Quando tudo deu errado (será mesmo?)

Para Maria da Paz de Castro, especialista em educação inclusiva, refletir sobre o que não deu certo faz parte do cotidiano do educador na busca por práticas pedagógicas inclusivas

Três mulheres brancas conversam sentadas ao redor de uma mesa: uma loira, um cabelo castanho-escuro e a outra com mechas loiras. Duas estão com cadernos e canetas. Fim da descrição
Encontro do Diversa (2017): formação continuada é momento propício para debater quais estratégias não deram certo e pensar em como replanejá-las. Crédito: Alfredo Brant

Trabalhar com a educação inclusiva, mais do que procurar formas e criar estratégias para a boa convivência e a aprendizagem das nossas crianças, é fazer valer para todos o que está previsto por lei e pela ética dos direitos humanos: o direito à educação. Nós, educadores, contamos hoje com uma legislação bastante consistente (fruto de uma luta que não acabou), que não deixa dúvidas: todas as crianças e adolescentes podem e devem estar na escola, usufruindo de tudo que esse espaço oferece e contando com as mesmas oportunidades.  

No entanto, como já sabemos, essa garantia não é o que faz com que nossos alunos público-alvo da educação especial vivam plenamente os anos de escolaridade. Recebê-los na escola é apenas o primeiro passo de um processo muito, muito longo e complexo, mas é quando também se inicia a nossa formação para a educação inclusiva. 

Explico: ainda que a sensação de “não estar preparado” ou “nunca ter trabalhado com uma criança com essas características” esteja sempre nos assombrando, é preciso considerar todo o conhecimento que construímos ao longo do nosso percurso na educação, na nossa atuação no dia a dia em sala de aula e na escola como um todo. Além desse conhecimento que os estudos e a experiência nos proporcionaram, contamos também com um outro saber: trata-se de um saber a respeito de cada um de nossos alunos, que começamos a construir no momento em que nos encontramos com eles pela primeira vez e, de alguma forma, nos leva a pensar, levantar hipóteses, tomar decisões e arriscar algumas ações pedagógicas e educativas que, muitas vezes, têm efeitos muito importantes.  

Ocorre, porém, que nem sempre nós nos damos conta desse saber. Maria Cristina Kupfer, importante referência em nosso país no que diz respeito ao desenvolvimento infantil e à inclusão escolar, nos ajuda a entender essa ideia quando diz, no livro “Práticas inclusivas em escolas transformadoras: acolhendo o aluno-sujeito”:  

“Existe, porém, um outro tipo de saber que os professores desconhecem saber, mas sabem. Trata-se do saber inconsciente que, por ser inconsciente, é desconhecido. É um saber não sabido… Esse é o saber que comanda as relações de um professor com seu aluno. Ele está presente quando o professor consegue ensinar mais um aluno que outro, quando descobre uma palavra capaz de acalmar um aluno. (p. 314).

Esse saber, que quase nunca é percebido pelo professor, está em jogo em todo o processo de construção de um percurso escolar que inclua verdadeiramente a todos e a cada um e os ensine tudo que são capazes e têm direito de aprender. Porém nem sempre lançamos mão dele. É comum optarmos pelo caminho que nos parece mais seguro, pautando-nos pelo que dizem os especialistas (de outros campos, que não a educação), os diagnósticos, os prognósticos, e até o senso comum, quando na verdade precisamos orientar nossas ações apoiados em nosso saber.  

Não podemos esquecer que é o professor quem mais conhece seus alunos e, portanto, é o único ator da cena escolar (e da sociedade) que está autorizado a planejar, optar por uma ou outra estratégia e escolher o melhor caminho para ensinar. Ainda assim, é preciso dizer que seu saber, assim como o saber de qualquer outra pessoa, é incompleto e passível de erros, e esses erros, diferentemente do que se pode pensar, costumam nos levar a análises ricas e profícuas, não só a respeito dos estudantes, mas também de nossa própria prática.  

Retomo aqui alguns exemplos de situações que nos mostram isso com bastante clareza. O primeiro deles trata de Marcelo (nome fictício), uma criança com Síndrome de Down, que com oito anos frequentava o segundo ano do ensino fundamental e apresentava a visão muito prejudicada. Assim que chegou à escola, antes mesmo que sua professora tivesse tempo e oportunidade de conhecê-lo um pouco, eu, que era coordenadora de práticas inclusivas da escola, achei por bem procurar os especialistas que o atendiam, começando pela oftalmologista, que de pronto me orientou a produzir para ele um caderno de atividades que utilizasse uma fonte de letras de tamanho garrafal e cores que possibilitassem um contraste importante entre o fundo, os textos e as figuras.  

Em pouco tempo, Marcelo recebeu seu novo caderno, totalmente diferente dos de seus colegas no que diz respeito à impressão e ao tamanho. Era um “cadernão” que, obviamente, não cabia em sua mochila e ocupava toda sua mesa de trabalho. Sua professora logo percebeu o incômodo que esse material lhe trazia, mas insistimos, visto que se tratava de uma orientação muito bem pautada por uma profissional especialista em deficiência visual. 

