resolver esse impasse, em 2014 foi criada uma portaria municipal que assegura a contratação dos profissionais de apoio, ressaltando que “somente em casos específicos avaliados pelos professores das salas multimeios e autorizados pela Gerência de Educação Inclusiva, o professor auxiliar poderá acompanhar a um único estudante”. Esse processo mais criterioso acabou resultando em reações paradoxais, conforme explicado por Rosangela:

Essa portaria gerou um desconforto. Alguns pais foram ao Ministério Público. Mas muitas vezes, o melhor para os pais e o melhor para os promotores não é o melhor para a criança, porque se perde de vista essa possibilidade de interação da criança. O que a gente julga como um auxílio para a criança pode se constituir em uma barreira para a criança. É uma situação que sugere muita conversa, muito esclarecimento, tendo como foco o melhor para a criança. Não o melhor em nome da nossa concepção de escola. Não o melhor em nome dos pais que, às vezes, estão um tanto presos a uma postura de proteção. Nosso objetivo é sempre a promoção da autonomia e da independência de uma criança com deficiência.

O veto gerou um desconforto para algumas famílias que foram exigir providências com o Ministério Público de Santa Catarina. Buscando transformar a crise em oportunidade, Rosangela se aproximou do judiciário, oferecendo formação para promotores e juízes com o objetivo de esclarecer o embasamento conceitual que sustentava a portaria. Além disso, a Gerência de Educação Especial passou a assessorar o Ministério na tomada de decisões e na elaboração de regulamentações, sempre na perspectiva inclusiva.

Gestão com a comunidade
Marcos Cordeiro Bueno assumiu a direção da Donícia Maria da Costa em 2014. Aberto e atento às demandas da equipe pedagógica e da comunidade na qual a escola está inserida, optou por uma gestão democrática, envolvendo a Associação de Pais e Professores e o Conselho Escolar nas diversas deliberações do cotidiano.

Comprometido com o entendimento das particularidades da comunidade, Marcos busca construir um relacionamento com a Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis que seja, ao mesmo tempo, parceiro e autônomo. Segundo ele:

Quando há proximidade entre a política da secretaria e a escola, atuamos em parceria; quando não há essa proximidade, atuamos no enfrentamento. Houve situações em que conseguimos muitas coisas via secretaria e, muitas vezes, conseguimos via força da comunidade, com organização de manifestos e reivindicações. Muitas coisas saíram do papel em função disso.

Marcos citou alguns exemplos para ilustrar tais situações. Em virtude de dificuldades para a aplicação da Prova Floripa4 por falta de professores disponíveis, foi estabelecida uma parceria entre a escola e a secretaria municipal, que disponibilizou assessores para aplicar a prova. Por outro lado, diante da necessidade de construir uma cobertura na quadra poliesportiva, a escola conseguiu solucionar o problema por meio do enfrentamento, conforme observado no depoimento abaixo:

O prefeito já havia assinado o termo de autorização da obra. No entanto, as coisas não andavam, não saiam do papel. Então, todos da escola se reuniram e organizaram um manifesto. Marcaram data e a obra começou a acontecer.

Para lidar com tais conjunturas, Marcos dispõe do auxílio da equipe da gestão. Faz parte do grupo a supervisora escolar Cláudia, que acompanha o planejamento e o desenvolvimento do trabalho dos professores em sala de aula, zelando pela aderência ao projeto político-pedagógico (PPP). A equipe conta também com a orientadora educacional Ivanisse que acompanha o processo de desenvolvimento dos estudantes, avaliando dificuldades e facilidades. Em alguns casos, entrava em contato com a família. Em outros, conversava diretamente com o aluno, sempre com o objetivo de qualificar o ensino e a aprendizagem.

Para Ivanisse, a educação inclusiva é vista na escola Donícia Maria como uma abordagem que respeita o pressuposto legal. Para isso, vem sendo feito investimentos em materiais e profissionais para garantir que, dentro da sala de aula, o estudante com deficiência possa se desenvolver com sua turma e não apenas que ele tenha a garantia de matrícula. De acordo com Ivanisse:

Eu acredito que incluir é isto, é não estar só dentro da sala, mas é estar ali aprendendo com os recursos diversos que existem para garantir que ele possa aprender suprindo aquela dificuldade, aquela deficiência.

