Pesquisadora defende mais transparência no uso de recursos públicos para a educação especial

Para Marcia Maurilio, as despesas com as diferentes modalidades de ensino precisam ter classificações orçamentárias detalhadas, que facilitem o acompanhamento e o controle social

Foto de Marcia Maurilio Souza, uma mulher branca e cabelo loiro curto. Ela usa brinco e colar dourado e uma blusa vermelha e branca. Ao seu lado há alguns livros. Fim da descrição.
Marcia Maurilio Souza é professora da Universidade de São Paulo (USP), integrante do Grupo de Pesquisa de Políticas de Educação Especial e coordenadora da Rede de Pesquisadores em Financiamento da Educação Especial (Fineesp). Crédito: Acervo pessoal

Conhecer e debater o financiamento da modalidade da educação especial é essencial. Afinal, sem recursos não é possível implementar políticas públicas inclusivas, que visem à ampliação do acesso à escola, à melhoria da qualidade, à garantia da acessibilidade e à promoção da formação docente. 

Nesse sentido, as pesquisas na área, embora mais recentes do que em outras frentes do campo educacional, trazem elementos relevantes para mapear avanços, gargalos e desafios, como é o caso dos estudos realizados por Marcia Maurilio Souza, professora da Universidade de São Paulo (USP). Doutora em educação, ela integra o Grupo de Pesquisa de Políticas de Educação Especial e é uma das coordenadoras da Rede de Pesquisadoras/es sobre Financiamento da Educação Especial (Fineesp). 

No conjunto de suas pesquisas (várias realizadas em parceria com outras pesquisadoras e pesquisadores), destacam-se as análises sobre a utilização dos recursos destinados à educação especial oriundos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e de outras fontes. 

Em entrevista ao DIVERSA, Marcia analisa o cenário atual dos investimentos públicos na educação especial, sugerindo a necessidade de mudanças nos processos de registro de despesas, de modo a garantir um acompanhamento e controle mais minuciosos dos recursos vinculados à modalidade. 

Qual é o cenário atual do financiamento da educação especial no Brasil? E qual é o lugar do Fundeb nesse cenário? 

O custeio da educação especial no Brasil está submetido aos mesmos princípios da legislação do financiamento da educação básica. Então, podemos dizer que ainda estamos na luta por um financiamento adequado, que assegure uma educação de qualidade.  

Desde os anos de 1996 e 1997, quando se instalou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) [o antecessor do Fundeb, implementado em 2007], teve início uma política de financiamento que passou a garantir, de fato, um patamar mínimo de recursos para todas as escolas públicas. 

O novo Fundeb, institucionalizado em 2020, é considerado a principal fonte de financiamento da educação especial. Ele é importantíssimo porque tem como um de seus objetivos diminuir as desigualdades regionais e entre as redes e sistemas de ensino, principalmente nos estados e municípios. E os estudos demonstram que ele vem cumprindo esse papel.  

No caso específico do financiamento da educação especial é preciso destacar que, desde a publicação do Decreto 7.611/2011, há a garantia de financiamento duplo para a matrícula de estudantes público-alvo da educação especial, seja na sala comum, seja no atendimento educacional especializado (AEE).  

Entenda como funciona o novo Fundeb 

O novo Fundeb [acesse a cartilha] mantém a complementação de recursos realizada pela União para garantir o Valor Anual por Aluno (VAAF), que já existia para estados que não alcançavam o patamar mínimo. E traz outras duas novas formas de complementação e repasse: o Valor Total por Aluno (VAAT), para as redes municipais que não alcançarem o (VAAF); e o Valor Aluno Ano por Resultado (VAAR), para redes que melhorarem seus indicadores de atendimento e de aprendizagem, reduzindo as desigualdades. 

