Como ampliar o número de professores regentes com formação em Educação Especial?
Em entrevista, especialistas comentam o cenário atual e falam dos desafios para mudar a situação, como aumentar investimentos em políticas públicas e qualificar as capacitações

Nos últimos 17 anos, o Brasil tem registrado avanços significativos na educação inclusiva. Grande parte desse progresso se deve à luta de pessoas com deficiência que resultou, entre outras iniciativas, no lançamento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), em 2008. Naquele ano, apenas 54% dos estudantes com deficiência estavam matriculados em classes comuns, segundo dados do Painel de Indicadores da Educação Especial do DIVERSA, iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Instituto Unibanco e com o apoio do Centro Lemann. Em 2023, esse percentual subiu para 91,3%, o que representa 1.617.420 do total de 1.771.430 estudantes com deficiência na Educação Básica.
Mas, apesar do crescente número de estudantes público-alvo da Educação Especial em classes comuns, a formação continuada de professores da Educação Básica parece não acompanhar o ritmo desses avanços. Em 2023, o país contava com 2,3 milhões de professores regentes, porém, apenas 6,1% possuíam formação continuada em Educação Especial.
O que explica essa realidade e o que pode ser feito para mudá-la? Para responder a essa pergunta, convidamos duas estudiosas do assunto: Geny Lustosa, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Ceará (UFC), coordenadora do Grupo PRÓ-Inclusão: Pesquisa e Estudos sobre Educação Inclusiva, Práticas Pedagógicas e Formação de Professores da mesma instituição e membro da Associação Internacional de Inclusão, Interculturalidade e Inovação Pedagógica (AIIIIPe), e Sueli Farias, mestre em educação pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), doutoranda em Educação na UFC, professora na rede municipal de Fortaleza e pesquisadora na área de formação de professores, alfabetização e Educação Especial Inclusiva
As duas comentam o que esses dados revelam sobre o cenário atual e quais caminhos precisamos trilhar para fortalecer a educação inclusiva. Este conteúdo é o segundo da série que publicaremos ao longo do ano sobre as informações que compõem o Painel de Indicadores da Educação Especial (o primeiro pode ser conferido aqui). Confira a seguir o bate-papo com as pesquisadoras.
O que explica esse cenário?
A explicação tem relação com a recente consolidação da Educação Especial como modalidade de ensino, assumida na perspectiva inclusiva. Vale destacar que apenas a partir da década de 1990 a Educação Especial passou a ter como objetivo garantir o direito à educação inclusiva para pessoas com deficiência. Até então, não havia demanda de formação de professores nessa discussão — o que tardou a transformação da escola, por sinal. Foi nesse contexto de compreensão da educação inclusiva que surgiram as primeiras iniciativas governamentais e institucionais para subsidiar os professores e construir uma escola para todos, com busca de estratégias pedagógicas capazes de atender às demandas dos estudantes desse público, em ruptura com o modelo integracionista que vigorava à época.
Quais são as barreiras que dificultam o acesso à formação continuada?
Um grande entrave para a formação continuada de professores em Educação Especial na perspectiva inclusiva nos parece estar no fato de que a temática ainda não foi assumida seriamente como componente intrínseco à qualidade da educação que ofertamos aos estudantes brasileiros, ou seja, não foi inserida de maneira adequada na formação geral do professor, inicial e continuada [ou em serviço]. Outra questão que dificulta a formação continuada é ela ocorrer apartada do contexto real dos educadores nas escolas: em geral, os professores se queixam da qualidade dessas iniciativas. Pensamos que elas poderiam ser mais bem qualificadas com casos reais e respostas às principais dúvidas dos professores, de forma a apoiar suas práticas e os desafios enfrentados por eles no trabalho cotidiano escolar. Os professores relatam que as melhores metodologias para as suas formações são aquelas que os conduzem para uma postura ativa em relação à construção do seu percurso profissional e que também dão suporte para seus desafios reais, com exemplos práticos que os levem a ampliar seu acervo de estratégias pedagógicas.
