Como combater a distorção idade-série entre o público da Educação Especial?

Para Martinha Dutra, a resposta passa pelo fortalecimento da crença de que toda pessoa aprende e pela compreensão de que as barreiras não estão nos alunos com deficiência

Na imagem, Martinha Dutra aparece em destaque. Ela é uma mulher parda, com cabelos castanhos e ondulados na altura da nuca. Veste uma blusa rosa e uma jaqueta preta. Usa brincos e um colar. Ao fundo, há uma estante com diferentes objetos de decoração.
“O abandono, a evasão e a reprovação crescem na medida em que o estudante avança em seu percurso escolar, porque o pertencimento a esse espaço não é construído de modo a valorizar e respeitar a diversidade humana”, comenta Martinha Dutra. Crédito: Acervo pessoal/Martinha Dutra

Apesar de ser um princípio básico da educação inclusiva, a crença de que todas as pessoas aprendem não é uma realidade para todos os educadores e profissionais da educação. Nem mesmo para grande parte da sociedade. Essa barreira atitudinal é um dos fatores que explicam as altas taxas de distorção idade-série entre os estudantes público-alvo da Educação Especial, segundo Martinha Dutra, doutora em educação e membro da Rede Ibero-americana para o Desenvolvimento de Sistemas Educacionais Inclusivos e do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável da Presidência da República.  

A constatação de que esse grupo é um dos mais prejudicados está demonstrada nos dados do Censo Escolar de 2024, divulgados recentemente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Enquanto a taxa foi de 15% para todas as matrículas do 6º ano do Ensino Fundamental, o percentual mais que dobrou entre estudantes público-alvo da Educação Especial, chegando a 32%. O número ficou atrás apenas da Educação Indígena, com 37,6%. 

Imagem de gráfico sobre Distorção idade-série no 6º ano do Ensino Fundamental em 2024. O gráfico é de barras na horizontal, com porcentagem da distorção em diferentes grupos. Entre estudantes brancos a distorção foi de 8,9%; pretos-pardos 18,40%; cor/raça não declarada 16%; feminino 11,6%; masculino 18%; zona urbana 13,7%; zona rural 25,1%; Quilombola 27,8%; Educação Especial 32%; Educação Indígena 37,6%. O total entre todos os estudantes foi de 15%. Os dados são do Inep/Censo Escolar. Fim da descrição.

A taxa de distorção idade-série é um indicador que expressa o percentual de estudantes com dois anos ou mais de atraso escolar e que, portanto, têm idade superior à recomendada para a série na qual estão matriculados. Quanto maior ela for, mais irregular é o processo de escolarização, decorrente, sobretudo, dos efeitos da reprovação e do abandono. Como indica o Painel de Indicadores da Educação Especial do Instituto Rodrigo Mendes, esse é um problema que se agrava à medida que os alunos avançam nas etapas de ensino da Educação Básica. Em 2022, por exemplo, a distorção idade-série entre os estudantes público-alvo da Educação Especial chegou a 45,3% no Ensino Médio.  

A análise desse cenário coloca em debate um dos grandes desafios a serem enfrentados pelo país: o de que não basta estar na escola, é preciso assegurar outros pilares da educação inclusiva, como a aprendizagem, a permanência e a conclusão.  

Foi para discutir os motivos que levam a essa complexa realidade e entender como a distorção idade-série impacta a trajetória escolar dos estudantes que a equipe do DIVERSA conversou com Martinha Dutra. Ela também foi diretora de Políticas de Educação Especial da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do Ministério da Educação (MEC) entre os anos de 2009 e 2016. 

A especialista faz uma análise sobre o cenário atual e reforça a urgência de superarmos a crença de que a pessoa com deficiência não aprende. Este é o terceiro conteúdo da série que publicaremos ao longo do ano sobre as informações que compõem o Painel de Indicadores da Educação Especial. Confira a seguir a entrevista. 

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Quais fatores explicam as altas taxas de distorção idade-série entre os estudantes com deficiência? 

Primeiramente, temos sempre de compreender que a escola, como instituição, reflete o contexto social onde ela está inserida. Historicamente, as pessoas com deficiência foram excluídas ou segregadas, isto é, foram consideradas pessoas que não tinham o direito de pertencer a um espaço comum, que não tinham o direito de aprender, acessar o mundo do trabalho, se desenvolver integralmente e ser protagonistas da própria participação social, política e acadêmica.  

Além disso, a escola historicamente se desenvolveu a partir dos valores da elite brasileira. Quando se trata especificamente do segmento das pessoas com deficiência, é preciso considerar que a maioria esmagadora desse público no Brasil faz parte das camadas mais vulneráveis e majoritariamente são pessoas negras, pardas e mulheres. Então, todos esses recortes representam uma intersecção de situações de discriminação que repercute diretamente no desenvolvimento global até hoje.  