Para cada tipo de matrícula, o valor repassado via Fundeb por aluno é diferente. Os critérios para definição dos fatores de ponderação levam em conta: as etapas (creche, pré-escola, anos iniciais e finais do ensino fundamental e ensino médio); o tempo de permanência (parcial ou integral); a localidade (rural ou urbana) e as diferentes modalidades (educação de jovens e adultos, indígena, quilombola e profissional). As matrículas dos anos iniciais do ensino fundamental em tempo parcial têm um fator de ponderação de base 1, também chamado de valor de referência [este ano previsto em R$ 5.534,99/ano, conforme portaria de 8 de maio de 2024]. 

A educação especial tem um fator de ponderação diferenciado [conheça os novos fatores de ponderação], que resulta em um repasse de recurso maior para cada estudante desta modalidade. Desde que ele foi implementado até o ano passado, esse fator era de 1,2, ou seja, 20% superior ao valor de referência. A partir de 2024, ele foi ampliado para 1,4 [alcançando o valor mínimo de R$ 7.748,99/ano], o que significa um montante 40% superior ao valor de referência.  

Além do Fundeb, existem outras fontes de financiamento da educação especial? Quais são elas? 

Em relação à educação especial, como eu disse, podemos considerar que o Fundeb é a principal fonte de financiamento. A segunda maior é o Salário-Educação [saiba mais sobre esta contribuição social].  

Os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) vêm do Salário-Educação e de outras fontes para manter vários programas como o de alimentação escolar, do livro didático, do transporte e o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que atende a todas as escolas públicas e às instituições especiais ou comunitárias que solicitam esse recurso.  

Dentro do PDDE, há a modalidade PDDE Escola Acessível, que financia ações diretas para as escolas que possuem matrículas de estudantes público-alvo da educação especial. 

O governo do presidente Lula reativou no ano passado, com mais ênfase, o programa Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, que contempla um volume alto de recursos para manutenção e compra de equipamentos. Mas ele não é um programa universal: precisa ser solicitado pelas escolas e redes de ensino e é discricionário, ou seja, o governo envia o recurso conforme a disponibilidade orçamentária. [No final de 2023, o Ministério da Educação (MEC) anunciou diversas ações para retomar e fortalecer a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI).]  

No artigo “Educação Especial e o Fundeb: Histórico, Balanço e Desafios”, você e outros autores apontam que o fundo colaborou com o aumento das matrículas de estudantes público-alvo da educação especial na escola comum. É possível dizer que o Fundeb contribuiu para a educação inclusiva no Brasil? 

Não posso afirmar que o Fundeb contribuiu para a educação inclusiva, mas podemos dizer que essa política de financiamento ajuda na garantia do direito à educação inclusiva na classe comum, permitindo ampliar os apoios dos quais os estudantes público-alvo da educação especial necessitam. Isso está ligado ao fato de que, no Fundeb, a educação especial recebe um valor maior, além de assegurar o direito à segunda matrícula desse aluno no AEE.  

Analisando por esse lado, eu diria que o Fundeb contribui para a inclusão na escola comum porque amplia os recursos para as redes de ensino que têm matrículas de estudantes que são o público da educação especial. 

Como funcionam os repasses do Fundeb para a educação especial? O dinheiro que as redes estaduais e municipais recebem referentes à educação especial é aplicado exclusivamente na modalidade?  

Todos os recursos do Fundeb estão relacionados ao número de matrículas registradas no Censo Escolar do ano anterior. O que acontece? Vamos dar um exemplo.  

Suponha uma rede municipal com 500 crianças e bebês matriculados na educação infantil e mil estudantes nos anos iniciais do ensino fundamental. Se no conjunto de estudantes do ensino fundamental há 20% de estudantes com deficiência, esses recebem 40% a mais com fator de ponderação de 1,4 para cada matrícula no AEE. As crianças com deficiência na creche recebem ainda mais, porque nessa etapa o fator de ponderação é maior. Veja, segundo estimativa publicada em portaria interministerial pelos ministérios da Educação e da Fazenda, em maio de 2024, o valor mínimo anual praticado no país por matrícula na creche integral é R$8.032,48 (fator de ponderação 1,5) e no AEE, R$7.468,98 (1,4). Considerando o pagamento por dupla matrícula, trata-se de um incremento significativo nesse repasse, quando comparado ao valor de referência (matrícula nos anos iniciais do ensino fundamental em tempo parcial urbano, que é de R$ 5.534,99).

