Como a educação física pode se tornar mais inclusiva: lições aprendidas no curso Portas abertas para a inclusão

Segundo Jorge Steinhilber, presidente do Conselho Federal de Educação Física (Confef) e presidente da Academia Olímpica Brasileira:

A educação física é um caminho privilegiado da educação, pelas suas possibilidades de desenvolver a dimensão motora e afetiva das crianças e adolescentes, juntamente com os domínios cognitivos e sociais. A prática de atividade física e/ou esportiva por pessoas que possuem algum tipo de deficiência, sendo esta visual, auditiva, intelectual ou física, pode proporcionar, dentre os diferentes benefícios da prática regular de atividade física que são mundialmente conhecidos, a oportunidade de testar seus limites e potencialidades.

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O projeto Portas abertas para a inclusão nasceu de uma parceria estabelecida entre o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Fundação do Barcelona Futebol Clube e o Instituto Rodrigo Mendes. Desenvolvida no período de 2012 a 2014, a iniciativa almejava formar educadores de diversas regiões do Brasil para promover a inclusão de crianças com deficiência por meio de práticas esportivas seguras e inclusivas.

À época do começo do projeto, as 12 cidades participantes tinham cerca de dois milhões de estudantes na rede pública municipal de ensino fundamental, sendo cerca de 2% desse total atendidos pela educação especial (ou seja, estudantes em escolas especiais, em classes especiais de escolas regulares e em classes comuns de escolas regulares).

O presente artigo tem como objetivo apresentar as lições aprendidas ao monitorar os projetos executados pelas escolas e secretarias municipais de educação participantes do curso ambicionando inspirar educadores a repensar suas práticas e garantir a oferta de educação física para todos seus estudantes. Para isso, avaliamos os 113 projetos locais desenvolvidos pelos cursistas. Apresentamos, abaixo, as principais conclusões que foram levantadas em cinco diferentes dimensões. Tais dimensões foram definidas na metodologia do projeto DIVERSA.

Políticas públicas

A questão da acessibilidade apareceu como uma barreira em muitas escolas de diversos municípios. Os planos de ação em políticas públicas tiveram esse viés em muitos dos projetos locais. Nesse sentido, as estratégias de articulação entre escolas, secretarias de educação e outras secretarias pareceram importantes para garantir reformas das escolas e foram o meio encontrado para efetivar mudanças. Outros projetos envolveram a questão da acessibilidade por meio da mobilização da comunidade escolar.

As estratégias municipais de inclusão também tiveram importante impacto nos projetos elaborados pelos cursistas. Programas como o “Deficiência visual: sinta na pele”, de Curitiba, e os de reestruturação dos projetos políticos-pedagógicos escolares (PPPs), de Salvador e Fortaleza, são exemplos de como a secretaria pode atingir toda a rede, direcionando-a para a reflexão sobre inclusão. Tais ações também podem ajudar a maximizar recursos e melhorar a troca de informações e experiências pelas escolas.

Por fim, é papel da gestão pública disponibilizar recursos e organizar as formações continuadas sobre educação inclusiva. A necessidade que os cursistas exprimem sentir por formações é digno de nota e cabe às secretarias viabilizá-las, de forma a desenvolver o corpo docente de suas redes.

Gestão escolar

Os projetos que priorizaram a gestão escolar, no geral, trabalharam para redimensionar os PPPs das escolas (alguns com apoio das secretarias de educação). Com a estratégia de montagem de grupos de estudos, palestras e aproximação com as diretrizes e normativas legais, foram feitos trabalhos interessantes na perspectiva de garantir o direito de participação das crianças com deficiência nas atividades curriculares, além da promoção de atividades extracurriculares que pudessem aproximar a comunidade escolar do tema.

Também apareceu como papel da gestão escolar mobilizar os educadores em direção a uma maior conscientização acerca das habilidades, desafios e potenciais de seus estudantes, buscando uma cultura inclusiva, que respeite a diversidade.

Da mesma forma, a articulação entre o atendimento educacional especializado (AEE) e professores de salas de aulas surgiu como uma estratégia possível da gestão escolar, que pode assim beneficiar as ações e o planejamento pedagógico para atender a todos os estudantes. Esse trabalho em conjunto também incentivou a interdisciplinaridade.

Os projetos locais mostraram ainda que, em ações conjuntas às secretarias de educação, a direção da escola pode ficar atenta às questões de mobilidade no ambiente escolar e às adequações arquitetônicas, didáticas e atitudinais dentro das escolas.

