Projeto de história busca fomentar uma educação antirracista

Foi oportunizada a estudantes do ensino médio uma visão mais plural, inclusiva e democrática ao discutirem justiça social e equidade

A Escola de Educação Básica Dr. Jorge Lacerda fica na cidade de Joinville, na região norte do estado de Santa Catarina. A unidade pertence à rede estadual de ensino e atende aproximadamente 600 adolescentes no ensino médio. 

 Nossa escola tem oito alunas e alunos público-alvo da educação especial que, além de estarem nas salas de aula, também são atendidos na sala de recursos durante o Atendimento Educacional Especializado (AEE). 

A composição étnica dos estudantes é bastante heterogênea, pois temos recebido muitos jovens de outras regiões, como Pará, Bahia e Pernambuco, além de imigrantes, oriundos da Venezuela e do Haiti. 

Sobre a parte econômica da cidade, a principal atividade é a indústria, portanto há um intenso fluxo migratório das pessoas em busca de oportunidades de trabalho. 

De modo geral, as famílias que compõem a nossa comunidade são de baixa renda e alguns vivem em condições de vulnerabilidade social. As mães, pais e demais familiares dos estudantes, na maioria dos casos, não terminaram o ensino básico. 

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Diversidade escolar

Dentro do contexto escolar, buscamos trazer aos estudantes a diversidade em que estão inseridos. A equidade é uma preocupação constante em nossa rotina, a fim de reforçarmos as diferenças como um valor e uma oportunidade de crescimento para todos. 

Discutimos muito sobre o papel social da escola, como espaço democrático de convivência e de saberes. Entendemos que todos os corpos são territórios que carregam vivências, sentimentos, saberes e sensações que precisam ser valorizados na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. A escola serve para exercitar a nossa humanidade, a criatividade, a empatia. 

Para isso, em 2021, nas aulas de história das turmas do segundo ano, analisamos em sala o currículo escolar e os materiais didáticos e chegamos à conclusão de que, apesar de alguns avanços, eles ainda apresentam para os jovens uma narrativa histórica eurocêntrica, branca, masculina e heteronormativa. 

Durante essa conversa, a pergunta que certo dia uma jovem fez nos levou a refletir: “ode estão as mulheres na história?” e eu complementei: “onde estão as mulheres pretas na história?”. 

A partir dessa reflexão, iniciamos o projeto “Pretas Empoderadas”. A iniciativa está em consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), pois torna o saber significativo aos alunos, de acordo com sua realidade e seus dilemas. Além disso, o projeto atende à Lei nº 10.639/2003, que determina o ensino da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial.  

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A primeira etapa do projeto foi de pesquisa em sites educacionais e descobrimos o fato de existir um imenso universo feminino de atuação em várias áreas. As descobertas dos estudantes foram trazidas para discussão em sala de aula. 

Tivemos que selecionar os trabalhos das mulheres que iríamos aprofundar nas pesquisas. Dessa forma, chegamos ao consenso de adotar o critério da interdisciplinaridade e da representatividade. 

As biografadas eram originárias de diversas regiões do Brasil e do mundo. Todas elas tiveram atuação nas mais variadas áreas do saber. O importante era ver a mulher preta representada e atuante na política, nas artes, na liderança de quilombos, na ciência. Não nos detivemos a uma cronologia, vários tempos históricos foram pontuados. 

Nos debates que promovemos ao longo do ano, os estudantes tiveram contato com pesquisas científicas na área de humanas que atestam, por meio de dados, a existência do racismo estrutural, institucional e como ele prejudica o avanço da justiça social e da equidade em nosso país.  

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Desdobramentos do projeto

Uma das propostas do projeto era estreitar a relação entre estudantes e família. Os jovens compartilhavam em casa sobre o que estavam pesquisando e muitos familiares demonstravam interesse pelas pesquisas. Para alcançar mais pessoas, os estudantes criaram um perfil no Instagram chamado “escola.inclusiva”, uma forma, também, de documentar todas as etapas do projeto. 

A iniciativa teve apoio da gestão escolar e os demais docentes contribuíram com sugestões e apoiaram o desenvolvimento das atividades. 

