Plano de convivência é estratégia para lidar com conflitos

Escuta, identificação dos principais problemas de clima e ações pactuadas por gestores, professores e estudantes têm potencial para combater o bullying e reforçar uma cultura de paz na escola

Grupo diverso de jovens do 9º ano da Escola Municipal Salgado Filho, em Belo Horizonte, está sentado no chão de uma sala de aula, formando uma roda. No centro da roda há um pedaço retangular de EVA com cartazes colados nele, mas não conseguimos ler o que está escrito em cada um. Eles estão em uma sala com espelho no lado esquerdo. As carteiras estão no canto da sala. Fim da descrição.
As rodas de conversa são rotineiras na EM Salgado Filho (MG). O convite para a turma se reunir e discutir assuntos que impactam o clima escolar pode partir de professores, coordenadores ou dos próprios estudantes. Crédito: Acervo pessoal/Nídia Medrado

Maria (nome fictício) era uma aluna excelente e quase não faltava às aulas da Escola Municipal (EM) Salgado Filho, em Belo Horizonte (MG). Mas, quando iniciou o 9º ano, em 2023, começou a sofrer com comentários maldosos, apelidos e o isolamento imposto por parte da turma na hora das brincadeiras. Tudo porque ela engordou durante a pandemia. “O bullying acontece porque os estudantes não aceitam o colega por ser gordo, negro, ter deficiência ou até por ser novato”, explica Nídia Amaral Rodrigues Medrado, coordenadora pedagógica geral da escola que vai da educação infantil até os anos finais do ensino fundamental e atende quase 700 estudantes da região oeste da capital mineira. “Quando notamos o aumento de faltas da Maria, vimos que algo estava estranho e chamamos ela e a mãe para conversar. A adolescente relatou que não aguentava mais e tinha até pensado em suicídio. Ela contou que os amigos já não eram mais amigos e que estava bem chateada com o comportamento dos colegas.”  

A solução proposta por Nídia foi agendar uma roda de conversa, prática habitual na Salgado Filho. A coordenadora propôs que os adolescentes tirassem de um recipiente papeizinhos nos quais estavam escritas palavras para estimular a conversa, tais como gratidão, tolerância e empatia. “Depois que alguns comentaram sobre o que estava acontecendo na escola, perguntei se a Maria queria falar”, relembra. A menina contou que durante a pandemia a mãe adoeceu e ficou acamada e que ela, com apenas 12 anos, assumiu os cuidados da casa e dos irmãos menores. Explicou que ficou sobrecarregada, teve depressão e começou a engordar. Depois, abriu o jogo para os colegas sobre como estava se sentindo com os comentários. “As lágrimas desciam da sua face, e, quando olhei para o círculo, estavam todos chorando. Naquele momento, conseguiram entender a dor dela”, conta a coordenadora. Logo em seguida, um colega pediu a palavra para se desculpar pela turma, e ele foi seguido por outros. “A conversa mudou a relação dali em diante. Ela não faltou mais à escola e no mesmo ano foi classificada para a 2ª etapa da Olimpíada de Matemática.”  

O que é bullying?

Segundo Dan Olweus, psicólogo sueco-norueguês, pioneiro em pesquisas sobre o tema, o bullying termo que tem origem na palavra inglesa bully, que significa “valentão” é um comportamento indesejado e agressivo entre crianças e adolescentes que envolve um desequilíbrio de poder entre as partes e se repete ao longo do tempo. O espanhol José María Avilés Martínez, doutor em Psicologia, professor da Universidade de Valladolid, na Espanha, e também pesquisador do assunto, reforça que as vítimas se mantêm nessa posição por não conseguirem se desprender de uma autoimagem negativa e com pouco valor. Afirma ainda que autores e alvos estão sempre sob a vigilância de seus pares, que testemunham os fatos. 

É necessário ressaltar que discussões e brigas pontuais não são bullying. Como indicado pelo pesquisador sueco-norueguês, é preciso haver repetição para se caracterizar como esse tipo de agressão. E ela ocorre entre pares, portanto, conflitos entre professores e estudantes ou entre gestores e alunos também não são bullying.

Entre as vítimas do bullying também estão os estudantes com deficiência. Nas últimas três décadas, quase 40% das crianças com deficiência sofreram bullying por outras. É mais comum o bullying presencial (37%) que envolve atos físicos, verbais ou relacionais, como bater e chutar, insultar e ameaçar, ou exclusão social do que o cyberbullying (23%), agressão que ocorre em meios digitais. Esses números fazem parte das Estimativas globais de violência contra crianças com deficiências, publicadas na revista científica The Lancet Child & Adolescent Health e divulgadas no Plano de Convivência da rede municipal de educação do município de Sumaré (SP). O estudo é uma revisão com base em pesquisas realizadas entre 1990 e 2020 envolvendo mais de 16 milhões de pessoas de 25 países, incluindo o Brasil. 

