A educação inclusiva é para todas as pessoas

Atualizado em 16/01/2023

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE), proposta pelo Governo Federal em 2008, trouxe inúmeros benefícios para o público-alvo da inclusão no Brasil e mostrou que, quando vistos a partir de seus potenciais, pessoas com deficiência podem exceder as expectativas que olhares anacrônicos e preconceituosos lhes impõem. 

É fato que a educação inclusiva ainda precisa caminhar muito para atingir seus melhores resultados. A mudança é de longo prazo e passa pela modificação da visão dos objetivos da educação (de uma educação “bancária” para uma libertadora, como sugere Paulo Freire, 1997). 

Para possibilitar tal avanço, faz-se necessária uma luta constante contra o conservadorismo segregacionista ainda presente na sociedade e que tenta influenciar diretrizes nacionais, como se viu na Política Nacional de Educação Especial (PNEE), decretada em 2020, quase imediatamente declarada inconstitucional e revogado definitivamente em 2 de janeiro de 2023. Tal decreto buscava minimizar os avanços obtidos até aqui e desprezar os esforços de participação plena. A PNEE parecia entender que a educação inclusiva se refere a “onde” a educação deve acontecer (em espaços comuns ou segregados?), e não a “como”, ou seja, com que estratégias pedagógicas e didáticas. Faz, nesse sentido, uma redução “posicional” (Nilholm, 2021) da discussão.

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O principal problema dessa visão posicional é não entender que a proposta de uma educação inclusiva é para todas as pessoas, e não uma ideologia de educação especial. Significa uma nova postura pedagógica e sociopolítica, com foco na remoção das barreiras à plena participação de todas e todos.

Educação para todos

Tal esforço se torna especialmente relevante em países como o Brasil nos quais, por muitos séculos, diversos grupos estiveram excluídos ou segregados da educação, como as pessoas com deficiência, mas, também, as pessoas negras, as comunidades indígenas, as populações economicamente vulneráveis, as pessoas com dificuldade de aprendizagem, entre outros.  

Infelizmente, ainda impera entre muitos a lógica da integração na educação, que advoga que os espaços educacionais não se modifiquem e permaneçam apenas para alguns poucos privilegiados, cabendo a cada um desses grupos excluídos lutar em condições desiguais para se adaptar a um modelo pedagogicamente desatualizado e ineficaz de educação.  

Dentre os mitos utilizados para manter tal ideologia, um dos mais utilizados é o de que os ambientes segregados seriam melhores para a performance tanto dos estudantes com deficiência quanto daqueles que não possuem deficiência, posto que seus defensores acreditam que o primeiro grupo “atrapalharia” a aprendizagem do último. 

Uma ampla revisão bibliográfica, realizada por Szumski et al. (2017), mostra que tal crença não encontra suporte ao se avaliar as práticas inclusivas. Como resultado desse estudo, descobriu-se uma ligeira correlação positiva entre o sucesso acadêmico e a prática inclusiva nas salas de aula comum para estudantes sem deficiência, em países do hemisfério norte. Ou seja, escolas e classes inclusivas fazem com que toda a turma aprenda melhor. 

Esses autores afirmam que suas evidências “mostram que não apenas estudantes da educação especial podem se beneficiar dessa forma de ensino – o que foi demonstrado em todas as meta-análises realizadas até agora […] e em diversos estudos de larga escala abordando o tema […] -, mas também que a educação inclusiva pode ser benéfica para estudantes sem necessidades específicas de aprendizagem” (Szumski et al., 2017, p. 29, tradução nossa). 

A correlação entre efetividade do ensino e inclusão aumenta quando se olha para o conceito de educação inclusiva: nos locais em que ele é visto como uma mudança de paradigma, ao invés de uma estratégia de educação especial, o sucesso do modelo aumenta. No entanto, a eficácia diminui em locais que partem das premissas de que 1) o sucesso acadêmico é mais importante do que outros valores (ou seja, o objetivo da educação é que estudantes tirem notas elevadas); 2) estudantes devem estudar em grupos homogêneos; e 3) decisões devem ser baseadas em modelos médicos de deficiência (Szumski et al., 2017, p. 31). 

Essas três características, no entanto, ainda são bastante comuns no Brasil. Elas podem ser vistas nas práticas escolares adotadas por diversas instituições de ensino, e mesmo na PNEE de 2020. Para superá-las, é preciso compreender qual é a proposta da educação inclusiva, para além da perspectiva posicional. 

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Citando a definição utilizada pelo Instituto Rodrigo Mendes, no DIVERSA: “A educação inclusiva pode ser entendida como uma concepção de ensino contemporânea que tem como objetivo garantir o direito de todos à educação. Ela pressupõe a igualdade de oportunidades e a valorização das diferenças humanas […]. Implica a transformação da cultura, das práticas e das políticas vigentes na escola e nos sistemas de ensino, de modo a garantir o acesso, a participação e a aprendizagem de todos, sem exceção”. 

Como exemplo, podem ser ressaltados três princípios desse paradigma e seu impacto sobre a educação para todas e cada pessoa: 

  • Retirada de barreiras educacionais: o contínuo esforço para que se retirem as barreiras metodológicas, instrumentais, programáticas, atitudinais (Sassaki, 2009) e quaisquer outras que se fizerem presentes é a marca que diferencia a educação inclusiva de modelos integrativos, segregacionistas ou excludentes.

