Não há inclusão sem trabalho coletivo da comunidade escolar
Em artigo, representantes da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva avaliam por que propostas legislativas que apostam no atendimento individual de estudantes com deficiência não são uma boa ideia

A escolarização de pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista (TEA) e altas habilidades ou superdotação em escolas comuns é um direito garantido por lei. Esse é um fato incontestável. No entanto, o debate sobre como garantir a permanência e a qualidade da educação para esses estudantes segue em aberto.
O Censo Escolar 2023 mostra que 91% dos estudantes com deficiência estão matriculados em classes comuns, um avanço significativo no acesso ao direito à educação. A presença desses estudantes fortalece a escola como um espaço democrático. Quando a diversidade está presente no dia a dia escolar, educadores e comunidades se vêem mobilizados a adotar práticas pedagógicas acessíveis, colaborativas e que contribuem para ganhos de aprendizagem para todos os estudantes, conforme aponta a pesquisa “Os benefícios da educação inclusiva para estudantes com e sem deficiência”, preparada para o Instituto Alana por Dr. Thomas Hehir, Silvana e Christopher Pascucci, professores de Prática em Diferenças de Aprendizagem na Harvard Graduate School of Education, nos Estados Unidos, em parceria com a Abt Associate.
Todavia, ainda existem inúmeros desafios estruturais. Um dos temas mais recorrentes nesse debate é como deve acontecer o apoio para estudantes com deficiência. A falta de regulamentação do profissional de apoio escolar, previsto na Lei Brasileira de Inclusão (LBI), gerou diversas interpretações nas redes de ensino – muitas delas equivocadas frente à legislação em vigor.
Algumas redes passaram a entender esse profissional como responsável por atender individualmente o estudante com deficiência em todos os momentos. Foram criadas denominações variadas como acompanhante pessoal, atendente terapêutico, entre outras, como se a inclusão dependesse exclusivamente de um único profissional e não da escola como um todo.
Vale destacar que a LBI prevê o profissional de apoio escolar para locomoção, alimentação e higiene dos estudantes que dele necessitarem – um aspecto fundamental para garantir a permanência – não cabendo a ele nenhuma atuação no campo pedagógico. Muito menos terapêutico, porque este não é o papel da escola.
Além disso, o que parece uma solução simples, na realidade escancara a falta de investimentos consistentes e contínuos na educação inclusiva.
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI, de 2008) já prevê o atendimento educacional especializado (AEE) como o serviço responsável por identificar barreiras e desenvolver estratégias para garantir a participação dos estudantes com deficiência, em diferentes arranjos que não significam necessariamente uma individualização.
Contudo, hoje apenas 38,2% dos estudantes da Educação Especial têm acesso ao AEE, de acordo com o último Censo Escolar, e só 42,1% dos professores responsáveis por esse atendimento têm formação continuada sobre Educação Especial. Por que essa política não tem sido fortalecida? Soma-se a isso os baixos níveis de acessibilidade nas escolas, seja nas dimensões arquitetônica, comunicacional, pedagógica ou atitudinal, muitas vezes com salas superlotadas e infraestrutura precária.
Nesse cenário, é compreensível que muitas famílias se sintam extremamente desamparadas e vejam no acompanhante pessoal a possibilidade de uma oferta de educação de qualidade para seus filhos. Mas a verdade é que a individualização, neste caso, pode reforçar estereótipos, estigmas e até o isolamento de pessoas com deficiência, além de criar empecilhos à aprendizagem, desenvolvimento da autonomia e interação dos estudantes. Outro possível efeito nefasto é a desresponsabilização de educadores, profissionais, estudantes e da comunidade escolar, que perdem a oportunidade de conviver e aprender com as diferenças.
A complexidade da situação deixa nítido que os desafios não serão resolvidos por medidas individuais, como a designação de um acompanhante pessoal para cada estudante com deficiência, mas sim por investimentos sistemáticos que fortaleçam o AEE, garantam formação adequada e condições dignas de trabalho para os professores e ofereçam suporte a toda a rede de ensino. É preciso refletir sobre os nossos sistemas educacionais e em que medida eles atuam para a manutenção ou agravamento das desigualdades.
É nesse cenário preocupante que segue em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3.035/2020, que, a exemplo de inúmeras outras propostas produzidas por nossos legisladores, coloca em evidência o atendente pessoal, reforçando a lógica da individualização e desviando o foco do real problema: a falta de investimento e de políticas que caminhem na direção do fortalecimento da educação inclusiva.
Em última análise, entender o acompanhante pessoal como uma solução é depositar nos estudantes com deficiência a “culpa” pela inefetividade da educação inclusiva. Trata-se de uma perspectiva cruel e capacitista.
Precisamos também nos questionar: quando a maioria dos estudantes com deficiência não estava nas escolas comuns, a educação era de qualidade e livre de desafios? Sabemos que a resposta é não. Se queremos avançar, é fundamental parar de buscar soluções paliativas e exigir o compromisso de implementação de políticas públicas sérias para a transformação das escolas em ambientes que não deixem ninguém para trás (ou de lado). Sem isso, continuaremos a tratar os efeitos do problema, mas nunca a sua origem.
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Karolyne Ferreira é especialista de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes (IRM). Possui bacharelado e licenciatura em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestrado em engenharia civil e urbana pela Escola Politécnica da USP. É responsável por promover a agenda da educação inclusiva, além de acompanhar e articular em rede com outras instituições pautas que foquem na melhoria das políticas públicas. Membra da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva.
Gustavo Paiva é analista de relações governamentais do Instituto Alana. Graduado em Comunicação Social e em Letras, é especialista em literatura para crianças e jovens. Tem experiência como educador popular, professor dos Ensinos Fundamental e Médio e, no terceiro setor, em projetos de educação em direitos humanos, advocacy e participação social. Membro da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva.
Marta Avancini é historiadora e jornalista de educação. Desde outubro de 2024, é coordenadora geral da Fundação Síndrome de Down. Integrante do Comitê de Comunicação da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD). Membra da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva.
Thaís Pereira Martins é bacharel e mestre em Políticas Públicas, com mais de 10 anos de atuação na defesa e garantia dos direitos das pessoas com deficiência. Atualmente é coordenadora de Pesquisa e Advocacy na Mais Diferenças. Membra da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva.
O que é a Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva?
A Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva é formada por mais de 30 organizações da sociedade civil que atuam nas áreas de direitos humanos, da infância e adolescência, das pessoas com deficiência e da educação, tais como Instituto Alana, Instituto Rodrigo Mendes e Mais Diferenças. Criada em 2020, no contexto do revogado Decreto 10.502/2020, que pretendia retomar a matrícula de estudantes com deficiência em instituições segregadas e, dessa forma, retroceder nos avanços conquistados pela PNEEPEI (Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva) de 2008. A Coalizão se mobiliza para garantir que bebês, crianças, adolescentes, jovens e adultos com deficiência tenham respeitado o direito ao acesso, permanência e aprendizagem na mesma sala de aula, junto a estudantes sem deficiência, em escolas inclusivas, acessíveis e acolhedoras.
Texto originalmente publicado no portal Nexo, em 27/03/2025.