Em termos de infraestrutura física, a escola já conta com rampas de acesso, corrimãos, piso tátil e sinalização em braille. Também foram disponibilizadas pelo governo federal vários recursos de tecnologia assistiva, tais como: computadores, máquinas para digitação em braille, réguas, lentes de aumento, telescópios, entre outros. Esse conjunto de recursos foi essencial para a qualificação do AEE realizado nas salas multimeios.

A escola também tem o auxílio do Centro de Apoio Pedagógico para Atendimento às Pessoas com Deficiência Visual (CAP), vinculado à secretaria de educação. O centro é responsável por produzir textos e livros transcritos em braille, formato digital e versão em áudio dos materiais didáticos utilizados pela rede municipal de ensino, de forma a garantir acesso aos estudantes cegos ou com baixa visão.

O desenvolvimento do material e dos recursos de acessibilidade para os demais estudantes com deficiência é de responsabilidade das duas professoras do AEE, que trabalham período integral na escola. Segundo Marcos, a chegada dessas professoras, em 2015, foi fundamental para qualificar o ensino. Ambas são muito proativas, participam das reuniões bimestrais de planejamento e mantêm um contato direto, tanto com os professores da sala de aula regular quanto com os estudantes sem deficiência. Essa proximidade com o corpo discente é notória. Como exemplo, Marcos lembrou-se de uma ocasião em que um estudante cego tinha acabado de se matricular na escola e precisava utilizar uma máquina braille na sala de aula. A professora de AEE Juliana Martins aproveitou a oportunidade para demonstrar a todos os estudantes como o equipamento funcionava. Ao possibilitar um contato direto com aquele instrumento, contribuiu, de certa forma, para a diminuição do estigma em relação à deficiência e aos recursos de acessibilidade utilizados por aquele novo estudante.

A construção de um AEE proativo

Juliana acredita que não basta o estudante estar na escola para aprender. Acima de tudo, é necessária a integração de todos os envolvidos no processo de aprendizagem. Para isso, apostou na construção de relações efetivas com os professores da sala de aula regular. Sensível ao tema, sempre levou em consideração que alguns profissionais não tinham ainda experiência no atendimento de estudantes com deficiência. Nesses casos, Juliana adequa os materiais didáticos e, num primeiro momento, vai até a sala de aula para demonstrar na prática a utilização de tais recursos. Segundo ela:

As dúvidas e as dificuldades surgem lá; quando você apenas orienta, está presumindo um contexto. Quando você chega na sala de aula, muitas vezes esse contexto é outro.

A construção e a manutenção da integração idealizada pela professora Juliana consistem, também, em informar a todos os professores que a porta da sala multimeios sempre está aberta. Não há necessidade de marcar hora para conversar com ela:

Quando você estabelece que a pessoa precisa marcar um horário para falar contigo, você já está colocando um empecilho.

A professora de ciências, Salete, diz que sempre recebeu todo o apoio necessário. Juliana explicou-lhe como tornar acessíveis os materiais da Ana Carolina, enfatizando a importância da transferência dos conteúdos para a lousa da aluna e da utilização de imagens com bastante contraste.

Outro aspecto importante diz respeito à atenção dada ao planejamento. As professoras de AEE desenvolvem um estudo de caso sobre cada estudante com o objetivo de ter ciência do contexto no qual ele está inserido, qual a participação da família até aquele momento e quais as particularidades do seu percurso de aprendizagem. A partir da análise dessas informações em conjunto com as professoras de sala de aula comum, definem as atividades escolares que necessitam de acessibilidade.

Thaís Filó, professora de artes, relata que durante o planejamento pedagógico conversa com Juliana para apresentar as atividades que serão desenvolvidas com a turma de Ana Carolina. Ao saber que os estudantes iriam produzir seus próprios rostos em gesso, Juliana decidiu trabalhar alguns conceitos sobre auto percepção com Ana durante os horários de atendimento educacional especializado. Seu objetivo era deixá-la mais familiarizada com a própria imagem.

