Soroban na aprendizagem de alunos com deficiência intelectual

Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado desenvolvida em uma universidade pública do estado do Paraná, a qual investigou as contribuições do uso do material didático Soroban na aprendizagem de conteúdos relacionados aos números e operações e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores de estudantes com deficiência intelectual.

A Associação Americana de Psiquiatria (APA) define a deficiência intelectual (transtorno do desenvolvimento intelectual) como um transtorno “[…] com início no período de desenvolvimento que inclui déficits funcionais, tantos intelectuais como adaptativos, nos domínios conceitual, social e prático” (APA, 2014, p. 33).

Vigotski (1896-1934), em seus estudos sobre a deficiência intelectual, questionou a avaliação classificatória dessas pessoas por meio de testes quantitativos. Segundo Vigotski (1997), esses testes informam o desenvolvimento real da pessoa e não indicam os processos em desenvolvimento, que não podem ser mensurados quantitativamente. Afirmou, também, que as pessoas com deficiência intelectual não podem ser consideradas menos desenvolvidas, e sim, desenvolvidas de forma diferente, peculiar.

Outro posicionamento questionado por Vigotski (1997), dizia respeito à educação das pessoas com deficiência intelectual, fundamentada no uso excessivo de materiais concretos no ensino dos conceitos escolares. Para ele, as experiências concretas se constituem como instrumentos mediadores, entretanto, a sua utilização como único recurso metodológico limita o desenvolvimento do pensamento abstrato.

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Ao centrar-se nas capacidades das pessoas com deficiência e não em suas limitações, Vigotski (2000) constatou que a aprendizagem impulsiona o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, funções essas específicas do ser humano, relacionadas a capacidades mentais como linguagem, memória, atenção, raciocínio, entre outras.

Assinala-se, ainda, que é preciso maximizar o acesso ao conhecimento, superando as lacunas existentes no processo de ensino e aprendizagem para esses estudantes. Ao se considerar tais fatos, propôs-se para esta pesquisa o ensino de Soroban como uma ferramenta para a realização de cálculos matemáticos.

Compreende-se que o uso dessa ferramenta simplifica e agiliza o cálculo, como afirmou, há muitos anos, Kojima (1954), e alicerça o processo educacional, como a aprendizagem de conceitos matemáticos referentes aos números e operações, o desenvolvimento do cálculo mental, da memória, do pensamento e outros (DONLAN; WU, 2017; FREEMAN, 2014; BRASIL, 2012).

Soroban como instrumento para cálculos

De acordo com Galperin (2009), no processo de aprendizagem é necessária a ação dos estudantes sobre o objeto de conhecimento para que haja a compreensão dos fenômenos, primeiro no plano material e no plano da linguagem e, finalmente, a internalização dessas ações no plano mental.

Verificou-se, por meio de observações no processo de ensino e aprendizagem para estudantes com deficiência intelectual, a dificuldade na compreensão do conceito de número e dos princípios do sistema de numeração decimal. As pessoas com essa deficiência apresentam dificuldades nas habilidades que exigem o desenvolvimento das funções psicológicas superiores como atenção, percepção, memória, linguagem e pensamento (PASSOS-SANTOS; SHIMAZAKI, 2020).

Constatar tais dificuldades levou ao desenvolvimento de um material didático que minimizasse ou eliminasse as possíveis dificuldades que viessem a ser apresentadas pelos estudantes no decorrer do estudo. Nesse sentido, elaborou-se o material didático Soroban Dourado, com o objetivo de promover a compreensão da estrutura do Soroban pelos estudantes com deficiência intelectual no processo de ensino do uso dessa ferramenta. 

No cenário internacional, as pesquisas sobre o Soroban na área da educação têm como público-alvo professores, estudantes com dificuldades de aprendizagem e com deficiência visual (DONLAN; WU, 2017; FREEMAN, 2014). A pesquisa desenvolvida por Shen (2006), na China, discute as contribuições do ábaco mental, uma etapa posterior ao ensino do uso do ábaco físico, no desenvolvimento das habilidades de cálculo por estudantes com deficiência intelectual.

Assim, constatou-se o campo de investigação acerca das contribuições do Soroban e o desenvolvimento do Soroban Dourado, um recurso de tecnologia assistiva, para o ensino de conceitos matemáticos para estudantes com deficiência intelectual, uma vez que há um número de estudantes jovens e adultos que frequentam as escolas e, muitas vezes, não apropriam os conceitos nelas ensinados. Dessa forma, as discussões presentes neste estudo apresentam avanços, tanto para a área da educação especial, como para a área de ensino inclusivo de matemática.

Soroban: um instrumento de cálculo manual e retangular, composto pela parte externa, denominada moldura. Possui réguas numéricas como as do ábaco. Fim da descrição.
Fonte: arquivo pessoal.