É fato que as redes de ensino, por meio de suas equipes de secretarias, não têm dado conta dessa situação formativa dos professores regentes. Apenas mais recentemente é que se começou um movimento que busca compreender e tentar suprir essa carência, porém, ainda com iniciativas muito pontuais, isoladas em momentos de convite para que professores ou pesquisadores da área da Educação Especial falem para docentes de sala de aula. Consideramos essas trocas muito importantes, porém, a descontinuidade dos estudos é um grande problema.
Ainda temos dificuldades de equidade no acesso à formação, em centros mais distantes de zonas urbanas, por exemplo. O pesquisador português David Rodrigues afirma: “Formar professores para a inclusão não é uma tarefa fácil. Não basta falar de inclusão, não basta juntar ao currículo tradicional dos cursos de formação de professores conteúdos que tratem de deficiência, diferença ou necessidades específicas. Da mesma forma que a inclusão nas escolas não se resolve com um projeto colado ou justaposto às práticas tradicionais, a formação de professores para a inclusão não se pode resumir a uma disciplina”.
Quais os impactos da falta de formação continuada para o avanço da educação inclusiva?
A ausência de formação continuada impacta negativamente na consolidação de uma pedagogia de atenção às diferenças de todos os estudantes e na construção de uma escola comprometida com a gestão democrática, com práticas colaborativas e com concepções curriculares emancipadoras e vinculadas à realidade local, entre outros pontos. São conceitos contemporâneos alinhados a uma nova perspectiva de compreensão para a formação de professores reflexivos, que articulam teoria e prática. Sem professores regentes preparados para diversificar estratégias e pensar na aprendizagem de todos os estudantes, os mais prejudicados são os alunos com deficiência.
Como solucionar esse problema?
Reconhecer as universidades e sua expertise acumulada na formação de professores pode ser um caminho. Por isso, consideramos importantes as iniciativas que fortalecem a parceria das escolas e redes de ensino com as universidades e institutos federais. Essa aproximação é fundamental, assim como estabelecer relações com os movimentos sociais de pessoas com deficiência e familiares. Tais experiências podem colaborar para o aprofundamento nos conteúdos conceituais, legislativos, relatos de experiências e sensibilizações para a formação de uma consciência crítica socialmente referenciada e engajada.
Compreendemos, contudo, que a formação continuada enfrenta desafios que devem ser superados por meio de investimentos públicos que colaborem para a redução da sobrecarga de trabalho dos docentes e para a oferta contínua de cursos acessíveis e de qualidade. Esses cursos devem se afastar dos modelos caritativo e biomédico, que equivocadamente compreendem os estudantes com deficiência como incapazes ou como sujeitos com déficits. As iniciativas de formação docente precisam estar alinhadas ao modelo social da deficiência, que considera o ambiente como responsável por impor barreiras ao desenvolvimento e à aprendizagem dos sujeitos.
Além disso, a formação deve conduzir os professores a compreensões essenciais, tais como: 1) não há uma prática pedagógica direcionada exclusivamente a uma deficiência específica; 2) cabe a nós, professores, identificarmos e removermos as barreiras em nossas práticas pedagógicas; 3) a heterogeneidade é uma marca inerente à sala de aula, enquanto expressão da diversidade humana, e não apenas pela presença de um estudante com deficiência; 4) o acesso a serviços, tecnologias assistivas, recursos e metodologias deve criar condições para que todos os alunos se engajem, convivam e aprendam juntos, respeitando suas singularidades; 5) a “adaptação de conteúdos” e a “adaptação curricular” não representam inclusão, mas sim uma segregação mascarada dentro do processo educativo.
Existem consensos entre os pesquisadores do campo da formação que alguns pontos tornam as situações formativas mais potentes. São eles: envolver trocas de saberes e experiências entre pares ou promovidas por seus coordenadores pedagógicos e/ou formadores que emanam a partir dos próprios grupos; quando as situações formativas se realizam no contexto da própria escola; fazer uso de procedimentos mais próximos e reais, como metodologias de estudos de caso, audiência a filmes e participação em rodas de conversa, colegiados e análises de situações da escola, para produção de encaminhamentos envolvendo todos os atores desse contexto; e formações mais prolongadas, com periodicidade e experiências reflexivas, com diálogos e metodologias que acompanhem um possível desenvolvimento de práticas, gerando avanços no desenvolvimento profissional dos professores.
