É preciso ampliar as matrículas em classes comuns na EJA

André Lázaro analisa por que a etapa é a que mais segrega estudantes com deficiência, reconhece os esforços do governo federal e cobra maior engajamento de estados e municípios

Na fotografia, André Lázaro. Ele é um homem idoso com cabelo branco e barba branca aparada. Usa uma camisa polo azul clara. Ele está posicionado em um ambiente interno, com uma parede bege ao fundo e uma planta verde visível no canto inferior direito.
“Deveria ser feito um esforço [de investimento na EJA] que contasse com a participação efetiva dos estados e municípios”, afirma André Lázaro, diretor de políticas públicas da Fundação Santillana. Crédito: Acervo pessoal/André Lázaro
Apesar dos avanços registrados na última década, o Brasil ainda está distante de universalizar o acesso de estudantes com deficiência a classes comuns na Educação de Jovens e Adultos (EJA). A constatação é um dos destaques da publicação Panorama da Educação Especial 2024, produzida pelo Instituto Rodrigo Mendes (IRM) com apoio da Fundação Lemann, do Instituto Natura e da Associação Bem Comum. O documento aponta que, embora o percentual de matrículas em classes comuns tenha superado o de classes especiais — passando de 47% para 57,6% entre 2013 e 2023 —, a EJA segue como a mais segregada entre as etapas da Educação Básica. Em 2024, segundo o Censo Escolar, esse cenário não mudou: 58,4% das matrículas estavam em classes comuns e 41,6% em classes especiais. 

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Diante desse complexo problema social, André Lázaro, diretor de políticas públicas da Fundação Santillana, argumenta que “ainda há um caminho importante a ser percorrido para garantir a inclusão plena desses estudantes no sistema educacional”. Para ele, a recém-divulgada Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Pessoas com Deficiência (Pnad Contínua), de 2022 traz elementos que ajudam a entender o desafio atual. Eles estão diretamente relacionados às altas taxas de reprovação e de distorção idade-série na Educação Especial de maneira geral. 

Segundo a Pnad Continua, no Ensino Fundamental (seis a 14 anos), a taxa líquida de frequência escolar – que indica se a pessoa está na etapa correspondente à sua faixa etária – entre pessoas com deficiência foi de 89,3%, e de 93,9% entre aquelas sem deficiência. Nos anos finais (11 a 14 anos), esses valores chegaram a 71,3% e 86,1%, e, no Ensino Médio (15 a 17 anos), a 54,4 e 70,3%, respectivamente. Em síntese, esses números demonstram que a taxa de frequência escolar é menor entre pessoas com deficiência em todas as faixas etárias. E essa diferença cresce à medida que os estudantes avançam nas etapas de ensino.  

“Esses dados revelam que a tensão existente nos sistemas de ensino entre a promoção da socialização pela convivência nos espaços escolares e a exigência de habilidades e competências para a progressão escolar vão sendo resolvidas contra a participação de crianças e jovens com deficiência nas salas de aula”, argumenta André, que participou da criação da então Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC) em 2004, da qual foi diretor e posteriormente secretário nacional de 2007 a 2010. Hoje, ela é chamada de Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi).  

Ao reconhecer que não há saídas simples para a EJA, André elogia os esforços recentes do governo federal para fortalecer a modalidade, mas indica que os resultados só serão alcançados com ampla articulação de estados e municípios. Saiba mais na entrevista a seguir.  

Como você avalia a evolução da inclusão escolar das pessoas com deficiência no país? 

O Brasil pode comemorar expressivos avanços na inclusão de pessoas com deficiência em diversas dimensões da vida social. A educação tem se destacado, graças ao empenho das redes públicas, pelas elevadas proporções de crianças e jovens com deficiência em turmas comuns.   

Apesar dos avanços, ainda há um afunilamento das matrículas de estudantes com deficiência ao longo das etapas da Educação Básica. 

