Professoras da Bahia ensinam matemática com álbum de figurinhas
Escola de Campo Formoso colocou turma do 3º ano para comprar, vender e trocar figurinhas, o que permitiu avanços na aprendizagem e na interação entre todos os estudantes
Em sua rotina, o professor tem um desafio constante: engajar os estudantes no processo de ensino-aprendizagem. Mas fazer com que a turma participe das propostas pedagógicas nem sempre é uma tarefa fácil. Uma alternativa é criar situações de aprendizagem que se relacionem com o cotidiano das crianças e adolescentes fora da escola.
Uma experiência que exemplifica essa possibilidade ocorreu no Colégio Municipal (CM) Manoel Ricardo de Almeida, em Campo Formoso (BA). Na unidade, duas professoras realizaram, com uma turma do 3º ano do ensino fundamental, o projeto “Educação para Todos e para Cada Um — Álbum de Figurinhas”. A proposta previa o uso do álbum de figurinhas — brincadeira comum em muitos lares — para trabalhar o sistema monetário brasileiro em situações de compra e venda. “Grande parte das crianças são filhas de vendedores e feirantes. Então, essa foi uma oportunidade de abordar com elas algo concreto, para que pudessem vivenciar o que já veem seus familiares fazerem regularmente”, conta Gileusa Torres, professora do atendimento educacional especializado (AEE) do colégio.
“A matemática está presente em diferentes atividades que realizamos diariamente. Conseguir enxergá-la no cotidiano é um movimento que nos faz perceber a sua importância e a sua conexão com as diferentes áreas do conhecimento. Promover isso aos estudantes é tornar o ensino significativo a quem está no processo de aprendizagem”, comenta Selene Coletti, professora há mais de 40 anos na rede pública e atualmente gestora na Escola Municipal de Educação Básica (EMEB) Philomena Zupardo, em Itatiba (SP). Selene foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10 em 2016 e é colunista da Nova Escola, onde escreve sobre alfabetização matemática.
O ponto de partida
O CM Manoel Ricardo de Almeida fica no povoado de Baixio, zona rural do município de Campo Formoso. A instituição atende 493 estudantes, da educação infantil aos anos finais do ensino fundamental, dentre os quais 20 são pessoas com deficiência. Há alunos com deficiência intelectual, física e múltipla, pessoas com baixa visão e com transtorno do espectro do autismo (TEA).
O projeto surge nesse contexto e pela participação de educadoras da escola no curso de formação realizado no âmbito do “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade”, uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (saiba mais no final do texto).
Além da professora Gileusa, participaram da formação a professora de língua portuguesa, Iraildes Silva, e a coordenadora dos anos finais do ensino fundamental, Valdione Santos. Durante o curso, elas foram mobilizadas a elaborar e desenvolver um projeto que envolvesse todas as crianças, tendo como ponto de partida uma situação desafiadora. De acordo com Valdione, a boa articulação entre as profissionais da escola foi essencial para identificar onde seria mais necessária uma proposta como essa. “Apesar de coordenar os anos finais do fundamental, decidimos trabalhar com uma turma do terceiro ano, já que, durante as trocas com as demais profissionais da escola, percebemos uma necessidade urgente em uma das turmas.”
O foco se voltou para a classe da professora Joseane Silva, que conta com 23 alunos, dentre os quais Fábio (nome fictício), uma criança com TEA. De acordo com ela, era preciso atuar para desenvolver a aprendizagem do garoto, assim como ampliar sua participação nas aulas e na socialização com os colegas. “Ele tinha dificuldade de interagir com as demais crianças, por isso não criou elos de amizade em sala. Em consequência disso, tinha pouco interesse nos conteúdos e quase não ficava dentro da sala de aula”, aponta Joseane. “A ideia do projeto era realmente provocar o contato entre eles, já que, normalmente, completar um álbum envolve se relacionar com outras pessoas que também tem o mesmo material e precisam trocar figurinhas”, complementa a educadora.
A escolha pelo álbum temático
Para refletir sobre como enfrentar as barreiras identificadas, a professora do AEE buscou estreitar vínculos para conhecer melhor o aluno. “Liguei para a mãe [dele] e conversei com a professora regente, e observamos que o Fábio gosta muito de figuras adesivas e tem grande fixação por animais aquáticos, muito por conta do filme ‘Procurando Nemo’”, diz Gileusa.