Com base nas matrículas e nas ponderações, todo o dinheiro do Fundeb é repassado para a secretaria de educação. Mas os repasses não são identificados ou “carimbados”, como costuma dizer o professor José Marcelino de Rezende Pinto.  

O dinheiro chega como receita para a secretaria de educação e deve ser usado respeitando as regras do Fundo, ou seja, separando pelo menos 70% para remuneração de profissionais. Os 30% restantes podem ser usados do jeito que a secretaria quiser, desde que essas despesas estejam classificadas em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE).

Está precisando construir uma creche nova? Tudo bem, a secretaria pode fazer. Precisa comprar equipamentos para a rede ou montar laboratórios de informática? Precisa comprar materiais de forma geral? É a pasta que determina o que é prioritário na utilização do recurso. Claro, desde que esteja dentro das regras de uso definidas nos artigos 70 e 71 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).

Se no momento de aprovação do orçamento da secretaria forem previstas ações específicas para a educação especial, como por exemplo, formação de professores na área de educação especial e inclusão, o dinheiro do Fundeb pode ser utilizado para esse fim. Mas não existe uma norma que determine que os recursos recebidos com base nas matrículas da educação especial devem ser usados especificamente nessa modalidade. 

Essa é uma regra da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que elabora manuais orientando as secretarias de educação sobre a prestação de contas no Sistema Integrado sobre Orçamentos Públicos em Educação (Siope) em relação ao Fundeb. Cabe destacar que a forma como os recursos podem ser utilizados é regulamentada pela Lei do Fundeb e a LDB, já a STN orienta a contabilidade pública, ou seja, a prestação de contas.

Um dos resultados de suas pesquisas sugere uma alteração nos demonstrativos de despesas relativas ao Fundeb, a fim de que seja possível acompanhar de maneira mais transparente como os valores referentes às matrículas dos estudantes da educação especial são utilizados. Por que isso ainda não é possível?  

Analisamos os manuais da STN de 2019 e 2020 e observamos que há indicação para as secretarias, no momento de fazer os registros das despesas, terem cuidado, principalmente em relação às despesas com educação especial, a fim de não duplicar essas receitas e despesas. Por quê?  

Vou dar outro exemplo: uma professora da educação básica que tem dois cargos de 20 horas. Em um, ela dá aulas na classe comum e, no outro, atua em uma sala de recursos.  

Na visão da STN, se a remuneração dessa professora for registrada como professora de educação especial, a rede de ensino corre o risco de duplicar a despesa com ela. Para não incorrer nesse erro, a orientação é ignorar que ela atua na educação especial e lançar somente uma despesa: uma professora que tem dois cargos e a sua remuneração.

Por isso, quando analisamos os documentos do Siope, é difícil identificar as despesas com educação especial simplesmente porque, de modo geral, elas não são registradas. Identifica-se a despesa na educação infantil e a despesa no ensino fundamental. Ponto.

Às vezes, as secretarias lançam no Siope uma despesa de educação especial. Como mostra o artigo, a análise de vários anos indica que há uma variação, mas não há uma lógica evidente às vezes a despesa aumenta ou diminui, sem um parâmetro, porque os gestores lançam as despesas da educação especial como querem.  

Como ampliar a transparência do uso dos recursos nesses demonstrativos?  

Defendemos que haja uma orientação para que as despesas com educação especial, ou com qualquer outra modalidade, tenham uma identificação clara na prestação de contas para que se possa entender como aquele dinheiro foi usado. Já temos a subfunção de educação especial dentro da função educação. O que falta é o detalhamento dentro dessa subfunção com elementos e códigos de despesa específicos, como, por exemplo, os pagamentos feitos para terceiros por tipo de serviço realizado.