Repensar práticas para transformar 

Maria da Paz Castro, a Gunga, que é professora, formadora e especialista em educação inclusiva, toca direto na ferida: “Por que é tão difícil reconhecer os direitos de pessoas que têm menos espaço na sociedade, que têm deficiência ou ‘não são perfeitas’ como nós? A busca pela igualdade para uns pode ser vista como perda de privilégios para outros. Por isso, precisamos investir em uma educação antirracista, que também aborde questões de gênero e combata outros preconceitos”. Ela sustenta que os adultos da escola devem garantir o clima de justiça e de igualdade.  

O bullying tem uma marca de covardia: quem pratica não o faz sozinho, tem apoio e conivência dos colegas. “É difícil, mas quando acontece a violência física e moral contra a criança com deficiência não basta falar. A escola não pode dar espaço e autorização para isso. E não serve apenas apartar uma briga, mas sim entender os motivos e propor estratégias para superar o problema”, afirma Gunga.  

A especialista constata que sempre haverá conflito onde existem duas ou mais pessoas, o problema é lidar com ele de maneira construtiva. “Não existe uma escola totalmente inclusiva ou democrática, mas, quando a instituição tem esses princípios em seu projeto pedagógico, ela se debruça sobre essas questões mais complexas sem achar que sabe tudo. Faz valer os conflitos e as questões trazidas pelas crianças e aceita se transformar a partir deles”, explica a professora.  

A necessidade de atuação das escolas está prevista, inclusive, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Em maio de 2018, a LDB incorporou, por meio da Lei nº 13.663, a Lei Antibullying (nº 13.185, aprovada no Congresso em 2015). A LDB determina que as instituições de ensino devem “promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying), no âmbito das escolas”. Também precisam “estabelecer ações destinadas a promover a cultura e encontrar espaços de participação democrática e possibilidades de expressão de paz nas escolas”.  

Como colocar em prática o que está em lei? Muitas vezes, estudantes com deficiência sofrem com o capacitismo, e a escola só toma conhecimento disso quando a família relata ou quando o adolescente verbaliza seus sentimentos (leia reportagem sobre capacitismo, com sugestões de como enfrentá-lo). “Parece uma falta de atenção do professor, mas pode ser desconhecimento mesmo. A formação é um fator importante para ele perceber e identificar a situação de bullying”, diz Fabiana Régis de Oliveira Souza, que desde o ano passado é gestora da Gerência do Clima Escolar, da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (SMED BH). A gerência existe na rede desde 2017. “O professor precisa entender quais são as situações de constrangimento na infância e adolescência, compreender quais são as ações possíveis, como tratar um grau mais conflituoso e como envolver a família, ou seja, o percurso tem uma complexidade.”   

Na EM Salgado Filho, um plano de convivência foi traçado em 2018. Mas ele não é estático, e sim sujeito às dinâmicas do momento. Até mesmo os conflitos que aparecem em redes sociais, desde os mais simples até o cyberbullying, desembocam na escola. “A gente acha que porque eles são pares e têm a mesma idade vão conviver bem, mas não vão. Também cabe à escola ensinar convivência”, aponta Nídia.  

Foi assim na turma de João (nome fictício), um menino com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e deficiência intelectual do 7º ano que não deixava ninguém encostar nas colegas pelas quais ele se apaixonava. “Um grupo de meninas vinha se queixar do comportamento dele quase todos os dias”, relembra Nídia. Até que a coordenadora fez uma roda de conversa, em um primeiro momento só com a turma, sensibilizando-a com o curta For the Birds, da Pixar, que mostra passarinhos no fio elétrico e a chegada de um pássaro diferente. Após conversarem entre si, os estudantes entenderam que seria preciso ter paciência e uma postura diferente com o colega. Depois, a turma teve um segundo momento de conversa, dessa vez junto com ele. “Eles ouviram o João, que falou bastante sobre como se sentia. Ele contou que estava triste, pois parecia que ninguém gostava dele e que tudo o que ele falava era rebatido.” Nídia relembra que os alunos responderam de forma acolhedora e, no final, fizeram um abraço coletivo. Após esse encontro, o próprio João veio contar que todos estavam mais amigáveis, com alguns colegas até o apoiando nas atividades. Terminamos o ano sem visitas à coordenação”, fala Nídia. O trabalho de acolhimento feito pela escola é reconhecido pela comunidade. Na Salgado Filho, as matrículas de estudantes com alguma deficiência passaram de dez, em 2023, para 26 neste ano.  

