Por meio da leitura e da produção de poesias, estudantes reconhecem sua história e assumem seu pertencimento étnico-racial
Em 2019, parcerias com estudantes, familiares e espaços culturais do entorno escolar permitiram a realização do projeto “Eu posso ser poeta!” e, como resultado do projeto, do Sarau Heranças Afro na Escola Municipal de Ensino Fundamental Anna Silveira Pedreira, situada no Jardim São Luiz, em São Paulo (SP).
Criei o projeto de língua portuguesa a partir da realidade dos meus estudantes, periféricos e majoritariamente negros, que mostravam baixa autoestima e se opunham a assumir sua cor de pele e a identidade a ela associada.
A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME) divulgou em 2015 que, do total dos matriculados na rede de ensino paulistana, aproximadamente 230.000 não declararam a sua cor. A pesquisa é bastante sugestiva no que tange à negação da negritude por estes sujeitos e vai ao encontro do que vivenciei com meus educandos: numa das primeiras aulas do projeto, na qual lhes perguntei sobre a identidade racial deles, os termos mais recorrentes foram: “moreno”; “pardo”; “mais clarinha”; “escurinha”.
A escolha vocabular usada nas respostas dos estudantes e a pesquisa feita pela SME sinalizam um grave problema de aceitação da identidade racial, decorrente do conflito engendrado na dificuldade de reconhecimento de si em face da desvalorização social e institucional da história e identidade da população negra no Brasil.
Como educadora, acredito que a educação é um recurso fundamental para desfazer as assimetrias raciais que passaram a estruturar as relações entre negros e brancos. Isentar-se disto é permitir a manutenção do status quo que não garante a humanidade e a dignidade da população negra. É autorizar que educandos negros continuem a ter sua trajetória escolar afetada negativamente, tornando-os, muitas vezes, alvos do analfabetismo funcional e da evasão escolar, como mostra o Mapa da Violência de 2016.
Deste modo, notei a urgente necessidade de criação de práticas educacionais que desfaçam essa distorção, de modo que não apenas o censo passe a condizer com a realidade, ou seja, revele que a maioria de nossos alunos e alunas é negra; mas, também, o mais importante: que eles e elas tenham uma autoestima positiva no que se refere ao seu pertencimento étnico-racial.
Microrrevoluções por meio de poemas
No início do projeto “Eu posso ser poeta!”, meus estudantes não possuíam hábitos de leitura, principalmente de textos literários e nenhum repertório de autoria negra, bem como apresentavam dificuldades em produções textuais simples. Havia uma resistência muito grande em tentar expressar-se por meio da escrita.
Nossas primeiras produções poéticas revelaram textos escritos em prosa e sem nenhuma característica do gênero poema presente, não havia rima, ritmo ou figuras de linguagem.
Elegi o gênero poema como instrumento deflagrador das discussões que pretendia fazer e que me auxiliaria a atingir os objetivos do projeto que descreverei a seguir, e também por acreditar que tal gênero é capaz de provocar catarses, microrrevoluções subjetivas, alterar cosmovisões sobre si e o outro, e contar histórias há muito tempo silenciadas, inclusive as suas.
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Apropriação de sua história e cultura
O desejo era que os estudantes se apropriassem de sua própria história e cultura, compreendessem o racismo como um fenômeno histórico e se engajassem no processo de reconstrução da própria identidade nas esferas individual e coletiva. E que estudantes não negros também possam reconhecer a trajetória de luta da população negra a quem sempre o Estado negou e nega direitos e colocar-se ao lado dela na luta por uma sociedade mais justa pautada em relações raciais não hierarquizadas.
Nossa mensagem é formativa e, nesse sentido, também política e pedagógica. E no processo de conscientização, de imersão crítica na realidade, os estudantes ampliaram sua leitura do mundo (das opressões a que nossos corpos historicamente estão submetidos) por meio da palavra, da linguagem do texto literário, poético.
Numa relação de continuidade, usaram a leitura da palavra como instrumento para ressignificarem o mundo, para contar a sua própria história ou a sua compreensão dela. Como bem nos ensina Paulo Freire (1987): pedagogia é antropologia, o homem se faz homem a partir do momento em que é capaz de dizer sua palavra.
Fortalecimento de identidade
Organizado em três blocos temáticos, o projeto nos possibilitou a leitura de poemas para desconstruir o imaginário criado sobre o continente africano, que reitera as teses de precariedade, ausência de saberes e incapacidade de autodeterminação.