Metodologia

Para o desenvolvimento da pesquisa-ação seguiram-se os passos estabelecidos por Engel (2000) e Thiolent (1996), entre eles: i) pesquisa preliminar, por meio de observação das aulas ministradas pela professora regente da turma; ii) o desenvolvimento de uma problemática: Que contribuições a utilização do Soroban pode apresentar para a aprendizagem da unidade temática números em estudantes com deficiência intelectual? iii) o estabelecimento de uma diretriz para a investigação: o uso do Soroban, aliado a uma metodologia de ensino adequada, pode criar zonas de desenvolvimento proximal em estudantes com deficiência intelectual, os quais terão avanços nos seus conhecimentos sobre aritmética, com possibilidades de ampliar o uso social desse conteúdo e promover o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.

Essa diretriz foi elaborada tendo como referência os estudos desenvolvidos por Vigotski (2001; 2000; 1997), Galperin (2009a; 2009b; 2009c) e Talizina (2009) referente à aprendizagem e desenvolvimento, e em estudos sobre o Soroban realizados por Donlan; Wu (2017), Freeman (2014), entre outros; iv) desenvolvimento de um plano de ação; v) implementação do plano de ação e vi) análise e avaliação da implementação do plano de ação. 

O desenvolvimento do plano de ação deu-se por meio de intervenção pedagógica, na qual foram realizadas sessões didáticas para o ensino do uso do Soroban e do conteúdo números e operações, organizadas conforme as orientações de Vigotski (2000), Galperin (2009c), Talizina (2001) e Fernandes et al. (2006). A implementação do plano de ação teve a duração de 40h, divididas em duas sessões semanais com a duração de 2h cada uma. 

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Resultados e discussões

No início da pesquisa verificou-se que a maioria dos estudantes não tinham definidas as ações de contar e fazer operações, entretanto relacionavam esses conceitos às ações cotidianas, ou seja, em nível de conceitos espontâneos e não de conceitos científicos (VIGOTSKI, 2001).

Na acepção de alguns estudantes, o número era uma representação simbólica, dissociada de um valor quantitativo, o que poderia ser resultado de um ensino mediante atividades repetitivas, que privilegiava apenas o traçado dos algarismos sem estabelecer uma relação entre número e algarismo e o significado dessa relação. Galperin (2009) assinala que o número é o resultado de uma ação mental a partir de uma primeira ação, que foi material e, no caso desta pesquisa, a computação de objetos.

Mesmo que alguns ainda não houvessem se apropriado de quantidades maiores que a dezena, a inserção do Soroban como instrumento para registro de quantidades e operações entre elas promoveu progressos na formação do conceito de número, uma vez que, por meio dele, os estudantes operavam com quantidades, e não com a sua representação.

A pesquisa propôs a introdução do Soroban como ferramenta de cálculo para o ensino de Matemática para estudantes com deficiência intelectual em um país em que seu uso é cultural apenas para pessoas com deficiência visual. Assim, além de os estudantes aprenderem o conceito de número, também precisaram aprender os conceitos relativos à operacionalização com o Soroban e utilizá-lo na realização dos cálculos.

Como resultado cita-se, também, progressos nas habilidades de computação, compreensão de conceitos, a aplicação das habilidades desenvolvidas em diferentes contextos, além dos escolares, e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores.

Considerações finais

A pesquisa mostra que a deficiência intelectual não é um obstáculo para a aprendizagem dos conhecimentos matemáticos ensinados na escola, todavia, para que ela se efetive, são necessários signos e instrumentos mediadores adequados. As lacunas geradas no processo de aprendizagem muitas vezes são decorrentes de metodologias de ensino que acreditam que todas as pessoas aprendem da mesma forma e, em função disso, não atendem as necessidades específicas de estudantes com deficiência intelectual.

Verificou-se que a utilização do Soroban como ferramenta de cálculo promoveu a aprendizagem do conteúdo proposto para o estudo por estudantes com deficiência intelectual.

Após a realização da pesquisa, julga-se de grande relevância a inserção do Soroban para o ensino de Matemática para os estudantes com a deficiência destacada, uma vez que permite o acesso aos conhecimentos relacionados aos números e às operações e facilita a sua aprendizagem, além de possibilitar o desenvolvimento de novos conceitos, tais como as operações de multiplicação, divisão etc.

Da mesma forma, ressalta-se que a utilização do Soroban Dourado promoveu a compreensão dos princípios do sistema de numeração decimal e da estrutura e operacionalização do Soroban, trazendo contribuições para o processo de ensino e aprendizagem para estudantes com deficiência. Em função de o material ter sido utilizado apenas por população de estudantes com deficiência intelectual, sobreleva-se a necessidade de validação por outras populações, com demais deficiências, para que se comprove a sua eficiência e funcionalidade como material de apoio para o ensino do uso do Soroban.


Referências

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Este artigo foi publicado originalmente e na íntegra na Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, em 30/12/2021, e está disponível para leitura em https://doi.org/10.21723/riaee.v16iesp.4.16073 

 

Lucia Virginia Mamcasz-Biginheski é docente da Graduação e Pós- Graduação em Promoção da Saúde. Doutorado em Ensino de Ciência e Tecnologia (UTFPR). 

Elsa Midori Shimazaki é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação. Doutorado em Educação (USP). 

Sani de Carvalho Rutz da Silva é docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciência e Tecnologia. Doutorado em Ciências dos Materiais (UFRGS).

 

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