Como trabalhei preconceitos para empoderar turma da EJA

Valorização da diversidade humana, elevação da autoestima e reflexões sobre discriminação racial marcam projeto

Sou professora alfabetizadora da Educação de Jovens e Adultos (EJA) na EMEF Luiz Bortolosso, localizada no município de Osasco (SP). Trabalho com estudantes do 1º ao 4º ano do ensino fundamental que carregam grande expectativa de aprender a ler e escrever.

No museu Afro-Brasil, Nilma e três estudantes posam sorridentes para foto lado a lado. É possível ver algumas obras do museu atrás deles, todas com temática afro-brasileira. Fim da descrição.
A educadora Nilma e seus estudantes. Créditos: Roberto Setton/Nova Escola

Em 2018, a turma era formada por educandos com idade entre 24 e 71 anos, oriundos majoritariamente da região nordeste do país e que traziam na bagagem conceitos e preconceitos enraizados em seus valores.

No início do ano letivo, sempre proponho uma roda de conversa para que eles possam se apresentar e contar um pouco de sua história. Uma das alunas contou detalhadamente a sua realidade. Descreveu sua trajetória desde o momento em que foi abandonada: história permeada de vários preconceitos vividos.

Contou que foi criada por uma tia que a tratava com muito desprezo e humilhação. Nos poucos dias que conseguiu frequentar a escola, sofreu todo tipo de discriminação racial por ser negra, além de ser vítima de bullying por conta de sua condição de abandono e pobreza escancarada.

A fala da aluna encorajou os outros estudantes a compartilhar situações de preconceitos vividas em diferentes momentos de suas vidas. Histórias tristes, chocantes e muitas vezes revoltantes que me deram a certeza da necessidade de transformar tudo aquilo em aprendizagem. Nascia assim o projeto “Um sorriso negro, um abraço negro”.

 

Respeito e valorização das diferenças

Busquei propiciar momentos de reflexão, partindo de um processo de conhecimento e respeito às identidades culturais, com o intuito de resgatar e fomentar atitudes individuais e coletivas contra o preconceito e a favor da valorização da diversidade humana.

O projeto foi idealizado a partir das demandas apresentadas pelos alunos e estava alinhado ao ensino sobre “História e Cultura Afro-Brasileira e indígena“ no ensino fundamental e médio, previsto na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação.

Assim, buscamos possibilitar o compartilhamento de vivências e a realização de atividades que levassem os estudantes a:

1. Compreender a relação entre a diversidade cultural e os direitos humanos;

2. Identificar e analisar diferentes situações cotidianas que refletem a intolerância e o desrespeito a diversidade;

3. Desenvolver e divulgar, na escola e na comunidade, estudos que propiciem o resgate da cultura indígena e afro-brasileira;

4. Mediar a construção da autoestima do educando, elevando-a para que o mesmo possa fazer suas considerações positivas no relacionamento social com os seus semelhantes;

5. Promover a formação de opiniões, atitudes e valores que desenvolvam nos educandos a consciência étnico-racial.

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Como se quebra um preconceito?

Desenvolvemos abordagens metodológicas realizadas em atividades dentro e fora da sala de aula tratando a diversidade, o preconceito e o respeito às diferenças de modo inter e transdisciplinar. Para isso, dividi as abordagens em duas etapas.

Primeiro, fizemos um levantamento dos conhecimentos prévios dos alunos sobre as terminologias “preconceito”, “racismo”, “discriminação”, “segregação” e “etnocentrismo”. Após discussão e uso do dicionário, propusemos coletivamente a definição de cada uma das palavras.

Posteriormente, listamos os principais tipos de preconceito vivenciados pelos estudantes, o que serviu de base para a elaboração de uma investigação com a comunidade. Cada aluna e aluno ficou responsável por realizar uma pesquisa sobre as principais formas de discriminação no entorno escolar. Para isso, entrevistaram colegas de classe, professores, funcionários e gestores da escola, para entender a realidade de cada um.

Qual preconceito você já vivenciou?

Sentada em ponto de ônibus, uma estudante segura um questionário de pesquisa. Ao seu lado, de pé, está uma mulher sorrindo e a observando. Ao fundo, vemos uma rua de um bairro de Osasco, com carros e ônibus passando. Fim da descrição.
Aluna entrevista mulher em ponto de ônibus.

A pesquisa também foi levada para a casa dos estudantes e alcançou parentes, vizinhos e amigos. Entusiasmados com a atividade, os estudantes extrapolaram os muros da escola e o levantamento chegou à fila do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ao local de trabalho, postos de saúde e até em feiras livres.

Embasados no resultado da pesquisa, construímos um gráfico com as respostas dos entrevistados e identificamos que o racismo era a principal forma de discriminação vivenciada pela comunidade. Por conta disso, direcionamos nossos estudos para a questão do negro no Brasil.

Participamos de atividades culturais para proporcionar reflexão em sala de aula: assistimos a uma peça de teatro, realizamos visita ao Museu Afro-Brasil e participamos de palestras sobre a escravidão e a realidade indígena, oferecidas pela Secretaria de Educação de Osasco.

Na escola, assistimos a filmes e documentários sobre a questão racial, analisamos textos e os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A leitura e a reflexão dos escritos provocaram inquietude e trouxeram abordagens diferentes daquelas que são defendidas pelo senso comum.

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Valorizando a autoestima dos estudantes

Na segunda etapa, o foco foi a autoestima dos estudantes. Propiciei diferentes leituras, em variados suportes midiáticos, que valorizassem personagens negros da nossa cultura. Assim, conhecemos biografias de figuras ilustres que se destacaram nas lutas em favor do povo negro.

O Laboratório de Informática foi nosso grande aliado nessa etapa do projeto, possibilitando estudo transdisciplinar de figuras históricas, como Castro Alves, Carolina de Jesus, Aleijadinho, Zumbi, Dandara, Nelson Mandela e Marielle Franco.

Por fim, cada estudante produziu sua própria autobiografia, de acordo com seu nível de aprendizado: aqueles com maior dificuldade poderiam seguir um roteiro pré–estabelecido.
Em sala de aula, Nilma e seus alunos posam para foto sorridentes. Alguns estão sentados em carteiras escolares, e outros estão de pé atrás deles. Fim da descrição.

Orgulho, empoderamento e pertencimento

Todo esse processo de aprendizagem aumentou a autoestima da turma, levando à formação de sujeitos autônomos, orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial e capazes de refletir criticamente sobre sua realidade, a fim de transformá-la.

O projeto foi tão significativo que fez com que o número de estudantes da turma aumentasse consideravelmente, refletindo também uma notável diminuição no quadro de evasão escolar: o nosso maior desafio. Tivemos inclusive que desmembrar a turma inicial por conta do número de estudantes.

Como a diversidade cultural manifesta-se em todas as áreas do conhecimento e nas relações sociais, foi possível que os alunos se apropriassem de diversos conhecimentos em história, língua portuguesa, matemática e artes, estabelecendo relações entre saberes e a temática proposta.

Com as atividades propostas, percebemos que os alunos desenvolveram o empoderamento de sua cultura e elevaram a sua autoestima, criando uma empatia com a história de vida de diversas personalidades que, assim como eles, também sofreram com o preconceito.


Nilma Sladkevicius é uma das 10 vencedoras do Prêmio Educador Nota 10 de 2019 com o projeto “Um sorriso negro, um abraço negro”.

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