Acreditávamos que logo ele se acostumaria e seguimos insistindo no uso, ainda que ele deixasse claro que isso não o ajudava em nada, até porque ele não usava. Sua indignação e até a raiva que nos dirigia nesses momentos não eram, para mim, motivos suficientes para ouvi-lo e renunciar à nossa decisão. 

Até que um dia, ao entrar na sala de aula, nos deparamos com o caderno na lata de lixo da classe. Foi nesse momento que pudemos perceber o quanto ele era capaz de, ainda que não fizesse uso da fala, nos dizer como se sentia, indicando como ensiná-lo e como não o ensinar. Só depois disso deixamos, em tempo de atraso, que o caderno seguisse seu destino; voltamos nossos olhos para ele e conseguimos, assim, perceber que incluir Marcelo na escola e fazer com que ele aprendesse não era algo que se limitava a resolver seu problema visual.  

Nossa tarefa era muito maior que essa. Mais que isso: ele era muito mais que um menino com baixa visão e Síndrome de Down. Era alguém que dizia de si, sabia muitas coisas, mas não dava conta de circular pela escola com um caderno maior que ele. Nosso “erro”, na verdade, foi o que nos levou a buscar outras maneiras de ensiná-lo, educá-lo e olhar para ele como um aluno capaz de aprender e fazer muito. Nosso planejamento, já permeado de metas, objetivos e estratégias, teve seu fim antes mesmo de começar a ganhar vida. E outro surgiu, desta vez considerando os interesses e os saberes que o Marcelo nos mostrou. Foi também esse processo que nos ajudou a, algum tempo depois, já no quarto ano, sugerir aos pais que sua lancheira, estampada com personagens do “Cocóricó” (que encontramos algumas vezes ao lado da lata de lixo), fosse substituída por uma que refletisse e estivesse mais próxima aos interesses de crianças de sua idade.  

Outro exemplo que ajuda a pensar nessa questão é um que acompanhei em minha atuação como formadora de professores. Ele ocorreu em uma sala de aula dos anos iniciais do ensino fundamental de uma escola pública de São Paulo. A professora, antes mesmo de terem início as aulas, escolheu para seu aluno com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) uma mesa encostada à dela, considerando a ideia predominante nos meios escolares, sociais e médicos, de que pessoas com TEA são refratárias ao contato com os colegas, e visando também proporcionar um atendimento individualizado constante, enquanto as outras crianças se organizavam em duplas de trabalho.  

Logo nos primeiros dias, porém, ela percebeu o estudante arrastando sua mesa para perto dos colegas e postando-se assim todos os dias. No início, ela insistia em voltar à organização original, mas isso foi se mostrando cada vez mais difícil, e seu aluno, diferentemente do que se podia imaginar, ficava muito à vontade ao lado das crianças e atento aos seus movimentos, o que o levou a realizar algumas atividades e acompanhar o grupo muitas vezes.  

Penso aqui, baseando nesses relatos e nessas ideias tão simples quanto importantes, que os erros com os quais a gente se depara podem cumprir um papel tão ou mais importante na nossa trajetória que os acertos. Analisar uma situação “exitosa”, por assim dizer, pode nos ajudar bastante, mas jamais nos levará a abrir tantos caminhos quanto os erros que cometemos. Vale aqui considerar também a ideia de que, se não conseguirmos enxergá-los como algo que, além de nos revelar muitos aspectos das situações que enfrentamos, nos coloca em movimento, estaremos também deixando passar as oportunidades preciosas que os erros, nossos e dos alunos nos apontam, pois uma pessoa que não erra, na verdade, não está aprendendo muita coisa.  

Penso, por último, que a palavra-chave, quando nos comprometemos a fazer da escola um lugar de vida e de aprendizagem para todas as crianças, seja aposta. Apostamos, em primeiro lugar, que todas as crianças são capazes de aprender e nos mostrar como [o processo dela ocorre]. Apostamos também que, por mais que nossos planos e objetivos iniciais não alcancem os resultados que esperamos, nunca “deram errado”, pois são essas as situações que nos dão a oportunidade de pensar de maneiras diferentes em nossos alunos, considerando nosso saber a respeito de cada um deles. Como uma última aposta, convido a todos a considerarem a ideia de que nós, educadores, acertamos errando e erramos acertando, e, por isso, é sempre bom escrever nossos planos, metas e objetivos a lápis.    


Sobre o autor

Maria da Paz de Castro Nunes Pereira (Gunga) é professora polivalente por formação há 30 anos, especialista em educação inclusiva, orientadora educacional, pedagógica e de práticas inclusivas, e formadora em Educação em Direitos Humanos e alfabetização. Atualmente, é assessora e formadora da área de Educação Inclusiva e Educação em Direitos Humanos em escolas da cidade de São Paulo e outros estados, selecionadora do Prêmio Educador Nota 10 e parceira do Centro de Educação Terapêutica Lugar de Vida. 


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