Existe uma discrepância na distorção idade-série entre pessoas com e sem deficiência. E, se dentro desse último segmento, fizermos um estudo entre aquelas que são beneficiárias do BPC [Benefício de Prestação Continuada] e as que não são, essa diferença certamente aumentará ainda mais. 

Isso é uma prova de que há um componente social, econômico e político, pois nós sabemos que a classe média alta e a classe rica brasileira investem na educação, que é organizada com base nos valores dessas pessoas. Com isso, as pessoas com deficiência, que fazem parte de outro segmento social, já partem em desvantagem, e essas desvantagens tendem a se agravar. 

Como a crença sobre a aprendizagem dos estudantes com deficiência pode influenciar a taxa de distorção idade-série? 

Ela influencia totalmente e ainda é uma realidade. Se pensamos em uma educação inclusiva que parte do princípio dos direitos humanos, que se constrói na esteira do binômio igualdade e diferença, precisa-se respeitar a individualidade e a especificidade de cada um e, ao mesmo tempo, pensar nos recursos de acessibilidade, que pode ser uma estratégia pedagógica, um hardware ou um software. 

Se a escola não dispõe desses recursos, se o professor, a gestão e a comunidade não os incorporam no seu dia a dia e no seu planejamento, aquele ambiente não promoverá condições de igualdade com as demais pessoas. Assim como não permitirá a participação plena, que exige dar condições de qualquer um estar, trocar, ensinar, aprender e atuar amplamente naquele espaço.  

Da mesma forma, temos de rever as práticas pedagógicas. Pois se elas não são pensadas para esse público, ou seguem o modelo segregacionista ou integracionista que aparta, as ações permanecerão focadas na aprendizagem daqueles que não têm deficiência, deixando para um outro momento o objetivo de assegurar o direito à educação para os demais.  

Isso é uma forma de menosprezo ou de desconsideração daquelas pessoas que ali estão. Toda vez que uma pessoa se sente desvalorizada ou escanteada, há um impacto. Esse é um fator preponderante para a aprendizagem.  

A cultura da reprovação é mais presente entre os estudantes com deficiência? Como ela se relaciona com a distorção idade-série? 

Sim, ela é bem forte para esse público. Isso decorre de uma concepção ainda presente nos dias atuais, mas que remete ao paradigma de segregação, ou seja, que vê a barreira na pessoa, e não na sociedade. Essa é uma lógica da punição. É a lógica do exercício da autoridade. Porque, para as pessoas [com e sem deficiência], isso não traz benefício algum.  

A escola é um espaço social e aprender exige estabelecer vínculos. Se rompermos a relação do estudante com aquele grupo, favorecemos a desmotivação, o desestímulo. 

Um exemplo claro disso ocorre na Educação Infantil, em que não há previsão legal de reprovação. A distorção idade-série muitas vezes começa nessa etapa, pois muitas famílias e escolas compreendem que aquela criança precisa ter um tempo dobrado de atenção para se desenvolver melhor e buscam encontrar caminhos para justificar legalmente a retenção.  

Quando conseguem reter e chega o momento de essa criança ir para o 1º ano do Ensino Fundamental, ela já chega com uma idade diferente das outras da turma. Durante a pandemia aconteceu um fato que no meu entendimento representa esse pensamento capacitista. Quando houve a determinação do CNE [Conselho Nacional de Educação] de que não haveria reprovação, porque afinal de contas os estudantes não podiam ser penalizados por uma situação mundial de pandemia, houve determinações judiciais dizendo que os estudantes com deficiência deveriam ser reprovados.  

Por quê? Por qual motivo esses alunos poderiam ser penalizados por isso? Isso faz parte do mito de que a condição de deficiência gera um prejuízo por si só e torna aquela pessoa inferior. Sabemos que cada pessoa com deficiência é uma e não podemos colocar todas no mesmo formato e dizer que têm a mesma dificuldade.  

Por esse e outros motivos, chega o momento em que o estudante se sente fora daquele contexto. Qual o resultado? Ele deixa de aprender e até mesmo de ir à escola. Por isso, o abandono e a evasão, indicadores interligados com a distorção idade-série, aumentam no decorrer da trajetória escolar. E como isso afeta a distorção? Quando se consegue o retorno da criança ou adolescente para a sala de aula, é na série não correspondente à idade recomendada. Então, chegamos ao cenário atual. 

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Qual é o impacto dessa trajetória irregular para a efetivação do direito à educação? 

O impacto é muito grande, uma vez que você desestimula aquele estudante a estar no ambiente escolar. Não é à toa que o acesso vem sendo ampliado, mas o abandono, a evasão e a reprovação crescem na medida em que o estudante avança em seu percurso escolar, porque o pertencimento a esse espaço não é construído de modo a valorizar e respeitar a diversidade humana. 