Poemas como Canto IV – Navio Negreiro, Castro Alves, Canto das negras lágrimas, Sérgio Vaz e a canção Heranças Bantu, do Bloco afro Ilê Aiyê nos ajudaram a recontar uma outra história sobre África, focamos no Império de Gana e Mali.
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Em seguida, iniciamos o estudo de uma série de poemas que nos permitiram recontar uma história de resistência do povo negro diante do sistema escravista. Alguns dos textos lidos foram: Sou negro, de Solano Trindade; Zumbi, de Jorge Ben Jor; A menina que nasceu sem cor, de Midria da Silva; A chibata da Revolta, de Sérgio Vaz; e trechos do romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves.
Cada texto foi estudado em uma aula, adotando diferentes estratégias de leitura. Distintas abordagens foram realizadas: ora diálogos com outros textos, ora com artes visuais. Também realizamos uma saída pedagógica ao Museu Afro Brasil, a fim de que os alunos visitassem as sessões Heróis da Resistência e Intelectualidades Negras.
Cada texto lido me permitiu chamar a atenção do aluno para o recurso linguístico que mais se acentuava no poema (anáfora, aliteração, sinestesia, antítese, personificação, metáfora ou comparação). Nesses instantes, aproveitava para conceituar o termo, acrescentar outros exemplos previamente pensados para efetivar a compreensão dos estudantes acerca das estratégias discursivas.
Produções poéticas dos alunos
O último passo foi iniciarmos nossas produções poéticas. Para mim, era importante que a proposta de produção autoral dos poemas viesse acompanhada de uma intenção comunicativa clara e que estimulasse os alunos para o desafio da escrita. Então, além de produzir poemas para apresentá-los em nosso Sarau Heranças Afro (existente há três anos), faríamos intervenções poéticas num documentário realizado por outro projeto existente na escola, o Cineclub.
Para preparar os estudantes a criarem seus próprios poemas, planejei as aulas em quatro importantes oficinas de escrita poética que aconteceriam ao longo do segundo semestre. Além disso, recebemos em nossa escola os poetas e poetisas negros: Midria da Silva, Igor Chico, André Vieira e Tawane Teodoro.
Cada um deles compartilhou com os estudantes suas experiências e saberes enquanto poetas, variadas técnicas e procedimentos de escrita, para que cada estudante pudesse construir o seu repertório.
Houve um processo de reconhecimento doloroso das alunas e dos alunos com o eu-lírico dos poemas estudados e o mesmo desejo de transgressão com o ideal de ego branco que haviam internalizado. Ambos produziram textos nos quais destrancaram territórios de dor, rememoraram experiências negativas que viveram e feriram sua estética.
Os poemas refletem uma alteração nas subjetividades desses estudantes em relação à forma como se veem. Aos poucos, eles foram construindo ou fortalecendo identidades pautadas em si mesmos, vinculadas a uma memória ancestral e referenciadas em personagens, artistas e intelectuais negros.
Eu também posso ser poeta!
Tivemos como principais objetivos o combate e o repúdio às discriminações de raça, gênero e classe; contribuição para a elevação da autoestima dos estudantes negros, reconstruindo uma identidade positiva em relação a sua cor, grupo social e cultura; rompimento com o ideal de brancura como único desejável; e empoderamento das meninas para que se sintam confiantes a estar plenamente no mundo, ocupando os espaços que historicamente lhes foram negados.
Depois de abrir discussões sobre os temas em aula, fazíamos a leitura de poemas que permitiram desconstruir o imaginário sobre o continente africano, contavam a história de resistência do povo negro escravizado e falavam da identidade do negro no século XXI.
Após cada leitura, as alunas e os alunos a expressavam de maneiras performáticas, como por meio de danças, reflexões, entre outros, onde puderam se apropriar de repertórios diversificados e reinterpretá-los, criando outras formas de expressão. A escolha de repertório, que ia de Castro Alves a um rap dos Racionais MCs, aproximou os alunos da poesia.
Ao escrever e reescrever poemas, debatendo traços de estilo dos diversos gêneros poéticos abordados em aula, os estudantes refletiram sobre a variação linguística e sua conexão com a identidade e as relações de poder. E ainda tomaram consciência dos elementos estéticos do texto, os jogos de palavras, as rimas, as repetições que marcam o ritmo, as intenções do autor, a beleza da linguagem pelo uso de metáforas, sinestesias, entre outros recursos estilísticos.
Seja na organização do Sarau Heranças Afro, do espaço, na elaboração de performances cênicas, ou na produção de textos autorais, desvelamos o sujeito protagonista existente em cada um dos estudantes. Também os levamos a se reconhecerem como agitadores culturais e verem no sarau um evento de grande importância produzido por eles, apresentados em colégios próximos.
