Este artigo é destinado a professores, especialmente aqueles que atuam na educação infantil. Nesse nível de ensino, os docentes têm uma expressiva oportunidade de formação para a convivência com as diferenças.
A fase de desenvolvimento das crianças é favorável a aprendizagens, inclusive de novos códigos, como os de língua estrangeira, cânticos e instrumentos musicais. Da mesma forma, são melhor assimiladas atitudes e valores que auxiliam a convivência e a inclusão social, com possibilidades de preservação, consolidação e permanência desses hábitos ao longo da vida.
Além dessa condição favorável à compreensão das diferenças, as crianças têm expressões espontâneas de afeto e de vivências em grupo. Isso se dá nas atividades de classe, nas brincadeiras, nos jogos e danças.
Se reafirma, então, que os professores que atuam em todos os níveis, da educação infantil à superior, são formadores de pessoas que atuarão na sociedade. Deseja-se que eles estabeleçam relações positivas, acolhedoras: relações que favorecem a paz e a união entre as pessoas.
O que é convivência?
A princípio, conviver é estar junto, fazer laços, ter afeto pelas pessoas com as quais se convive. As crianças têm uma disposição natural para conviver, estabelecer afetos, brincar, conversar, divertirem-se junto às outras.
Assim, fazem parte do desenvolvimento infantil e, consequentemente da docência, os valores de solidariedade, colaboração mútua e acolhimento, refletindo um ambiente bom, construtivo.
Desse modo, todas as pessoas, independentemente de suas singularidades, poderão ser acolhidas pelas crianças e, de modo geral, pelo ambiente da escola. Do contrário, pessoas com diferentes características poderão se sentir desiguais, por não corresponderem a modelos ou padrões tradicionalmente aceitos. Sua proximidade pode causar resistências e, por isso, serem deixadas à margem dos espaços (ambientes, contextos, relações) reservados aos demais.
Decorrem, então, as categorias e classificações atribuídas, de modelagens preconcebidas. Essas classificações reduzem a “ameaça” daquilo e de quem se conhece pouco, ou não se deseja conhecer.
Nessa mesma perspectiva, formam-se as “representações do outro”, que também, em um movimento reflexo, reforçam nesse “outro” as suas autorrepresentações. Ou seja: as representações sociais também poderão ter uma influência expressiva sobre as representações que cada pessoa forma sobre si mesma.
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As autorrepresentações de quem se sente desigual
Pensando nisso, em um movimento de mútua interferência, projetam-se as imagens e conceitos nas pessoas que são tratadas como “diferentes”, em um sentido depreciativo. Nesses sentimentos, pode se incluir o de “se sentir desigual” em relação aos demais, atribuindo-lhes uma condição superior.
“Sentir-se desigual”, portanto, pode ser um modo de se ver menor, comparativamente aos demais, e aceitar modelos de normalidade que justificam um autoconceito inferior. Isso afeta a autoconfiança, a autoestima e tem consequências na segurança, na tranquilidade. O que se desdobra, perversamente, em tensões que contaminam a saúde física, psicológica e emocional.
Nesse encaminhamento de análises, é oportuno também refletir sobre o efeito da contaminação da saúde do corpo orgânico sobre a saúde do corpo social.
Assim se confirma o princípio de que sujeitos tranquilos contribuem à sociedade saudável. Enquanto sujeitos tensos, oprimidos, subalternos, são evidências de uma sociedade doente, que apela para reflexões e ressignificações a favor da promoção humana e da saúde social.
Sendo assim, o desconforto de “sentir-se desigual” pode ter efeitos como estresse e depressão, que tensionam e debilitam a saúde e o equilíbrio emocional. Esses podem ter dimensões significativas e profundas, pois estão introjetados nos sentimentos e nas avaliações dos sujeitos sobre si próprios.
Nesse sentido de um contexto depressor, pode ocorrer a subalternidade. Entre tantas consequências sociais e políticas possíveis, isso gera a aceitação passiva de um valor, um lugar, uma posição “menores” nos ambientes e relações sociais.
Entenda a autorrejeição
Considerando os pontos anteriormente citados, até mesmo o silêncio, o medo e a invisibilidade podem se tornar opção de quem se “sente desigual” e não quer ser notado. Uma vez que, ao ser notado, sua forma de ser também será evidenciada e, com ela, o seu valor social menor e a sua exclusão, em seus vários tipos e processos.