Esse resultado acontece porque se quebra o vínculo daquela criança com as demais e se cria uma desmotivação. Muitas pessoas têm vergonha. “Eu não quero ir mais porque eu já sou grande, vou estar com crianças pequenas.” Ouvimos isso recorrentemente. “Os interesses que eu tenho estão com aquele outro grupo, e não com este.” A quebra não contribui com a aprendizagem, pois ela não se restringe a uma lista de conteúdos. A aprendizagem é muito mais do que isso. Sempre que se reduz o fazer escolar ao conteudismo, desvalorizamos o papel da escola e a função dos profissionais da educação. 

O impacto também é na vida dessas pessoas, porque a escolarização está vinculada à qualidade de vida. O desenvolvimento profissional que as pessoas constroem ao longo da sua vida fica muito prejudicado, impactando o nível salarial, o acesso a bens, serviços e valores socialmente construídos. Todos esses processos estão interligados.  

Quando se fala da escolha da profissão, acaba não sendo uma escolha, porque a pessoa ou não adentra o mundo do trabalho ou faz aquele trabalho que foi possível fazer, não o que ela escolheu de acordo com seu talento, com o seu desejo. Isso tem impacto sobre a formação social do nosso país.  

Quais medidas podem ser adotadas para solucionar esse problema? 

O primeiro ponto está em mudar de vez a nossa perspectiva. A pessoa com deficiência não pode ser percebida como alguém que não aprende, como alguém que é inferior, que não tem direito de compartilhar espaços, metodologias e materiais e de participar de ambientes comuns. 

Entre 2003 até início de 2016 houve um investimento orçamentário importantíssimo do governo federal, por meio do MEC, em conjunto com outros ministérios, em políticas de inclusão social das pessoas com deficiência e, sobretudo, em políticas de inclusão escolar. Apesar de tentativas de retrocesso, conseguimos manter os avanços e, agora, temos que seguir para uma inclusão de fato. 

Acredito sempre na participação de todos os segmentos da sociedade, porque educação é um direito. Portanto, deve ser do interesse das instituições que ofertam, que são responsáveis pela educação no país, mas também da sociedade como um todo.  

Temos de fazer parte desse debate, pensar em medidas estruturantes com políticas públicas para o enfrentamento desse fenômeno que vai repercutir lá na frente. Necessitamos mudar o jeito de ensinar, devemos questionar quais são as estratégias pedagógicas utilizadas. Qual o objetivo de um sistema que deseja padronizar processos, procedimentos e metodologias? A quem a padronização beneficia? Será que beneficia todas as pessoas? Os processos não podem ser engessados, únicos, pois os seres humanos são diferentes uns dos outros. 

A formação é outro tema a ser reavaliado. Quando falo em formação, não é só a dos professores e professoras, mas é também a dos gestores e das demais pessoas que atuam na educação, por exemplo, as que fazem a gestão orçamentária. Muitas vezes quem trabalha nos setores administrativos não se percebe como responsável pelo processo pedagógico, o que é um erro. Em relação aos professores e gestores, é necessário prover repertório e recursos que deem a cada um a possibilidade de criar estratégias que envolvam a todos da mesma forma, considerando as especificidades de cada um e o contexto em que estão inseridos, possibilitando um ensino que alcance a todos. 

É fundamental mudar o projeto político-pedagógico, torná-lo mais permeável pela comunidade à qual a escola se vincula, fazer dele um retrato da diversidade humana presente na escola e valorizar mais a condição de autoria de sujeitos de produção de conhecimento, ao invés do conteudismo. 

Precisamos tornar a escola um ambiente interativo, cooperativo, participativo e principalmente sintonizado com as questões do mundo. Todo ser humano tem seu valor e, principalmente, tem seu estilo, seu perfil e o seu modo e meio de aprender e de compartilhar processos, de redescoberta do mundo e tudo mais.  

E é papel da escola mediar, não julgar, não excluir, não padronizar e não eleger [quem consegue ou não aprender]. Todos os aspectos, desde os mais subjetivos até os formais, devem estar juntos nessa reflexão. Porque esse é um marcador do nosso processo educacional. E quanto mais a escolarização se universalizou, mais nós nos demos conta dessa distorção. Então quer dizer que essa distorção é muito mais representativa do que parece e muito mais eloquente porque denuncia o mal-estar e, se tem um mal-estar, nós precisamos compreendê-lo. 

Comentário

  • Gostei muito de ler sobre o assunto, viver na pele a exclusão realmente traz um impacto devastador. Que o capacitismo aínda nos assombra é inegável, porém temos esperança que a inclusão aconteça naturalmente.

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