A produção de textos poéticos foi tão vasta, tamanho o entusiasmo dos estudantes, que buscamos parceiros (Cooperifa e a Editora Filoczar) para nos auxiliarem na publicação dos poemas num livro, intitulado “Eu também posso ser poeta!”.
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Ganhos além da aprendizagem
Todos, sem exceção, escreveram poemas e mostraram avanços significativos na elaboração do texto, aspectos ligados à coerência e à coesão, na compreensão do gênero enquanto estrutura, situação comunicativa e aspectos linguísticos discursivos.
Os estudantes tinham o ingrediente principal que era a motivação para a escrita. Durante o ano de 2019, não faltaram eventos nos quais eles leriam seus poemas: seja no Sarau Heranças Afro, em nossa participação no documentário da escola e, por último, na organização dos poemas produzidos na publicação do nosso livro.
Destaco a publicação do livro como principal evidência das aprendizagens ligadas à leitura e à escrita alcançadas pelos estudantes, jovens periféricos, moradores de um dos lugares de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de São Paulo, que romperam o estágio inicial de silêncio e o transformaram em linguagem, em ação. E essa apropriação da palavra tem permitido que seus corpos e suas histórias se projetem para o mundo.
Participação dos familiares
Outra grande conquista do projeto foi o envolvimento e aproximação de familiares e responsáveis da equipe escolar. Eles participaram de todas as etapas do projeto desde a sua concepção à aplicação. Eles recebiam registros das atividades feitas, bem como acompanhavam todas as apresentações do grupo.
Alguns responsáveis ainda fizeram parte da “família Sarau”, onde pudemos contar com seu apoio na organização e cuidado com as crianças e jovens nos diversos espaços nos quais fomos convidados a estar.
Sempre foi muito importante ouvi-los durante todo o processo, desde a ida a outros espaços para expormos nosso trabalho à colaboração na publicação do nosso livro. O projeto sempre teve as mães, pais, tios e avós como grandes apoiadores e entusiastas do trabalho.
Amadurecimento, solidariedade e companheirismo
Há alguns anos me dedico a esse projeto que, inicialmente, não tinha nem demanda de estudantes interessados. Era difícil convencer qualquer aluno a participar de ações educativas que envolvessem leitura e escrita, ainda mais se implicassem em estudar fora da jornada obrigatória.
Foram inúmeras as estratégias empregadas como as que descrevi ao longo do relato do projeto, desde saídas pelo nosso território, ocupando, fazendo parcerias com esses aparelhos culturais aqui existentes, com aulas diversificadas, convidando poetas, dançarinos e pintores para também dialogar com os estudantes, fazendo relações intertextuais entre os poemas e as artes visuais.
A cada aula, oficina, saída pedagógica, evento e apresentação, sentávamo-nos para discutir nossos méritos e falhas e pensávamos coletivamente em soluções. Duas vezes na semana, pausávamos o mundo para nos ouvirmos.
Eles compunham juntos, declamavam juntos, erravam e acertavam juntos. A avaliação dos poemas escritos era feita coletivamente, todos ouviam e opinavam, sugeriam mudanças, de versos, de ritmo, entonação. Houve um processo de amadurecimento dos alunos nesse aspecto, de solidariedade e companheirismo.
Reverberar histórias
O trabalho, com esses textos de autoria negra, contribuiu para que os estudantes também se apropriassem da linguagem literária, ampliando proficiências de leitura e escrita; e numa atitude transgressora: questionar àqueles que detêm o monopólio da linguagem, reivindicando para si a partilha dela, elegendo como suporte para esta expressão o texto poético, assumindo a condição de sujeito-poeta, que também tem algo a dizer a partir do seu prisma, suas experiências sociais.
O projeto está alinhado ao único objetivo que é reverberar outras histórias sobre ser negro, negra, adolescente, professora, estudante de uma escola pública periférica, situada num bairro com altos índices de violência e de vulnerabilidade social. Ele alcança seu objetivo quando, ao final do processo, tenho alunos leitores e escritores, resolutos da sua identidade racial, mais conscientes do lugar que ocupam no mundo e ávidos por transformação.
Apostei numa pedagogia forjada com eles, por eles, legitimando a poesia que vem das ruas, das escolas, dessas vozes ancestrais há tanto tempo silenciadas e que agora almejam falar, esses adolescentes carregarão consigo a certeza de que suas vozes e ideias importam para a construção de um mundo mais cheio de sonhos e utopias reais de respeito, justiça social e paz.
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