Professores do AEE: como ampliar o número?
Cleuza Repulho, especialista no tema, comenta o déficit de profissionais, discute os impactos disso e aponta caminhos para reverter o cenário e fortalecer a educação inclusiva

Muito foi conquistado ao longo dos anos de luta para assegurar direitos educacionais às pessoas com deficiência, caso do atendimento educacional especializado (AEE). Esse serviço, definido pela legislação brasileira e previsto na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), de 2008, tem o objetivo de identificar, elaborar e organizar recursos de acessibilidade e estratégias pedagógicas que eliminem barreiras para o desenvolvimento e a aprendizagem de todos os estudantes considerando suas necessidades específicas.
O professor do AEE atua no suporte à educação de estudantes com deficiência, em um trabalho complementar, e não substitutivo, ao que é realizado pelo professor regente. Sendo assim, os dois educadores devem colaborar entre si em prol da inclusão. Quando necessário, é o docente do AEE que deve promover o diálogo com outros profissionais, como aqueles da área da saúde (psicólogos, terapeutas educacionais, fonoaudiólogos etc.), para garantir o respeito às necessidades do aluno.
Todo estudante público-alvo da Educação Especial tem direito ao AEE, mas nem todos precisam desse serviço. Ainda assim, atualmente, o número de docentes é considerado baixo. Em 2023, cerca de 59 mil professores atuavam no AEE em todo o ensino básico no Brasil, segundo o Painel de Indicadores da Educação Especial, iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Instituto Unibanco e com apoio do Centro Lemann. Esse número é bem menor quando comparado aos 178 mil estabelecimentos de ensino em funcionamento no país ou as mais de 140 mil escolas com matrículas da Educação Especial.
“Não adianta você só abrir a vaga e ter a matrícula efetivada. O importante é que esse estudante aprenda e se desenvolva. Para isso, é necessário disponibilizar todos os recursos de acessibilidade, dentre os quais os professores do AEE. A escola é o espaço de produção de conhecimento, então não basta esse aluno estar na sala de aula, ele precisa aprender.”
A afirmação é de Cleuza Repulho, consultora da Diretoria de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (DGPE/FGV) e coordenadora técnica do Programa Juntos pela Educação em Pernambuco. Em conversa com o DIVERSA, a especialista discute as causas do déficit de profissionais e as estratégias possíveis para mudar o quadro atual
Esse bate-papo inaugura uma série de conteúdos que publicaremos ao longo do ano sobre as informações que compõem o Painel de Indicadores da Educação Especial. A cada vez destacaremos um ou mais dados e convidaremos especialistas para comentar o que eles revelam sobre o cenário atual e quais caminhos precisamos trilhar para fortalecer a educação inclusiva.
Temos um déficit de professores do AEE em todo o Brasil?
Sim. Em primeiro lugar, porque vivemos uma crise de professores, não só para o atendimento aos estudantes com deficiência, transtorno do espectro do autismo (TEA), superdotação ou altas habilidades. Há um apagão [de educadores] em todas as áreas do conhecimento. Está cada vez mais difícil os jovens se sentirem atraídos pela docência por conta da desvalorização da profissão, uma vez que falta plano de carreira, a remuneração é baixa e não há estabilidade. Quando olhamos para o AEE, uma área bem específica, a crise se multiplica.
Esse contexto é consequência da falta de prioridade. Quando analisamos os dados, temos de lembrar que eles se referem a todas as redes estaduais e municipais de ensino, o que inclui escolas urbanas, rurais, quilombolas e indígenas. São, portanto, realidades diversas. E cada rede tem autonomia para tomar suas próprias decisões sobre a questão. Inclusão é uma obrigatoriedade, mas a maneira como ela vai ser feita é de responsabilidade dos estados e dos municípios, e é aí que temos os maiores problemas. Em alguns lugares, os gestores fazem isso de maneira mais adequada, com mais investimentos, com preocupação em relação à formação e em manter um ou dois professores em cada escola. Em outras, isso não acontece. E isso mesmo existindo uma série de políticas públicas que ajudam a melhorar a educação inclusiva e de pesquisas que indicam os benefícios para os estudantes. É sempre uma questão de escolha e de prioridade fazer acontecer.
Como esse contexto impacta na inclusão escolar?