Estratégias pedagógicas

Alguns temas chamaram a atenção, nessa dimensão. Em primeiro lugar, a preocupação com a flexibilização, adaptação ou adequação das atividades, espaços e estratégias. Em relação aos esportes, os educadores preocuparam-se em discernir potencialidades dos estudantes e de envolvê-los na proposição das atividades. Partindo do pressuposto de que se pode adaptar o esporte a partir da flexibilização das regras ou dos recursos (como propomos na matriz abaixo), foi possível repensar o planejamento da educação física para permitir a participação de todos.

A matriz de flexibilização da educação física inclusiva tem como eixo vertical a flexibilização de recursos e como horizontal a flexibilização de regras. O quadrante inferior esquerdo indica uma flexibilização baixa de ambos os eixos (ou seja “não modifica os recursos nem as regras”); o quadrante superior esquerdo indica alta flexibilização dos recursos e baixa das regras (ou seja “modifica os recursos mas não as regras”); o quadrante inferior direito indica baixa flexibilização dos recursos e alta das regras (ou seja “modifica as regras mas não os recursos”); O quadrante superior direito indica uma flexibilização alta de ambos os eixos (ou seja “modifica os recursos e as regras”).
Matriz de flexibilização de regrar e recursos para uma educação física inclusiva.

Assim, alguns grupos usaram estratégias que deixassem os estudantes escolherem atividades que permitiriam a participação de todos. Outros utilizaram como estratégia pedir que os estudantes modificassem regras e/ou recursos para criar novas práticas – ou novos esportes – para todos. Na maior parte desses casos, escutar os alunos foi considerada uma ação importante pelos educadores, como forma de aumentar a consciência destes para a questão da diversidade. Também foi considerado, para muitas das práticas propostas, o objetivo de que os educandos se colocassem no lugar do outro e desenvolvessem um espírito de cooperação.

Para a sensibilização dos estudantes, foram organizados seminários, palestras, grupos de estudos e vivências, que possibilitaram uma aproximação com a temática, um envolvimento da comunidade escolar, o esclarecimento dos parâmetros legais e as necessidades locais para a inclusão. Esses seminários tinham ênfase na mudança de comportamento e da cultura dos estudantes, no aumento da consciência corporal e na diminuição do preconceito.

Famílias

Os grupos que focaram seus projetos locais na dimensão familiar utilizaram estratégias de mobilização e sensibilização, como promover seminários e palestras que envolviam os pais dos estudantes. Alguns preocuparam-se em mapear o conhecimento e a opinião das famílias sobre o tema da educação para todos e, a partir daí, estruturaram suas estratégias. A aproximação da família com a escola também permeou planos de ação com foco em outras dimensões devido à importância da participação dos mesmos para efetivar a inclusão. O uso de atividades extracurriculares que pudessem trazer as famílias para dentro das escolas, promovendo oportunidades de participação conjunta, foi uma estratégia importante para obter essa aproximação entre a comunidade e a escola. Em alguns projetos, as famílias foram convidadas a se aproximar do planejamento pedagógico, estratégia essencial para garantir a gestão democrática da escola, que nos parece importante para a efetivação da inclusão.

Parcerias

Os projetos locais que focaram sua atenção nas parcerias tiveram como foco a busca ou fortalecimento de relações com instituições especializadas, nem sempre numa perspectiva inclusiva. Em alguns planos de ação, por exemplo, estudantes com deficiência foram encaminhados para esse tipo de organização, ao invés de terem acesso ao ensino regular na escola comum. Entretanto, foram mais frequentes os projetos que buscaram essas instituições para garantir a oferta de atendimento educacional especializado complementar.

Por fim, abarcando todas essas dimensões, os resultados foram expressivos, ainda que mostrando a necessidade de evolução. A reflexão em torno da temática da inclusão sensibilizou as escolas a lidarem de forma mais consciente diante dos princípios que a envolvem. A formação em educação inclusiva vem ganhando importância na medida em que a transformação do modelo de ensino pressupõe o protagonismo dos educadores, dos gestores, das famílias e dos demais públicos que integram a comunidade escolar para desenvolver estratégias que favoreçam a criação de vínculos, relações de troca e aquisição de conhecimento para todos. Nesse sentido, o curso e o desenvolvimento destes projetos locais realizados pelos cursistas possibilitaram um impulso transformador no que diz respeito ao esforço para refletir e agir a favor de práticas inclusivas, no caso específico, da educação física.

