Educação Infantil: matrículas de crianças com deficiência crescem mais de 500% em 12 anos
Especialistas analisam dados do Censo Escolar e do Panorama da Educação Especial 2024, lançado pelo IRM, celebram avanços e apontam gargalos e alternativas para fortalecer a educação inclusiva

Entre 2013 e 2024, o Brasil teve aumento expressivo de matrículas de crianças com deficiência em creches e pré-escolas, com ampliação de 526,9% e 528,1% respectivamente, de acordo com dados do Censo Escolar, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação (MEC). Esse movimento reafirma o reconhecimento pela sociedade da importância da Educação Infantil, um direito de toda criança, na promoção de aprendizagens e do desenvolvimento de habilidades cognitivas, socioemocionais e físicas essenciais para a primeira infância. Ao analisar essa tendência de crescimento, especialistas celebram o fato de a maioria das matrículas estar em classes comuns: 96,7% em creches e 97,6% em pré-escolas. Ao mesmo tempo, apontam desafios e alternativas para que essa oferta seja garantida com qualidade.
“Esse aumento decorre de vários fatores. Em primeiro lugar, destaco a maior consciência das famílias sobre o direito das crianças de frequentarem a escola, independentemente de suas características e especificidades. Em segundo lugar, o fortalecimento das políticas públicas que o Brasil vem promovendo no campo da inclusão escolar nos últimos 20 anos”, defende Rodrigo Hübner Mendes, fundador e superintendente do Instituto Rodrigo Mendes (IRM).
Em consonância com esse argumento, Daniela Mendes, coordenadora de Políticas Educacionais da Todos Pela Educação, reforça que “a priorização das crianças com deficiência no acesso às políticas públicas vem sendo reafirmada nas legislações, como o Marco Legal da Primeira Infância, o que contribui para a contínua expansão de matrículas na Educação Especial”.
O crescimento das matrículas traz implicações para todo o sistema de ensino, e não apenas para os educadores. “Esses números convocam a sociedade a pensar em todas as condições necessárias para a oferta de uma Educação Infantil de qualidade. Não só para os professores que estão em sala, mas para todos os envolvidos na educação, incluindo a gestão escolar e outros profissionais das secretarias de ensino. É preciso garantir esses suportes, pois sem uma rede colaborativa e intersetorial, a responsabilidade pela inclusão recairá excessivamente sobre os professores”, avalia Gabriel Limaverde, formador da Roda Educativa e especialista em educação inclusiva.
Ampliação do acesso exige investimento em formação continuada
Apesar da tendência crescente verificada ao longo dos últimos 12 anos, os dados do Censo Escolar chamam a atenção para uma ampliação ainda mais acelerada das matrículas da Educação Especial entre 2021 e 2024, com crescimento de 239,6% na Creche e 223,4% na Pré-Escola. “Esse aumento é muito positivo do ponto de vista da garantia do acesso, mas sinaliza a necessidade de observarmos também a qualidade da educação que está sendo oferecida para essas crianças”, diz Daniela Mendes. Ela sugere a possibilidade de esse crescimento também estar associado ao aumento de diagnósticos realizados nos primeiros anos de vida das crianças.
Cisele Ortiz, psicóloga, coordenadora adjunta do Avisa Lá e com forte atuação na Educação Infantil na cidade de São Paulo, também reconhece que cresceu o número de diagnósticos precoce. No entanto, ela pondera que há muitas crianças sem diagnóstico e não há estatísticas sobre essa demanda. Para Cisele, a sociedade deveria ter mais controle sobre a qualidade desses diagnósticos. “As crianças precisam ter uma avaliação multidisciplinar, que envolva especialistas de diferentes áreas, de modo que os profissionais possam conhecê-las em suas diferentes dimensões.”
A coordenadora adjunta do Avisa Lá faz outro alerta, o de um possível excesso de laudos. “Enfrentamos o risco de as escolas, em algumas situações, identificarem uma criança com alguma dificuldade ainda pequena, mas que talvez seja própria das fases de desenvolvimento dela, e já a encaminhar para uma avaliação médica para obter um laudo”, explica Cisele, ao indicar que esse problema também está associado à sobrecarga dos profissionais, que atuam em turmas com muitas crianças para poucos educadores.
O enfrentamento desses desafios, segundo ela, passa pela ampliação do investimento em formação. “Há muito desconhecimento do que é a própria Educação Infantil, sobre como trabalhar com as crianças nessa etapa e as especificidades dessa faixa etária.” Para Cisele, é fundamental apoiar os professores para que eles avancem na compreensão do processo de desenvolvimento das crianças e evitem os estereótipos. “É muito importante oferecer uma formação continuada abrangente, que envolva as crianças com e sem deficiência, para que elas possam de fato conviver. Em nossas formações, reafirmamos que a criança vem antes do laudo. Temos de receber as crianças como crianças.”
E no dia a dia, como professores e gestores têm percebido o aumento da presença de crianças com deficiência? “Em vários locais onde gente vai, percebemos que os professores compreendem se tratar de um direito [as crianças estarem nas classes comuns] que cabe a eles garantir dentro dessa cadeia colaborativa”, afirma Gabriel.
Mas ele lembra que “nós [educadores] aprendemos em um paradigma que não era inclusivo. O professor fazia um planejamento único, pensando naquela criança ou jovem ideal, ou seja, em um estudante médio”. Por isso, um dos desafios, segundo Gabriel, é enfrentar a barreira atitudinal, que impede muitas vezes de reconhecer que o processo de aprendizagem de cada um é singular.