Quais medidas estão sendo implementadas e quais são os desafios?
No paradigma da Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva, defendido a partir da década de 1990, surgem políticas públicas que trazem propostas de formação continuada de professores da Educação Básica, principalmente entre 2007 e 2009, com ações lideradas pelo Ministério da Educação (MEC).
Atualmente, temos iniciativas nacionais, como a Rede Nacional de Formação Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica (Renafor), que, em 2024, ofertou 77 cursos em gestão da Educação Especial na perspectiva inclusiva e em práticas pedagógicas inclusivas voltadas para professores e gestores. Neste ano, ocorreu uma ampliação no número de instituições contempladas com projetos aprovados pelo edital de propostas submetidas. Outra iniciativa em escala nacional que temos conhecimento é o Mestrado Profissional em Educação Inclusiva (Profei), que conta com a participação de 23 instituições e disponibilizou neste ano um quantitativo de 570 vagas para professores atuantes em sala de aula; e o curso de aperfeiçoamento em Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva produzido e coordenado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), financiado pelo MEC e realizado por meio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Universidade Aberta do Brasil (UAB), na modalidade Educação a Distância (EaD). A iniciativa foi lançada em dezembro de 2024 e pretende atender 1,25 milhão de professores da Educação Básica que atuam em salas de aula comuns, com o objetivo de promover práticas pedagógicas alinhadas aos princípios da Educação Especial na perspectiva inclusiva.
Quais são os atuais desafios?
Apesar dos avanços que podemos assinalar, ainda persistem desafios, desde obstáculos quantitativos para atingir um contingente tão grandioso até aumentar os indicadores de professores que se reconheçam em trajetórias significativas de formação. Dependemos da implementação de políticas públicas elaboradas com base não apenas em dados estatísticos oficiais, mas também na análise das condições reais de trabalho e nas demandas concretas dos profissionais da educação. É por meio de abordagens que retratem a diversidade das salas de aula do país e de seus estudantes e profissionais que se pode consolidar progressivamente um sistema educacional verdadeiramente inclusivo.
Por que é preciso evitar o discurso de que o professor só consegue trabalhar com estudantes com deficiência se tiver uma formação específica?
É urgente e necessário superar o discurso de que o professor precisa estar “preparado” para a inclusão, pois isso pressupõe uma concepção de formação conclusiva e estática, quando, na realidade, a construção de práticas pedagógicas inclusivas deve atender a diversidade presente na escola e em todos os estudantes, garantindo que a inclusão não seja vista como um arranjo pontual, mas como um princípio estruturante da educação.
Os investimentos em qualificação docente, alinhados à implementação de políticas públicas, são ações necessárias para que haja transformação no ambiente escolar. Há, entretanto, um impasse: participar de cursos sem que haja identificação de aspectos concretos para mudanças na prática pedagógica não configura uma verdadeira formação. Se o professor retorna à escola sem reflexões mais profundas sobre sua atuação, sem problematizar sua prática e sem reformular seus referenciais conceituais e atitudinais, dificilmente ocorrerá uma transformação significativa na educação inclusiva. Contudo, apesar da formação continuada para a educação inclusiva ainda não se configurar uma realidade consolidada no país, essa limitação não pode ser utilizada como justificativa para negar o acesso de estudantes público-alvo da Educação Especial à escola regular.
A experiência como pesquisadoras da área da formação de professores nos impele a dizer que a formação para a educação inclusiva envolve competências docentes de base a docência, de uma maneira geral; as especificidades ficam por conta do que todo estudante pode vir a manifestar no processo de aprendizagem, pelas singularidades que apresentem, e não pela presença da deficiência.
Outra defesa, aprendida na experiência da escuta-formativa aos professores e no contato com experiências inclusivas em escolas que assumiram essa tarefa como princípio ético-moral, é que a nossa formação docente não se dá apenas nos cursos e palestras aos quais assistimos; ela é implicada também pelas significações dadas às experiências pessoais e profissionais, que se produzem a partir do encontro com os estudantes, desde que estejamos abertos a aprender e a ensinar. Os processos formativos mais significativos acontecem cotidianamente, a partir dos sentidos que atribuímos ao que vivenciamos.