Artigo traz a importância da qualificação docente e da afetividade para o desenvolvimento infantil na primeira etapa da educação
A educação é um direito de todos, sem distinção de qualquer tipo. Sendo assim, é um direito garantido por leis, que devem ser respeitadas, incentivadas e praticadas por todos os envolvidos, sem preconceitos, discriminação ou qualquer ato que possa prejudicar a prática pedagógica, bem como o processo de ensino-aprendizagem.
A educação inclusiva vem crescendo a cada ano em nosso país. De acordo com o Censo Escolar de 2020, 88% dos estudantes com deficiência estão matriculados em escolas inclusivas. Por conta disso, os olhares e os estudos no tema estão aumentando, beneficiando a prática pedagógica.
Este artigo, apesar de focar em estudantes com autismo, traz ferramentas que são inerentes a uma educação na perspectiva inclusiva, o que significa que podem ser usadas para todos os estudantes.
Transtorno do Espectro Autista
Estima-se que, atualmente, 1% da população mundial tenha Transtorno do Espectro Autista (TEA), conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Graças a pesquisas e avanços tecnológicos, tanto nas áreas de neurologia quanto de psicologia, é possível haver um diagnóstico cada vez mais cedo e, com isso, garantir que os tratamentos e as intervenções se iniciem o quanto antes, ajudando no desenvolvimento pleno da pessoa com TEA.
As crianças e jovens com autismo têm três ambientes principais de convívio: o lar, juntamente com seus familiares; a clínica ou consultório, onde as terapias e intervenções são realizadas por um especialista ou por uma equipe multidisciplinar; e a escola, com os colegas e educadores.
Para que o professor auxilie o desenvolvimento de seu estudante e efetivamente o inclua em sua turma e no ambiente escolar, surge a dúvida: como a formação continuada e a afetividade auxiliam educadores no processo de inclusão da criança com Transtorno do Espectro Autista na educação infantil?
Legislação inclusiva
De maneira bastante abrangente, a legislação brasileira assegura às pessoas com deficiência seus direitos como cidadãos conscientes e participativos na sociedade.
A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) é destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais, visando sua inclusão social e cidadania. Dentre os principais direitos estão: direito à vida; direito à saúde; direito à educação; direito ao trabalho; direito à previdência social, entre outros.
Exclusivamente para as pessoas com TEA, há a Lei Berenice Piana (Lei 12.764/12), que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtornos do Espectro Autista, que admite o TEA como uma deficiência e, com isso, reconhece os direitos previstos por lei para as pessoas com algum tipo de deficiência também a essa população.
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Se delimitarmos a pesquisa especificamente para a área da educação na cidade de São Paulo, por exemplo, temos ainda a Portaria nº 8.764, de 23/12/2016, que regulamenta o Decreto nº 57.379/2016, que por sua vez, institui no Sistema Municipal de Ensino a Política Paulistana de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Dentre os principais serviços de educação especial ofertados destacamos o Atendimento Educacional Especializado (AEE) e o Centro de Formação e Acompanhamento à Inclusão (CEFAI).
Quanto ao AEE, no que se refere à educação infantil, é possível destacar o seguinte trecho da Portaria nº 8.764:
Art. 25 – A oferta do AEE na educação infantil deverá considerar o disposto na Nota Técnica Conjunta N° 02/2015/MEC/SECADI/DPEE/SEB/DICEI, de 04 de agosto de 2015, que trata de “Orientações para a organização e oferta do Atendimento Educacional Especializado na Educação Infantil”.
§ 1º – O atendimento educacional especializado aos bebês e crianças público-alvo da Educação Especial será feito, preferencialmente, no contexto da Unidade Educacional e em seus diferentes espaços educativos, não substituindo as experiências oferecidas para todos os bebês e crianças, de acordo com as propostas pertinentes ao currículo da infância.
§ 2º – A organização do AEE na Educação Infantil demandará a articulação entre o professor de referência do agrupamento/turma e o professor responsável pelo AEE, que, de forma colaborativa e articulada, observam e discutem:
a) as necessidades e potencialidades dos bebês e crianças público-alvo da Educação Especial;
b) as formas de promoção da estimulação necessária para a aprendizagem e desenvolvimento dos bebês e crianças com deficiência;
c) a definição de estratégias e recursos pedagógicos e de acessibilidade que removam as barreiras encontradas neste processo, bem como favoreçam o acesso deste público a todas as experiências educacionais, assim como sua interação no grupo e sua plena participação;
d) as atividades próprias do AEE articuladas ao currículo da infância.
§ 3º – Para os bebês e as crianças de 0 a 3 anos, matriculadas nos Centros de Educação Infantil – CEIs, CEMEIs e EMEIs, e para as crianças de 4 a 5 anos, matriculadas em EMEIs ou CEMEIs em período integral, o AEE deverá ser realizado no seu horário de frequência à unidade educacional, com atuação colaborativa entre os professores responsáveis pelo AEE colaborativo ou itinerante e os demais profissionais da U.E.