Leia também:
+ AEE e sala comum: trabalho colaborativo para a inclusão

As famílias como parte essencial

De acordo com a opinião da equipe pedagógica da escola, a qualidade do ensino dos estudantes com deficiência é diretamente dependente do fortalecimento das relações entre os educadores e os familiares desses alunos. Nesse sentido, alguns cuidados são necessários na orientação dada aos pais, conforme explicado por Juliana:

Nós atendemos também família. Por quê? Porque nós entendemos que o atendimento por si só, o confeccionar o material, o orientar o professor, não dá conta. Porque a vida escolar do aluno não é só na escola. Ele tem deveres de casa, ele tem saídas de estudo. Então, é para além da escola…Quando a gente pensa ‘vamos orientar a família’, como essa família vai ajudar a criança a fazer uma tarefa de casa, sem fazer por ela? Sem olhar para essa criança de uma forma assistencialista? A nossa preocupação é dar base para essa família ver essa criança de uma forma com potencial, com potencialidade. Ela consegue. Ela pode. A gente sempre mostra para as famílias o que o aluno produziu. Porque quando você fala ‘ele fez’ é uma coisa. Quando você termina o atendimento, às vezes cinco minutos antes, chama a família ou combina com a família ‘olha, hoje nós vamos te mostrar o que ele produziu essa semana’ ou o que ele produziu nas últimas duas semanas, então, a família já olha aquilo de uma outra forma.

Juliana comentou que esse foi um dos primeiros passos para ganhar a confiança da mãe de Ana Carolina que, aos poucos, foi cedendo e passou a ajudar a estudante em suas tarefas de casa. Com o auxílio da professora de AEE, ela fez, por exemplo, as pautas grifadas no caderno de Ana e produziu uma pequena lousa com papelão e contact (assim como a utilizada em sala de aula).

Além disso, a mãe sempre esteve muito presente. Leva sua filha todos os dias até a porta da sala de aula e espera o professor chegar. Segundo ela, isso é positivo “porque eu estou sempre na escola. Quando eles precisam falar comigo, eu estou ali, não precisa mandar me chamar. E quando eu tenho algo para dizer, eu vou até eles”. Outra evidência da importância dessa parceria com a família é o baixo índice de faltas da aluna, mesmo morando em bairro distante.

Bullying

Outra questão que demanda estudo e trabalho coletivo por parte da equipe pedagógica é a prática de bullying. Ana Carolina e suas amigas sentem isso na pele e expressam profundo desconforto com as brincadeiras agressivas e os xingamentos frequentes de seus colegas. Segundo Marcos, esse é um tema que implicava todos:

A única diferença nesse momento, falando para um pai, é que o filho dele tem um diagnóstico. Mas ele é uma criança como qualquer outra e vai sofrer bullying, da mesma forma. Pode ser pelo uso dos óculos, pode ser porque ele é mais quietinho, pode ser porque ele é negro, pode ser porque ele usa uma cadeira de rodas.

O diretor acredita que a origem dessa questão está na forma como a sociedade foi se organizando ao longo do tempo:

Infelizmente, nós temos várias deficiências do ponto de vista da educação. Então, a primeira deficiência está dentro das famílias. Não são poucos os pais, por exemplo, que a gente insiste que eles não podem incentivar o seu filho a bater nos outros, porque a primeira resposta é esta: ‘Filho, se você achar que está sofrendo bullying, vai lá e senta o cacete nele’. A gente senta e diz ‘Pai, é justamente isso que gera a ampliação desse processo, não é a violência que vai resolver’.

De acordo com Ivanisse, o bullying parece já fazer parte do contexto escolar. A equipe tem consciência de que, em algum momento do ano letivo, ia se deparar com o assunto. Todos estão atentos e os educadores são orientados a abordá-lo em sala de aula. Quando um caso é identificado, os estudantes envolvidos e seus respectivos pais são chamados para uma conversa com a orientadora. Além disso, foi criado um grupo no whatsapp para que a questão seja debatida durante o dia a dia, não sobrecarregando o horário da reunião com pais e professores.