O trabalho dos professores do AEE nas escolas, principalmente nas salas de recursos multifuncionais (SRM), tem se mostrado fundamental para a inclusão dos estudantes público-alvo da Educação Especial. Portanto, não ter o profissional na escola afeta totalmente o desenvolvimento desse aluno, porque, na maioria dos casos, significa que não há ninguém provocando a reflexão da comunidade escolar a respeito do que é inclusão de fato. Quando o estudante não está em um ambiente inclusivo, as oportunidades e os avanços que ele vai ter serão infinitamente menores do que aqueles oferecidos aos alunos de uma escola inclusiva, onde todos podem efetivamente participar e fazer escolhas.
Toda escola deve ter um professor do AEE?
Acredito que toda escola com matrícula de estudantes público-alvo da Educação Especial deva ter um professor do AEE. Mas isso não quer dizer que o estudante com deficiência seja de responsabilidade apenas desse educador. A escola inteira é responsável por todo e qualquer estudante. A presença do professor do AEE é para garantir o direito daquela criança ou adolescente, mas também serve de apoio ao restante do corpo docente, principalmente para a tomada de decisões durante as discussões de casos mais complexos e para o apoio nas formações em perspectiva inclusiva.
No cotidiano, esse educador facilita a vida de todo mundo, pois melhora tanto a condição de trabalho do professor regente na eliminação de barreiras quanto a condição de aprendizagem do aluno. Quando você tem um parceiro também empenhado em conhecer melhor o estudante, ressaltando que não estamos falando de partir da deficiência, mas de compreender quem é aquela criança ou jovem, ele pode te ajudar a tomar decisões. Isso é um benefício imenso para o processo de ensino e aprendizagem do aluno.
Como reverter o atual cenário da falta de professores do AEE?
O primeiro passo é formar mais professores em todas as áreas do conhecimento. Isso é primordial. Não tem como rever isso sem ter pessoas formadas. Além disso, os professores do AEE precisam ter o seu trabalho entendido dentro da escola. Muitas vezes a desvalorização acontece no espaço escolar, onde os pares e a gestão não reconhecem a importância daquela atividade. É preciso reconhecer que eles podem ser a grande diferença entre o aluno aprender ou não.
Outro fator é a formação inicial. Toda e qualquer pessoa que se forme em pedagogia ou licenciatura que o habilite para docência precisa ter estudado sobre Educação Especial na perspectiva inclusiva de forma mais consistente e próxima da realidade. O futuro docente deve entender o conceito de inclusão, saber reconhecer as diferenças entre inclusão e os outros paradigmas [exclusão, segregação e integração] e compreender qual é o papel de cada um no processo de ensino e aprendizagem. A preparação deve acontecer para aquele que pensa em atuar em qualquer uma das etapas da Educação Básica ou do Ensino Superior.
O Ministério da Educação (MEC), como gestor federal e gestor maior da educação no Brasil, tem um peso indutor de política pública. Ele foi estratégico no lançamento da PNEEPEI, ao garantir a matrícula das crianças com deficiência na rede regular. Da mesma maneira, está sendo agora com o cuidado em melhorar a qualificação dos cursos de docência, principalmente ao brecar as formações na modalidade de ensino a distância (EAD).
Na questão da inclusão, o Ministério tem de criar políticas públicas nacionais que induzam uma organização melhor dentro das redes para obter o aumento de profissionais do AEE. Essas políticas devem visar critérios mínimos de contratação dos professores, com definições claras a respeito de quem pode atuar na área. Devem também garantir um número suficiente de profissionais para que as necessidades das redes possam ser atendidas, principalmente as públicas, que é onde está a maior parte da população. Se isso não acontecer, vamos ter as chamadas ilhas de excelência, quando apenas algumas redes investem e conseguem ter resultados melhores. Não é o que queremos.
Mais da metade dos poucos professores do AEE que atuam na área não têm formação continuada em Educação Especial. Quais os caminhos para mudar essa realidade?
Esse é outro problema dentro do universo da educação. Temos pessoas que atuam no AEE por terem uma experiência mínima com estudantes com deficiência, mas sem uma especialização de fato. E há também aqueles que têm especialização, mas não necessariamente na perspectiva inclusiva. Acontece de muitos terem formação continuada específica sobre um tipo de deficiência, o que não é o propósito do trabalho.
Volto na questão do MEC como caminho para solucionar o problema. É preciso normatizar nacionalmente as formações que servem como habilitação no trabalho do AEE. Não podemos ter diferentes critérios em cada rede. Assim como não basta o estudante com deficiência estar na escola, ele precisa aprender. Não basta a escola ter um docente no cargo de AEE, ele precisa ser qualificado.
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