Sim. A taxa líquida de frequência escolar de pessoas com deficiência na Educação Básica [segundo a Pnad Contínua de 2022] vai decrescendo à medida que avançamos nas etapas: se nos Anos Iniciais a diferença entre aqueles com deficiência e sem deficiência é de 4,6%, nos Anos Finais, ela cresce para 6,8% e, no Ensino Médio, alcança 15,9%. Os dados revelam que a tensão existente nos sistemas de ensino entre a promoção da socialização pela convivência nos espaços escolares e a exigência de habilidades e competências para a progressão escolar vão sendo resolvidas contra a participação de crianças e jovens com deficiência nas salas de aula.   

Como as altas taxas de distorção idade-série entre estudantes com deficiência ao longo da Educação Básica repercutem nas matrículas da EJA? 

O IBGE considera diferentes tipos de deficiência. O texto indica ‘dificuldades em domínios funcionais como enxergar, ouvir, andar, funcionamento dos membros superiores, cognição, autocuidado e comunicação’. Certamente diferentes tipos de deficiência resultam em barreiras distintas tanto para a convivência quanto para as aprendizagens exigidas na vida escolar. Assim, é de se supor que, se essas barreiras não são eliminadas, potencialmente cresce com a idade e ao longo das etapas da Educação Básica a proporção de crianças e jovens que vão sendo excluídas da convivência escolar, tornando-se potencialmente públicos da EJA. 

A EJA tem contribuído para ampliar a escolarização da população adulta? 

É preciso avaliar o público que tem direito à EJA e as condições de oferta e proporções da frequência a essas turmas. Só muito recentemente, em 2022, a proporção de pessoas com 25 anos ou mais que concluíram a Educação Básica ultrapassou 50% da população brasileira [57,3% das pessoas sem deficiência tinham concluído pelo menos o Ensino Médio, enquanto apenas 25,6% das pessoas com deficiência tinham esse nível de instrução, de acordo com a Pnad Contínua de 2022]. Em outras palavras, há mais de 60 milhões de pessoas que são sujeitos de direito para frequentar as turmas de EJA, nas etapas do Ensino Fundamental e Médio. 

Contudo, a modalidade vem perdendo vagas desde 2006, quando, contraditoriamente, houve melhores condições de oferta, com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que financia a EJA pública, e a extensão aos estudantes da EJA dos direitos que já atendiam aos da Educação Básica: livros didáticos, merenda e transporte escolar. Em 2003, havia 4,4 milhões de matrículas em turmas de EJA; em 2006, 5,6 milhões; em 2011, eram 4 milhões; e agora, em 2023, são 2,3 milhões.  

A que se deve tal retração tendo em vista a ampla necessidade de promover a escolaridade de jovens e adultos que não concluíram a Educação Básica, seu direito constitucional? 

Há distintas hipóteses, e provavelmente todas se completam para nos aproximar da compreensão desse fenômeno trágico para a sociedade brasileira. A publicação “A Avaliação da EJA no Brasil: Insumos, Processos, Resultados” aventou hipóteses agregadas “em quatro dimensões: a cultural, a político-institucional, a pedagógica e a da demanda social”.   

Pode explicar cada uma delas? 

Na primeira, a dimensão cultural refere-se ao não reconhecimento da EJA como um direito para as pessoas que foram excluídas dos sistemas educativos ao longo da Educação Básica ou que a eles nunca tiveram acesso. Supõe o estudo que tal visão relaciona-se ao perfil dos sujeitos de direito: “Isso decorre, sobretudo, do fato de os sujeitos a quem ela é destinada serem constituídos, em sua gigantesca maioria, por pessoas pobres, negras e de baixa renda, gente que ainda enfrenta desafios para ser reconhecida no país como detentora de direitos”.  

A dimensão institucional diz respeito ao lugar que a EJA ocupa nos organismos burocráticos das secretarias municipais e estaduais, habituadas a um padrão de funcionamento que se torna hostil à diversidade das demandas que a implantação da EJA exige. Assim, a publicação destaca “as condições precárias do atendimento que ainda predominam na EJA: espaços inadequados, educadoras e educadores mal pagos e com limitada formação e identidade com a modalidade, a descontinuidade, a falta de oportunidades concretas para os educandos e educandas continuarem os estudos”.  