O crescimento e apoio ao projeto possibilitou a realização de uma exposição sobre o que foi pesquisado. Nas aulas de história, os estudantes produziram ilustrações e prepararam essa grande exposição para toda a comunidade escolar. 

Foto da ilustração de Suzanne Sanité Bélair feita por uma estudante. Na ilustração, Suzanne, uma mulher negra, veste um uniforme militar na cor azul com detalhes dourados. Fim da descrição.
Foto: Angela Maria. Fonte: arquivo pessoal.

A professora de arte nos auxiliou na montagem, curadoria e organização da exposição que realizamos na culminância das atividades. 

Usamos como referência artística a instalação da artista norte-americana Judy Chicago “The Dinner Party”. A obra consiste em uma mesa, em forma triangular, na qual as mulheres são homenageadas. O trabalho faz menção à santa ceia, “o jantar mais famoso da história”, em que somente homens estavam presentes. 

Em pátio escolar, estudantes acompanham exposição “Pretas Empoderadas” onde há três mesas, reunidas em forma de triângulo, com alguns pratos pretos com ilustrações na parte de cima. Penduradas no teto com barbante, há ilustrações de mulheres negras. Fim da descrição.
Foto: Angela Maria. Fonte: arquivo pessoal.

Em nosso critério, foram 26 mulheres negras homenageadas. Dentre elas, está Ana Lúcia Martins, a primeira mulher negra vereadora em Joinville, eleita em 2020. Alguns estudantes puderam estar na Câmara dos Vereadores e conversar com ela, onde foi destacada a importância da representatividade negra, as dificuldades em lidar com um parlamento predominantemente branco e masculino, a obstáculos que enfrentou no início do mandato, os projetos que têm proposto e a rotina na Câmara. 

Além disso, a vereadora conversou sobre a necessidade de um ensino descolonizado, inclusivo e plural, sobre a Lei 10.639 e como as pessoas têm dificuldades em reconhecer a existência do racismo estrutural. 

Duas jovens colam uma ilustração em um isopor para a exposição “Pretas empoderadas”. Fim da descrição.
Foto: Angela Maria. Fonte: arquivo pessoal.

Com todo esse material, conseguimos realizar uma bela exposição com as ilustrações de cada uma, acompanhados com informações biográficas das mulheres pesquisadas. Durante uma semana, mães, pais, demais familiares e responsáveis, docentes, discentes, funcionários e interessados tiveram a oportunidade de apreciar e aprender mais sobre a trajetória de mulheres pretas, que sofreram um processo de apagamento histórico. 

Transformações

O projeto potencializou a discussão de diversos conceitos, como relações étnico-raciais, história de gênero, racismo estrutural, apropriação cultural e a importância da arte como instrumento de reflexão aliada ao conhecimento histórico. Conseguimos dar voz àquelas que sequer são citadas nos livros escolares.  

Muitos dos estudantes se sentiram representados pela primeira vez na vida, como é o caso dos jovens haitianos, quando estudamos sobre as mulheres que lutaram e contribuíram com a vitória durante a Revolução Haitiana 1791-1804. 

Foi oportunizado aos jovens uma visão mais plural, inclusiva e democrática da história e do território escolar. Conseguimos incluir todos nesse projeto, evolvendo os estudantes que muitas das vezes eram mais tímidos. Eles participaram ativamente, como os estudantes imigrantes e uma jovem cadeirante. 

Avaliamos que a iniciativa contribuiu para fomentar uma educação antirracista. Cada um que participou está mais instrumentalizado para argumentar sobre o tema com familiares, colegas e demais integrantes da comunidade.  

No início do ano letivo de 2022, ao debatermos sobre atualizações no Projeto Político-Pedagógico (PPP), expus sobre a proposta “Pretas Empoderas” e discutimos a necessidade da construção de um currículo antirracista. A direção e os demais docentes concordaram, contribuíram com ideias e o projeto está incorporado ao PPP como uma atividade que será realizada ao longo do ano; sua culminância ocorrerá em novembro, no mês da consciência negra. 

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A Escola de Educação Básica Dr. Jorge Lacerda foi uma das escolas premiadas na edição de 2022 do Prêmio Territórios. 

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