A importância de os gestores escolares promoverem a revisão de seus documentos institucionais envolvendo toda a comunidade escolar é outro ponto destacado. “A direção e a coordenação pedagógica precisam olhar para o projeto político-pedagógico (PPP) e avaliar de que forma a educação inclusiva está prevista”, diz Gabriel.
O formador da Roda Educativa reforça que o PPP precisa ser um documento acessível, que institucionaliza a educação inclusiva naquela unidade, de modo que todos, gestores, professores e demais profissionais, estejam alinhados sobre os princípios e as concepções que devem nortear as práticas desenvolvidas naquele espaço. “Muitas vezes a gente tem aquela professora heroína, que faz um super trabalho pedagógico, mas suas reflexões e práticas não conseguem se expandir para a sala de aula ao lado [de outro docente]”, observa. Para ele, a gestão escolar precisa promover o intercâmbio de experiências, evitando que os direitos dos estudantes dependam de condutas individuais.
Avanços e desafios da Educação Especial entre 2013 e 2023
O crescimento das matrículas de pessoas com deficiência não se restringe à Educação Infantil. De acordo com o Panorama da Educação Especial 2024, que apresenta informações relevantes do período de 2013 a 2023 sobre a Educação Especial no Brasil, há melhorias e pontos de atenção nas demais etapas da Educação Básica (saiba mais sobre a publicação em quadro no final do texto).
Os números da Educação Especial organizados no Panorama indicam, por exemplo, avanços importantes na permanência dos estudantes na escola. A taxa de reprovação nos anos iniciais do Ensino Fundamental caiu significativamente na última década, passando de 21,9% em 2013 para 9,6% em 2023. Nos anos finais, a evasão também apresentou uma redução expressiva, caindo de 8,1% em 2014 para 1,2% em 2020.
No Ensino Médio, o número de estudantes da Educação Especial cresceu, e a maioria está em classes comuns (99,5% — de acordo com o Censo Escolar, a porcentagem é a mesma em 2023 e 2024). Entre todas as etapas da Educação Básica, essa é a que tem a maior proporção de estudantes incluídos.
Já a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é a modalidade mais segregada, com o maior percentual de estudantes em classes especiais e escolas especializadas: 58,4% em classes comuns e 41,6% em classes especiais em 2024.
“Os números revelam avanços da educação de pessoas com deficiência, altas habilidades, superdotação e autistas na escola inclusiva no Brasil, porém, não podemos nos esquecer de que regionalmente o país ainda tem de enfrentar desafios significativos e que as taxas de distorção idade-série da Educação Especial seguem altas quando comparadas às da Educação Básica. Isso demanda um esforço ativo em várias frentes, como na formação inicial e continuada de educadores em educação especial inclusiva”, diz Karolyne Ferreira, especialista em advocacy do IRM.
O documento do IRM também destaca lacunas na disponibilidade de dados no país, como a ausência de informações sobre o número de pessoas público-alvo da Educação Especial que ainda estão fora da escola. Essas limitações são resultado de desafios metodológicos que precisam ser superados para um melhor acompanhamento dessa população. Ainda se faz necessário avançar em estudos sobre a presença da Educação Especial em avaliações nacionais, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), garantindo uma análise mais precisa sobre a aprendizagem e o desenvolvimento desses estudantes.
O que é o Panorama da Educação Especial?
O Instituto Rodrigo Mendes, com apoio da Fundação Lemann, do Instituto Natura e da Associação Bem Comum, organizou o documento Panorama da Educação Especial 2024, com informações relevantes da década 2013-2023 sobre a Educação Especial no Brasil. A modalidade tem como público-alvo estudantes com deficiência, altas habilidades, superdotação ou autistas.
Todos os números apresentados no documento são oficiais, provindos do Censo Escolar (Inep/MEC). No entanto, nesses relatórios nem todos os dados são apresentados de forma acessível e de fácil compreensão para a população em geral e a imprensa.
O IRM solicitou ao Inep a base de microdados e os números da Sinopse Estatística da Educação Básica e dos Painéis Estatísticos do MEC, além de dados via Lei de Acesso à Informação (LAI), e apresenta as informações de forma inédita. Confira também o Sumário Executivo, um resumo do relatório com mais de dez gráficos com os principais destaques da modalidade entre 2013 e 2023.
+ Leia Mais:
Como combater a distorção idade-série entre o público da Educação Especial
Como ampliar o número de professores regentes com formação em Educação Especial
Entenda a diferença entre inclusão, integração, segregação e exclusão
2 Comentários
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O crescimento das matrículas de pessoas com deficiência traz a tona a fragilidade do sistema. Temos longo caminho a percorrer e precisamos de profissionais preparados e muito investimento para que realmente a inclusão aconteça.
Os dados mostram avanços importantes, especialmente na permanência dos estudantes da Educação Especial em classes comuns, o que é um sinal positivo. No entanto, como o próprio texto destaca, ainda temos grandes desafios, principalmente relacionados à formação dos profissionais e à inclusão de jovens e adultos na EJA. É essencial que a inclusão aconteça com qualidade, o que passa por políticas públicas e também pelo investimento em formação continuada. Cursos como o de educação inclusiva podem ser ferramentas valiosas nesse processo, ajudando a preparar educadores para lidar com a diversidade em sala de aula. Além disso, o uso de estratégias como os Jogos Lúdicos no Processo Educacional pode tornar o ensino mais acessível, envolvente e eficaz para todos os estudantes. A inclusão de verdade exige ação, conhecimento e compromisso coletivo.