Luciene Tognetta, pesquisadora e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)/Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), reforça que é papel da escola debater sobre as principais questões presentes na sociedade. “Diversidade e inclusão são temas que se relacionam a uma questão ética. Não falar de gênero, por exemplo, é ferir uma dimensão ética, assim como excluir meninos e meninas em função de uma deficiência é deixar de considerar sua dignidade.” 

Como construir um plano de convivência  

Quando os relatos de conflito na escola chegam à Gerência do Clima Escolar da SMED BH, seja para atuação específica ou para acolhimento das partes envolvidas, muitas vezes escondem em sua origem questões de gênero, racismo ou capacitismo. “Todo o tipo de preconceito que acomete a sociedade também está presente dentro da escola, e é detonador de conflito. Por isso a discussão sobre essas temáticas soma forças para instrumentalizar e desenhar um plano de convivência escolar”, explica Fabiana.  

Gestores e professores das mais de 300 unidades da rede municipal de BH iniciaram, em 2022, o percurso formativo “As dimensões do clima escolar para a elaboração do plano de convivência”, apoiado no instrumento de avaliação do clima escolar elaborado pelo Gepem. Segundo Fabiana, as perguntas disparadoras sugeridas aos gestores escolares no início do processo são:  

  • Que movimento é preciso fazer para que esse plano seja elaborado de forma coletiva?  
  • Qual é a convivência que desejamos ter na escola?  
  • O que é necessário fazer para alcançar essa convivência?   

“É preciso reconhecer a intencionalidade do trabalho de convivência nas escolas, reservando para ele um espaço e uma organização dentro do currículo”, defende Luciene, organizadora do Programa de Implantação das Equipes de Ajuda no Brasil, proposta baseada em um modelo espanhol e adaptada pelo Gepem. Ela prevê a formação, dentro das escolas, de grupos liderados por estudantes para apoiar os demais colegas. Esses alunos recebem formação para identificar e lidar com conflitos, dos pontuais ao bullying. A mediação de conflitos — há também modelos em que os mediadores são educadores — pode ser uma das iniciativas definidas em um plano de convivência que, segundo a especialista, precisa ser organizado, planejado e sistematizado a partir de um mapeamento de como está o clima escolar na escola e de avaliação docente.  

O primeiro passo é fazer uma escuta atenta dos principais públicos e atores escolares: gestores, professores, estudantes que são primordiais e, se possível, também pais, responsáveis e demais funcionários. Podem ser disponibilizados questionários para cada grupo de interesse e, depois de tabuladas as respostas, considerando a percepção de todos, traçar quais são os principais pontos de atenção. O plano de convivência pode ser organizado considerando três vias de ação:  

Relacionais – dizem respeito a tudo o que envolve as relações em todos os momentos e espaços escolares. Exemplo de ponto de atenção relacional: muitos estudantes não têm amigos.  

Curriculares – questões que podem ser trabalhadas dentro dos componentes curriculares. Exemplo de ponto de atenção curricular: não é feito nenhum trabalho com valores ou competências socioemocionais na escola. 

Institucionais – são de abrangência da escola, como a forma como ela se organiza para atender à comunidade. Exemplo de ponto de atenção institucional: os gestores não conseguem trazer as famílias para colaborar com a instituição.  

“É importante frisar que a convivência também é algo a ser planejado e carece de ordenação e de uma finalidade. Ou seja, é preciso identificar o ponto de partida e definir qual o ponto de chegada que queremos alcançar”, nota Luciene. Ela ressalta que um plano de convivência não pode ser trazido pronto, e sim ser construído pela escola, em um trabalho que, após a avaliação inicial, convoca gestores e professores a traçarem ações junto com os estudantes. O processo é complexo e pode levar tempo. “Vale dizer que esse é um registro que será sempre abastecido e revisto”, comenta a pesquisadora. 