Marcos entende que a atuação conjunta entre escola e família é essencial para que os alunos tenham condições de interagir com seus colegas, enfrentar situações de bullying e se construir como sujeitos de suas próprias histórias.

Desafios

Ana Carolina acabara de completar 12 anos. O medo do escuro é parte do passado. Suas conquistas no taekwondo, sua segurança para andar sozinha pela vizinhança e fazer compras para sua mãe são motivos de orgulho. Apesar de suas dificuldades com certas atividades, todos seus professores manifestam uma unânime percepção de que Ana progrediu muito em sua escolarização e autonomia durante o último ano.

Sua professora Salete prepara os materiais com bastante cor e contraste para que ela consiga enxergar. A grande quantidade de alunos e a indisciplina da turma torna necessária a criação de estratégias específicas para a Ana. Sua mãe segue atuando como grande aliada e incentivadora, exigindo esforço de sua filha:

Eu sempre digo: ‘Ana, vamos aprender a escrever, vamos aprender a ler’. Ela responde ‘Ah, mãe, eu quero ser professora’. Mas para você ser professora você tem que aprender a ler, você tem que estudar.

O apoio de Juliana, professora do AEE, continua sendo fundamental para que todos tenham a chance de se relacionar com os mesmos conteúdos curriculares, mesmo que em ritmos diferentes. O maior desafio é apoiar Ana para que ela conquiste autonomia na leitura e na compreensão de textos.

Para Marcos, a presença contínua da família no cotidiano não é a regra. Em geral, o que se observa é um distanciamento e uma falta de consciência de que os pais precisam acompanhar e participar de perto da vida escolar de seus filhos. Nesse sentido, a mãe de Ana é um exemplo positivo.

Rosangela reconhece que, apesar de todos os avanços conquistados, os esforços para transformar a rede de ensino de Florianópolis em um sistema único inclusivo concorrem com a cultura escolar conservadora que ainda se reflete no modo de conceber e organizar o currículo e no modo de avaliar os estudantes. Sem subestimar os obstáculos que virão pela frente, está convicta de que a educação inclusiva é um movimento sem volta para qualquer país. Ao mesmo tempo, demonstra paixão pelo movimento de inclusão escolar, nutrida pela possibilidade de gerar impactos positivos para toda a sociedade:

E é bom saber que todo mundo está nesse barco. Isso é novo pra gente, essa convivência com os que nunca conviveram. Só que isso vai trazer uma consequência muito boa para o mundo. Esse convívio não beneficia só a criança com deficiência. Beneficia a todos que têm a oportunidade de frequentar uma escola que reflete a vida como ela é. E a vida é assim.

Notas

¹ Apoio oferecido aos estudantes que apresentavam dificuldades de aprendizagem.

² Correspondem às salas de recursos multifuncionais (SRMs). Tratam-se de ambientes dotados de equipamentos, mobiliários e materiais didáticos e pedagógicos para a oferta do atendimento educacional especializado.

³ Rosangela colaborou com a criação da Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva, lançada pelo Ministério da Educação em 2008.

4 Estratégia de avaliação adotada pela Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis que tem como objetivo melhorar a qualidade da educação em sua rede pública de ensino.


Sobre os autores
Rodrigo Hübner Mendes é fundador do Instituto Rodrigo Mendes, organização que desenvolve programas de educação inclusiva. É mestre em administração pela Fundação Getúlio Vargas (EAESP), membro do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial) e Empreendedor Social Ashoka.

Tatiane Gonzalez é socióloga com mestrado em sociologia e pesquisadora sobre cultura e comportamento social na Indague Pesquisa e Conteúdo.

© Instituto Rodrigo Mendes. Licença Creative Commons BY-NC-ND 2.5 Site externo. A cópia, distribuição e transmissão dessa obra são livres, sob as seguintes condições: Você deve creditar a obra como de autoria de Rodrigo Hübner Mendes e Tatiane Gonzalez e licenciada pelo Instituto Rodrigo Mendes; é vedado o uso para fins comerciais; é vedada a alteração, transformação ou criação em cima dessa obra, a não ser com autorização expressa do licenciante.

Download da versão em PDF – 546KB

Deixe um comentário