§ 4º – As crianças de 4 e 5 anos com matrícula na EMEI ou no CEMEI, em período parcial, poderão ser encaminhadas para o AEE no contraturno escolar, após avaliação pedagógica/estudo de caso que indique não ser possível o atendimento nas formas previstas nos incisos I e III do art. 23, utilizando como critério a necessidade específica da criança em relação às atividades próprias do AEE elencadas no art. 22.
(SÃO PAULO, 2016).
Do ponto de vista legal e teórico, a educação inclusiva é uma realidade na cidade de São Paulo, pois essas leis garantem o acesso à educação para todos. A gestão pública, por meio dos órgãos competentes, disponibiliza para a população o espaço, os profissionais e os recursos para o atendimento especializado das crianças e jovens com deficiência.
Contudo, a formação continuada e a afetividade são aliadas imprescindíveis para que a educação inclusiva aconteça de fato.
Formação continuada
De acordo com a Lei nº 9.394/96, a formação em pedagogia (licenciatura ou graduação) é o passo inicial para quem deseja atuar na educação infantil, conforme estabelecido pelos artigos 62 e 64.
A educação infantil é uma das áreas de atuação em que se faz necessário formação continuada e o aprimoramento intelectual constante dos profissionais, tendo em vista que estes profissionais trabalham diretamente o desenvolvimento humano em sua fase mais importante: a primeira infância.
O documento “Padrões Básicos de Qualidade da Educação Infantil Paulistana”, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, evidencia essa necessidade:
Entretanto, a formação inicial dos docentes e gestores deve ser assegurada pela formação continuada em serviço, que atenda a real necessidade desses profissionais, possibilitando que ampliem seus conhecimentos, reflitam sobre suas ações, redimensionem sua prática para que o trabalho se efetive, garantindo a qualidade do atendimento, do aprendizado e do desenvolvimento das crianças de zero a cinco anos.
Nesse sentido, a formação continuada dos docentes e gestores favorecerá a construção de práticas pedagógicas que desenvolvam a autonomia, a criatividade e imaginação dos bebês e crianças, considerando que são sujeitos potentes e capazes, que requerem e merecem educadoras e educadores sensíveis e disponíveis às culturas infantis e singularidades vivenciadas no cotidiano.
(SÃO PAULO, 2015).
A formação continuada é uma condição necessária para que os educadores possam prestar o melhor atendimento aos seus estudantes e, ainda, desconstruírem mitos e preconceitos persistentes na sociedade.
Além disso, todo conhecimento relacionado ao TEA e à educação inclusiva, adquirido por meio de estudos e pesquisas, auxilia na ampliação do repertório de práticas docentes que podem trazer muitos benefícios para alunas e alunos.
A educação com a perspectiva inclusiva entende a singularidade do aluno e utiliza de uma didática adequada, tanto no trato com as famílias, que muitas vezes tem dificuldade de entender a deficiência, como nas propostas pedagógicas que visam os alunos com e sem deficiência.
(SILVESTRE, São Paulo, 2018).
Os docentes que estiverem capacitados para acolher e contribuir para o desenvolvimento de seus estudantes auxiliarão não apenas na formação de um cidadão, mas também de uma sociedade melhor e mais inclusiva.
Afetividade no processo de desenvolvimento
A afetividade no processo de desenvolvimento cognitivo humano é evidenciada por autores de áreas de estudo distintas como: educação, psicologia e filosofia. Dentre os principais teóricos da afetividade na educação estão Jean Piaget (1896 – 1980), Lev Vygotsky (1896 – 1934) e Henri Wallon (1879 – 1962), cujas teorias têm em comum o ambiente e a socialização como fatores fundamentais para o desenvolvimento e aprendizagem. De acordo com Kochhann e Rocha (2015):
Piaget (2004, p. 34) que “nunca há ação puramente intelectual, assim como também não há atos que sejam puramente afetivos”. Nessa perspectiva, o autor acredita que afetividade e cognição sejam indissociáveis, e que o homem age ao ser motivado, de acordo com a sua moral, podendo ter influências do meio em que vive. Do mesmo modo que a aprendizagem se dá a partir de um processo de acomodação e assimilação, e a afetividade é a energética que impulsiona as ações, tendo como suporte a razão.
(KOCHHANN, ROCHA, 2015, p. 528).
Para Vygotsky, o desenvolvimento humano se estabelece, principalmente, por meio das relações sociais do indivíduo, considerando o histórico e a cultura. É a chamada teoria Sociointeracionista. Outro importante legado deixado por Vygotsky para a Educação é o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal:
ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL é: a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.
(VYGOTSKY, 2007, p. 97).
O conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal pode ser utilizado em qualquer fase de evolução da criança, tendo ou não alguma deficiência ou transtorno, pois utiliza como base o seu próprio desenvolvimento.
Embora um dos principais comprometimentos causados pelo Transtorno do Espectro Autista seja justamente na interação social, Vygotsky acreditava na inclusão e no desenvolvimento de todos. A crença nas possibilidades do indivíduo e no papel do aprendizado no desenvolvimento dessas possibilidades está bastante explícita nas obras de Vygostky . Assim, ele diz:
“O comportamento atualizado é apenas uma infinitésima parte do comportamento possível. O homem está cheio de possibilidades não realizadas (…)”.
“Todas as crianças podem aprender e se desenvolver… As mais sérias deficiências podem ser compensadas com ensino apropriado, pois o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental”.
(COSTA, 2006 Apud Vygotsky, 1989)
Segundo Mahoney (2012), o conceito de afetividade está diretamente atrelado a cognição e motricidade:
É uma teoria que facilita compreender o indivíduo em sua totalidade, que indica as relações que dão origem a essa totalidade, mostrando uma visão integrada da pessoa, do aluno. Ver o aluno dessa perspectiva põe o processo ensino-aprendizagem em outro patamar porque dá ao conteúdo desse processo – que é a ferramenta do professor – outro significado, expondo sua relevância para o desenvolvimento concomitante do cognitivo, do motor e do afetivo.
(MAHONEY, 2012. p. 10).
A afetividade na educação infantil é um tema de interesse dos teóricos desde o século passado, que atualmente vem sendo estudado também na educação inclusiva e nas intervenções com os estudantes com autismo.
A afetividade não se restringe ao cuidado e carinho com os bebês e as crianças, envolve também paciência e respeito aos processos, olhar atento e escuta ativa às necessidades e empatia. Esses fatores auxiliam a criança a desenvolver confiança e segurança em si mesma e no adulto de referência (mães, pais, responsáveis e educadores). Contribuem também no desenvolvimento psicomotor, cognitivo e social. A afetividade é uma ferramenta importante para o amadurecimento infantil de forma geral, a ser praticada não apenas no ambiente escolar, mas em todos os espaços em que a criança convive, especialmente no ciclo familiar.
Formação continuada para uma sociedade inclusiva
Embora seja notável a melhoria com relação a algumas décadas atrás, as pessoas com deficiência ainda continuam lutando para ter participação plena na sociedade, mesmo com as leis que garantem direitos a elas. Com acesso e participação, em breve, a real inclusão será uma realidade.
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A sociedade passa por mudanças. Os conceitos e as teorias sobre o desenvolvimento humano mudam. Novas descobertas são feitas nas áreas de neurociência, psicologia, pedagogia, entre outras, e a especialização possibilita ao professor acompanhar essas transformações e estar preparado para elas. Por isso, no campo da educação, a formação continuada é fundamental para a prática docente inclusiva.
Assim como a inclusão, a afetividade é uma ferramenta poderosa, que traz benefícios para a evolução do ser humano, desde a infância até a fase adulta, pois está diretamente ligada ao aprimoramento motor e cognitivo. No caso de pessoas com autismo, auxilia também no desenvolvimento social.
Inclusão, especialização e afetividade são os primeiros passos para atender uma criança com o Espectro na educação infantil, dando-lhe segurança e tranquilidade quanto ao dia a dia dentro da escola.
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Referências
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Centro de Formação e Acompanhamento à Inclusão – CEFAI. Site da Prefeitura Municipal da Cidade de São Paulo, 2009. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/noticias/?p=12432>. Acesso em: 17 janeiro 2022.
COSTA, D. A. F. Superando limites: a contribuição de Vygotsky para a educação especial. Rev. Psicopedagogia, Belo Horizonte (MG), v. 23, ed. 72, p. 232-240, 2006.
GENTIL, K. P. G.; NAMIUTI, A. P. S. Autismo na Educação Infantil, Revista Uniara, Araraquara (SP), v. 18, n. 2, p. 176-185, dezembro 2015.
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MAHONEY, A. A.; ALMEIDA, L. R. Henri Wallon: Psicologia e Educação, Ed. Loyola, 11ª ed., São Paulo, 2012, 87 p.
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SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da Cidade: Educação Infantil. São Paulo: SME / COPED, 2019.
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STRAVOGIANNIS, A. L. Autismo: um olhar por inteiro, Ed. Literare Books International, São Paulo, 2021, p. 336.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente: o Desenvolvimento dos Processos Psicológicos Superiores. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2007, 224 p.
Renata Pantaleão Ubugata é pedagoga pelo Centro Universitário São Camilo, pós-graduada em Educação Infantil pela Faculdade Venda Nova do Imigrante – FAVENI e professora de Educação Infantil na rede conveniada da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
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