Já os desafios político-pedagógicos relacionam-se com a adoção para a EJA de “um certo modelo de escolarização tradicional”, ignorando as dinâmicas que vinham sendo desenvolvidas enquanto a educação popular era a abordagem que zelava pela recuperação dos direitos das pessoas analfabetas e de baixa escolaridade. A oferta da EJA escolarizada incorporou o que a educação tradicional tem de mais antiquado: “visão hierárquica entre educador-educandos, fragmentação de conhecimentos, perda de sentidos, descontextualização das realidades nas quais as pessoas estão inseridas. Associada a isso, uma tendência à ‘infantilização’ dos sujeitos da EJA, não os reconhecendo como pessoas jovens e adultas que possuem trajetórias, conhecimentos, necessidades e desejos”.  

Por fim, um desafio da maior grandeza diz respeito ao entendimento da demanda social pela EJA. Observa o estudo: “a demanda social é encarada como algo que se manifesta espontânea e individualmente. (…) [No entanto] a demanda potencial da EJA não se transforma em demanda real sem que haja estímulo por parte das políticas públicas, tanto por meio da oferta de serviços de qualidade como pela convocação daqueles que podem ser beneficiados por eles”. 

O público potencial da EJA é grande. O que mais justifica o número reduzido de matrículas?

A EJA não tem atendido nem mesmo ao público das pessoas sem deficiência, que contam com melhores condições de mobilidade e acesso às poucas turmas oferecidas pelas redes de ensino. No Rio Grande do Sul, por exemplo, havia 71 mil matrículas na EJA em 2019, número reduzido para 24 mil em 2024, uma perda de 65%, em torno de 47 mil matrículas. Em São Paulo, as matrículas da rede estadual caíram de 135 mil para 56 mil, uma perda de 57% entre 2019 e 2023.  

Esse conjunto de fatos talvez ajude a compreender por que é tão baixa a proporção de pessoas com deficiência frequentando turmas de EJA. Além dos problemas pedagógicos e logísticos já indicados, há também insegurança quanto à capacidade da política de EJA atender aos objetivos para os quais foi criada. Quem paga a conta é o país e a população, que fica sem acesso ao seu direito, por acaso um direito que dá acesso a outros direitos.  

Em 2024, entrou em vigor o novo fator de ponderação do Fundeb para a EJA, que passou de 0,8 para 1, aumentando o valor repassado às redes municipais e estaduais para cada estudante dessa modalidade. No entanto, essa medida ainda não repercutiu na tendência de queda das matrículas registradas no Censo Escolar. 

De fato, o MEC, particularmente a Secadi, tomou fortes iniciativas neste ano para mudar esse quadro da EJA. Exemplo disso é o Pacto pela EJA, com um amplo chamado para envolver governadores e prefeitos, desenvolvendo um conjunto de iniciativas para fazer frente a essa situação tão complicada. Mas a reação não será imediata, porque é [um problema] muito complexo. 

Em geral, as escolas não recebem esses estudantes com alegria, não recebem com disponibilidade, não abrem salas, não abrem bibliotecas. Enfim, não é uma coisa simples.  

No ano passado, estive em um evento com municípios da região do Grande Recife. Conversamos muito sobre pequenos detalhes que podem fazer a diferença. No Ensino Fundamental, por exemplo, as prefeituras têm, em sua maioria, escolas voltadas para crianças. E todo equipamento escolar é infantil: a mesa, a cadeira e até a decoração das salas. Então, eventualmente, o estudante não se encaixa na cadeira. É um detalhe mínimo, mas se esse detalhe não funciona… 

Deveria ser feito um esforço que contasse com a participação efetiva dos estados e municípios. E pelo que nós estamos vendo, grandes redes de ensino, como as de São Paulo e do Rio Grande do Sul, estão fechando turmas, em uma lógica produtivista do que é a educação. Educação, para eles, é a educação de crianças e jovens. O resto é “vire-se”. Acho que é uma ideologia de descuidar dos jovens, adultos, idosos que estão fora da escola, como se eles fossem responsáveis por isso. Uma conjuntura difícil de contornar.  

A Secadi está fazendo um bom trabalho, se esforçando. Mas sabemos o quanto é complexo fortalecer o regime de colaboração para garantir a educação inclusiva em todos os níveis e etapas. 

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