Torna-se parte do processo de ensino e aprendizagem o olhar atento às dificuldades geradas pela interação com o ambiente, e tal postura beneficia a toda a população de estudantes. Essa falta de atitude permite compreender por que estudantes falham, tendo ou não deficiência. 

Por essa razão, a inclusão não pode estar restrita às Salas de Recursos Multifuncionais, nem sob responsabilidade apenas dos profissionais especialistas. Se é fato que o Atendimento Educacional Especializado (AEE) faz parte da retirada das barreiras, os corpos docente e gestor também são responsáveis por identificá-las nos espaços, nas políticas institucionais, na didática, nos métodos e nas ferramentas que usam e, em especial, em suas crenças e atitudes sobre o potencial de seus aprendizes. 

  • Educação para autonomia: ao colocar seu foco nos processos singulares de aprendizagem, e propor-se a meta de encaminhar estudantes para a autonomia e a cidadania, independentemente de suas características pessoais, a educação inclusiva sugere uma didática menos centralizada na transmissão de conhecimento pelo professor e no chamado “aluno médio”. 

Em uma classe inclusiva, é necessário disponibilizar diferentes métodos pedagógicos, formas de apresentação de conceitos e ferramentas didáticas e tecnológicas, de forma a permitir ao aprendiz “determinar suas metas, levar adiante suas atividades educacionais, controlá-las, analisá-las e avaliá-las, assumindo a responsabilidade sobre a própria aprendizagem, [o que o] leva à autonomia e à prontidão para aprendizagem por toda a vida” (Chekhratova et al., 2022, p. 17, tradução nossa).  A educação para autonomia se baseia, em escolas inclusivas, em três elementos-chave: o direito à participação, o princípio de autonomia progressiva e o reconhecimento do potencial de ação (agency) de todo o corpo estudantil (Esteban, 2022). 

  • Colaboração e formação de redes: quando o ensino deixa de ser individualizado e individualista e passa a ser visto como um processo coletivo, no qual estudantes são encorajados a criar vínculos uns com os outros, assim como com docentes e comunidade escolar, tem-se resultados positivos na performance acadêmica, como demonstra a pesquisa de Allan e Persson (2016). Tais autores ressaltam que a formação de redes e o apoio à colaboração tiveram efeitos significativos sobre o sucesso acadêmico de todo o corpo estudantil, com uma melhora ainda maior para estudantes com baixo desempenho (com ou sem deficiência). 

A ideia dessa pequena contribuição não é a de desprezar as dificuldades que a inclusão sofre no país, como dificuldades de financiamento, intervenções políticas que se sobrepõe às questões técnicas, investimento insuficiente em formação do corpo docente e da gestão escolar. Mas tais problemas não apagam o fato de que, como sociedade, ainda estamos apegados ao modelo de aulas centrado no saber docente e que tem como objetivo a nota.  

Estamos acostumados a pedir laudos médicos e vemos a segregação como prática social ainda aceitável. Tais crenças são como profecias autorrealizadoras: o fato de acreditarmos nelas faz com que as tentativas de mudança fracassem. 

Como já aprendemos com o Efeito Pigmaleão (Rosenthal & Jacobson, 2003), quanto menos um educador acredita no potencial de sua turma, menor a chance de que participantes dessa turma cheguem ao seu verdadeiro potencial. É preciso vencer os preconceitos para acreditar no potencial de todos!


Referências

Allan, J., & Persson, E. (2016). Students’ perspectives on raising achievement through inclusion in Essunga, Sweden. Educational Review, 68(1), 82–95.

Chekhratova, O., Kovalenko, O., Petrenko, V., Pohorielova, T., & Ved, T. (2022). Developing students’ autonomy and responsibility via promoting digital and media literacy in an English-language classroom. Amazonia Investiga, 11(52), Article 52.

Esteban, M. B. (2022). Children’s Participation, Progressive Autonomy, and Agency for Inclusive Education in Schools. Social Inclusion, 10(2), 43–53.

Freire, P. (1997). Educação “bancária” e educação libertadora. In M. H. S. Patto (Ed.), Introdução a Psicologia Escolar. Casa do Psicólogo.

IRM. (n.d.). O que é educação inclusiva? Diversa. Retrieved November 28, 2022, from 

Nilholm, C. (2021). Research about inclusive education in 2020 – How can we improve our theories in order to change practice? European Journal of Special Needs Education, 36(3), 358–370.

Rosenthal, R., & Jacobson, L. (2003). Pygmalion in the classroom: Teacher expectation and pupil’s intellectual development (Newly expanded ed). Crown House. 

Sassaki, R. K. (2009). Inclusão: Acessibilidade no lazer, trabalho e educação. Revista Nacional de Reabilitação (Reação), Ano XII, 10–16. 

Szumski, G., Smogorzewska, J., & Karwowski, M. (2017). Academic achievement of students without special educational needs in inclusive classrooms: A meta-analysis. Educational Research Review, 21, 33–54.


Augusto Galery é psicólogo e pós-doutor em psicologia social pela USP. É pesquisador no Laboratório de Psicanálise e Psicologia Social da USP, e no Grupo de Estudos Vida das Ideias: Sociedade, Democracia e Direitos Humanos, da Fecap, investigando as áreas de sociedade inclusiva e educação inclusiva. Organizou o livro “A escola para todos e para cada um”, da Ed. Summus. Atualmente, é professor da Fecap, onde também coordena o Núcleo de Acessibilidade e Inclusão. 

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