Apoio entre iguais ajuda a combater o bullying 

Em Sumaré, o Projeto Equipe de Ajuda é uma das formas de atuação (preventivas e interventivas) previstas no plano de convivência das escolas. Entre 2019 e 2023, Leila Rosana dos Santos foi orientadora educacional dos anos finais do ensino fundamental na EM Profa. Nilza Thomazini, que atende cerca de 540 estudantes do 1º ao 9º ano. “Já era uma comunidade escolar vulnerável, com jovens envolvidos com drogas e roubos, mas após a pandemia o retorno à coletividade foi mais difícil, presenciávamos brigas constantes, crises de ansiedade e casos de autoflagelação”, conta Leila, para quem a equipe de ajuda fez enorme efeito na escuta e no acolhimento entre pares, melhorando as relações de convivência e diminuindo a agressividade.   

Na Nilza Thomazini, as formações e dinâmicas foram iniciadas depois de um trabalho junto com os estudantes para: (1) levantar quais eram os valores importantes para eles e quais as qualidades necessárias para o perfil de quem seria elegível para o acolhimento e escuta; (2) apurar, por meio de questionário, quais eram as situações mais constrangedoras e complicadas na escola, com objetivo de listar as questões para se trabalhar e direcionar ao grupo; (3) escolher, por votação, quais colegas fariam parte da equipe de ajuda.   

“Criamos um grito de guerra, fizemos um vídeo no qual cada participante da equipe se apresentou, traçamos metas de trabalho e, no 6º ano, preparamos lembrancinhas e ensaiamos um coral para receber os alunos novos”, relembra Leila. A equipe dos anos finais tem 30 estudantes e se reúne a cada 15 dias, além de trazer problemas para conhecimento de professores e orientadores.

Foi assim que notaram que uma menina com TEA ficava constantemente isolada em uma das turmas do 6º ano. A atitude foi trabalhada: primeiro foi mostrado um curta-metragem sobre um menino com deficiência. Na sequência, a professora orientou um ditado de figuras, em que foi nomeando: “cabeça grande, nariz pontudo, cabelos espetados, boca imensa, dentes afiados”, e as crianças desenhavam conforme preferiam. “Depois de todos os desenhos prontos, eles foram compartilhados e expostos. E ressaltamos que os comandos eram iguais para todos, mas nenhum desenho saiu igual ao outro. Dessa forma, a atividade provocou um debate e ajudamos a turma a perceber que cada um tem seu jeito e que ele precisa ser respeitado pelo outro”, explicou Leila.  

Em outra turma, a questão recorrente e que mais levava ao bullying era o racismo, em especial desmerecendo os cabelos das meninas. “Optamos por organizar seis encontros em sala de aula tomando por inspiração o livro Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado”, diz a orientadora, que hoje atua em uma escola de educação infantil do município. Ela lembra com saudade do período na Nilza Thomazini: mesmo quando a escola viveu ameaças de violência por meio das redes sociais, todos se mobilizaram para instituir uma cultura de paz.  

“Embora o trabalho seja constante, quando existe um histórico de violência os problemas continuam. Mas quando se traz uma reflexão sobre eles, o seu olhar muda. As crianças e adolescentes sabiam que tinham alguém para ouvi-los e acolhê-los e passaram a cobrar os pares, os professores e os funcionários da escola, demandando serem tratados com respeito.” No lugar da agressividade abriu-se um leque de possibilidades de escuta e de posicionamento.  

Ainda que cada escola tenha discutido e definido as próprias ações, as instituições de Sumaré (SP) consideraram alguns pontos como pilares para elaborar o Plano de Convivência: 

Primeiro pilar – O diálogo, a comunicação não violenta, a linguagem que acolhe – a confiança na escola  

Segundo pilar – A construção de regras que promovam a convivência democrática  

Terceiro pilar – Um ambiente e uma metodologia que partam da cooperação 

Com ações preventivas e de intervenção, a construção de uma convivência que respeite a todos na comunidade escolar envolve, portanto, avaliação de clima escolar, criação de espaços de escuta e diálogo, definição de estratégias para previnir, acolher e mediar conflitos, formação sobre a temática e elaboração de ações curriculares que promovam reflexões a respeito de ética e cidadania. 

Confira materiais para orientar o enfrentamento do bullying:  

#SOMOS CONTRA O BULLYING – site do Gepem que acompanha trabalhos da Rede de  Equipes de Ajuda no Brasil  

Guia Escola: Lugar de Proteção guia de orientações e encaminhamentos da SMED Belo Horizonte  

Coleção de livros Currículo & Convivência, organizada por Luciene Regina Paulino Tognetta e Rita Melissa Lepre, da editora Adonis 

Coleção Cadernos do Respeitar!, do Instituto Vladimir Herzog  

Cyberbullying: O que é e como pará-lo – página de orientação do Unicef Brasil  

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