Na minha tese de doutorado, busquei as despesas do estado de São Paulo com educação especial. Foi possível localizar algumas no site da Secretaria da Fazenda, que é muto organizado e transparente, mas não é possível identificar todas porque grande parte das despesas com educação especial estão agregadas às despesas da educação infantil, do ensino fundamental, do ensino médio ou da educação profissional, e assim por diante. 

Então, nós gostaríamos que isso aparecesse de uma forma mais descritiva nas contas, na contabilidade pública.  

Quais ganhos essa sugestão traria? 

Além de melhorar os estudos e as pesquisas, seria possível saber se as secretarias estão efetivamente aplicando ou não na modalidade. Também poderíamos fazer um acompanhamento de como o dinheiro do Fundeb está sendo utilizado na educação especial, já que esses estudantes trazem recursos extras para as secretarias de educação.   

Como você vê o cenário atual das pesquisas sobre o financiamento da educação especial no Brasil. Que temas necessitam ser mais investigados? 

De forma geral, as pesquisas em financiamento da educação no Brasil ainda são poucas, se compararmos com outros temas de estudos na área. E, dentro da pequena fatia de pesquisadores que estudam financiamento, há apenas alguns que se debruçam sobre o financiamento da educação especial. Fora do Brasil, o cenário é muito parecido. Na América Latina, um pouco. Na Europa, pouquíssimo. Nos Estados Unidos, idem.  

Por que acontece isso? Porque é uma área nova de pesquisa. Uma das primeiras pesquisadoras foi Marielle de Gonçalves França, que defendeu a tese em 2014. De lá para cá, a gente vem crescendo em número de pesquisadores e pesquisadoras interessados no assunto.  

Em nossos estudos, já comprovamos algumas coisas. Na questão da relação público-privado, as pesquisas mostram que há muitas parcerias com as organizações sem fins lucrativos da sociedade civil. Há também a questão dos valores agregados nas prestações de contas, como já respondi antes.  

A gente também já começou a pensar em trabalhos em rede. Estamos terminando de desenvolver, com o Laboratório de Dados Educacionais da Universidade Federal do Paraná (UFPR), uma pesquisa sobre o Custo Aluno Qualidade da Educação Especial.

A partir do Fundeb, podemos pesquisar as implicações da dupla matrícula na ampliação do atendimento e na oferta de serviços, no acompanhamento e no controle social pelo conselho do fundo, entre outras questões. Sobre financiamento das instituições privadas de educação especial, a gente pode olhar em detalhe para os recursos públicos da educação, saúde e assistência que são destinados a essas instituições.  

Podemos pensar também no papel dos órgãos que fazem o controle social dos recursos públicos e, assim, avaliar a atuação dos tribunais de contas, dos ministérios públicos e dos conselhos de educação. Pensar também em como são realizados os processos de participação da sociedade civil e dos profissionais da educação no planejamento orçamentário da educação, entre muitos outros temas. Há muito assunto para pesquisar na área.

Glossário do financiamento

Fator de ponderação do Fundeb: coeficiente utilizado no cálculo do valor de repasse anual por estudante matriculado. Suas variações levam em conta as especificidades e desafios de financiamento para cada etapa, localidade, jornada e modalidade de ensino. Os diferentes pesos dos fatores visam corrigir distorções e desigualdades educacionais (leia mais aqui).   

Salário-Educação: contribuição social realizada por toda empresa brasileira, de acordo com determinação da Constituição Federal, para financiar ações, programas e projetos direcionados à educação básica pública brasileira (para saber mais acesse aqui).  

FNDE: O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação é o órgão responsável pela execução das políticas educacionais do Ministério da Educação (MEC) (conheça mais aqui). 

Fundeb: O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação é um conjunto de fundos (26 estaduais e um do Distrito Federal) compostos por contribuições de estados, municípios e União, que serve como mecanismo de redistribuição de recursos para a educação básica (acesse aqui a cartilha com detalhes do Novo Fundeb).  

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