Desafios

Os projetos mostraram que a ideia do que é inclusão ainda não está clara. Por envolver uma mudança intensa na percepção do que é o processo de ensino e aprendizagem e de qual é o papel da escola e do educador, o paradigma inclusivo requer um tempo de maturação, fase pela qual passa o sistema brasileiro de ensino público. Tal transição, aliás, é encontrada em diversos outros países. Assim, práticas que não condizem com a inclusão, mesmo que bem-intencionadas, são bastante comuns. Exemplos disso são o uso do esporte adaptado realizado em separado dos demais estudantes e a ênfase exacerbada na perspectiva da “socialização” do estudante com deficiência (em detrimento da perspectiva pautada pela aprendizagem). Outro exemplo da dificuldade de se atuar de forma inclusiva é a presença, em diversas cidades, de escolas e classes especiais, onde os estudantes com deficiência são mantidos segregados, de forma que os educadores não precisem repensar suas práticas em sala de aula. Com resultado, tais estudantes são privados do direito ao convívio pleno com a comunidade escolar.

Deve-se ressaltar que, durante o curso, percebeu-se (tanto da parte dos organizadores quanto dos próprios participantes) que as formações em educação inclusiva fazem-se necessárias como espaços para reflexão sobre o que é e o que não é inclusão. Especializações e cursos de aprimoramento apresentariam possibilidades para os educadores não apenas repensarem sua didática como também compartilharem suas angústias frente a uma mudança complexa e ainda cercada por resistências de todos os atores. A presença de representantes de todas as dimensões da educação – gestores públicos e escolares, professores, profissionais especializados etc. – nesses cursos é mister para se criar uma rede de suporte e de soluções criativas que possa fortalecer cada um dos indivíduos e a rede como um todo, numa perspectiva democrática de educação.

Últimas considerações

Tendo em vista o exposto no presente relatório, podemos considerar algumas aprendizagens:

• Que a articulação entre os diversos atores da comunidade escolar é essencial para uma mudança real da concepção de educação. É necessário que cada ator receba apoio dos outros em sua empreitada, de forma a consolidar uma cultura para a diversidade;

• Que é necessário que as escolas revejam seus PPPs, pois eles refletem a mudança de paradigma almejada. Nesse caso, mais importante do que o documento final obtido é o processo de reflexão da comunidade escolar que irá proporcionar a modificação dos valores de seus integrantes;

• Que, da mesma forma, os educadores precisam repensar suas práticas a partir da pergunta: “o método que estou usando permite que todos participem de minha aula?”

• Que é papel da secretaria de educação e da gestão escolar dar apoio a esse educador, tanto do ponto de vista dos recursos quanto da aceitação das práticas diferenciadas;

• Que escutar os atores envolvidos (sejam eles estudantes, familiares, professores ou quaisquer outros) facilita o envolvimento no processo de mudança;

• Que é papel da família estar presente na escola, dando apoio às modificações e, ao mesmo tempo, participando dos processos de planejamento pedagógico, fortalecendo a gestão democrática escolar.

Por fim, que as parcerias com instituições especializadas precisam ter como objetivo que essas atuem como provedoras de atendimento educacional especializado e suporte técnico, e não como substitutas da escola. As presentes reflexões nos parecem dialogar com os aprendizados de muitos grupos durante o período em que o Portas abertas para a inclusão esteve em curso, em sua primeira edição. Como passo inicial, alcançou boa distância. Resta continuar caminhando.

 

Juliana Kujawski Leite de Moraes é socióloga pela PUC-SP e mestra em antropologia social pela Université de Provence. É consultora em avaliação e planejamento estratégico de projetos sociais.

Augusto Galery é doutor em psicologia social, pesquisador do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO) da Universidade de São Paulo (USP) e professor do Centro Universitário Fecap. Foi colaborador do Instituto Rodrigo Mendes até 2015.

Luiz Henrique de Paula Conceição é mestre e graduado em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Atua como pesquisador e coordenador do programa de formação em educação inclusiva no Instituto Rodrigo Mendes.

Rodrigo Hübner Mendes é fundador do Instituto Rodrigo Mendes, organização que desenvolve programas de educação inclusiva. É mestre em administração pela Fundação Getulio Vargas (EAESP), membro do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial) e Empreendedor Social Ashoka.

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