Logo se percebe o quanto a exclusão atinge o ser humano e o quanto pode se transformar em uma autorrejeição: a rejeição de si próprio e a aceitação passiva da desconsideração a seus direitos. E chega-se, portanto, ao nível opressor e destrutivo da autoexclusão.
O medo de ser notado e reconhecido nos ambientes sociais é uma ocorrência frequente naqueles que temem rejeições e violências movidas por preconceitos. Esse tipo de temor é acentuado no caso dos que vivenciam privação de direitos por ações e discriminações excludentes nos contextos de vida, convivência e estudo, a exemplo da escola.
É sabido que a escola constitui um ambiente suscetível a perspectivas catalisadoras de julgamentos sociais, que absorvem conceitos, preconceitos e fatores de tensão social. Bem como esses fatores se encontram no entorno, eles refletem no interior do ambiente escolar, interferindo, consequentemente, nas relações dentro e fora da sala de aula. Por isso, essa questão deve ser trabalhada já na educação infantil.
Prejuízos causados pela exclusão escolar
O convívio diário no ambiente escolar e as vivências desse meio por um tempo significativo propiciam amadurecimento, construção de laços afetivos e consolidação de amizades.
Entretanto, se no convívio por tanto tempo e nas oportunidades de estabelecer relações houver atitudes de exclusão, quem as sofre também poderá consolidar o sentimento de frustração e levá-lo consigo para o resto da vida. Assim, a tristeza cresce, ao mesmo tempo em que a pessoa se sente “menor”.
O que se reafirma, a cada reflexão dessa natureza, são os efeitos dos processos e atitudes excludentes. Nota-se que a duração e a intensidade desses efeitos podem se constituir em fatores de desconstrução pessoal da autoestima, da confiança em si próprio, da esperança e até mesmo da consciência de direitos a serem respeitados.
Os preconceitos sintetizam impressões equivocadas, imaginárias, do real e se disseminam modelos preconcebidos e idealizados de comportamentos, que podem influir, inclusive, na forma como cada pessoa se apresenta (e se representa) diante dos demais.
No real, o que se encontra é, sobretudo, o valor da pluralidade que caracteriza os ambientes e as relações sociais.
Por outro lado, o que destoa, o que agride essas relações são atitudes que humilham, que desmerecem o outro e prejudicam sua autoestima. É esse movimento externo de exclusão e rejeição que desencadeia o movimento interno correspondente, pelo qual a pessoa excluída também se exclui e atribui a si própria a sua menor valia social.
Assim, por influência de rejeições externas, manifestadas em diferentes graus, de forma explícita ou não, a pessoa pode “se sentir desigual” e se submeter a tratamentos excludentes em diversos aspectos. Exemplos são as características socioeconômicas, étnico-raciais, religiosas, culturais, de gênero, de longevidade, além de aspectos físicos e cognitivos.
A inclusão com início na educação infantil
Essas considerações sobre acolhimento, valor sociocultural e político das diferenças que caracterizam o mundo plural reafirmam o entendimento de que o processo de inclusão/exclusão é de amplo alcance, considerando o amplo conjunto de diferenças que traçam o contorno do mundo, da humanidade.
Confirma-se, então, a premissa de que as diferenças que caracterizam a pluralidade sociocultural não justificam ou admitem desigualdades. As diferenças são características e direitos dos seres humanos e da pluralidade social.
Portanto, é indispensável compreendê-las com perspectivas mais reais, menos preconceituosas e, dessa forma, mais fraternas e solidárias, com objetivo de construir a vida e a convivência.
Essas perspectivas auxiliam a redesenhar, com tons mais sensíveis, os ambientes e as relações sociais, tornando-se especialmente relevantes e necessárias à formação que os professores oferecem aos estudantes em todos os níveis de sua escolarização, se iniciando na educação infantil, que é terreno fértil para aprendizagens necessárias à paz e à inclusão social.
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Mary Rangel é autora do livro “Diversidade – Um compromisso pedagógico da Escola” e organizadora do livro “A escola diante da diversidade”. Possui doutorado em educação e aprofundamento de estudos em nível de pós-doutorado em psicologia social.
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