Para unir o interesse do menino com a necessidade pedagógica de toda a turma, as profissionais decidiram criar um álbum de figurinhas temático do filme. A ideia era que os estudantes aprendessem, de forma prática, o sistema monetário brasileiro ao realizar situações de compra e venda, que incluem dar ou receber troco.
Mas muitas das crianças não conheciam o filme “Procurando Nemo”, por isso as professoras promoveram uma sessão de cinema durante uma das aulas com o propósito de engajar a turma em um universo que já era de interesse de Fábio. Funcionou. “Quando descobriram que trabalharíamos com um álbum de figurinhas com o tema do filme, todos ficaram eufóricos e ansiosos esperando a próxima aula”, relembra Joseane.
“Nem sempre as crianças irão se interessar pelos conteúdos aplicados. Isso é normal. O que nós precisamos fazer é promover estratégias mais significativas para atingir a aprendizagem de todos. E aí surge outro desafio: como atender aos diferentes gostos?”, ressalta Selene. “Um exemplo de sucesso é conhecer seus estudantes e planejar diferentes maneiras, como essa do álbum ou outras brincadeiras com objetivo de favorecer a aprendizagem. Depois, levar para a turma as possibilidades, demonstrando que os interesses de cada um poderão ser contemplados em outros momentos.”
O desenvolvimento do projeto
As professoras produziram os álbuns, as figurinhas (formadas pela imagem e o nome dos animais aquáticos), as moedas e as notas que seriam usadas. Gileusa conta que a escolha da equipe foi por trabalhar com todas as moedas usadas no país e notas de até cinco reais. “Sabemos que entre as crianças há diferentes níveis de conhecimento sobre o tema, então decidimos iniciar com esses valores para que todos pudessem acompanhar a proposta.”
A dinâmica do projeto envolveu quatro aulas para o preenchimento completo do álbum por toda a turma. Todos receberam um exemplar com 24 espaços em branco e montaram no caderno uma tabela a ser atualizada a cada aula. As informações preenchidas foram: a data na qual estavam realizando a atividade, o número de figurinhas repetidas, a quantidade de figurinhas coladas naquele dia, quantas restavam para completar o álbum e a somatória de figuras coladas em todas as aulas até ali.
Em um ponto da sala ficava a banca de dinheiro, controlada pelas professoras. Todos os estudantes receberam um envelope com cinco reais, cada um com a quantia composta de maneira variada, com moedas e notas (todas sem valor real). Com o dinheiro, eles podiam comprar os pacotes de figurinhas, que custavam R$ 1,25. “Nos envelopes, havia oito figurinhas, sendo que uma sempre era repetida, para provocá-los a realizar a troca entre eles. Da mesma maneira, cabia a eles entregar à banca o valor correto para a compra de cada pacote e conferir o troco. Eles podiam adquirir quatro pacotes por dia, mas não de uma vez”, afirma Gileusa.
Para Selene, vivemos em um cenário no qual o uso de recursos digitais e cartões para pagamentos se tornou uma realidade, por isso é importante as crianças terem contato com moedas e cédulas. “Cada vez menos utilizamos o dinheiro em espécie; assim, os mais novos não têm oportunidades para desenvolver a prática do uso de notas e moedas. Realizar uma dinâmica como essa contribui para que todos conheçam esses materiais e possam lidar com o troco, algo que não existe no meio digital.”
Nas aulas seguintes, o processo foi repetido, com as professoras oferecendo tempo para que a turma pudesse realizar as trocas entre eles. Elas estimularam a cooperação, com um aluno ajudando o outro a contar a quantidade de figurinhas recebida e o troco, bem como a preencher o álbum e a tabela. De acordo com Joseane, o acompanhamento das professoras aconteceu pela observação em sala, ao ouvir as dúvidas apresentadas e olhar os materiais de cada um. “Percebemos que todos conseguiram compreender o conteúdo, cada um utilizando uma estratégia. Fomos apresentando as dúvidas individuais para o coletivo e os estimulamos para que eles mesmos chegassem à solução do problema.”
Uma das questões levantadas foi o fato de que nem todos conseguiriam completar o álbum por falta de figurinha. “Nós não tínhamos pensado nessa possibilidade, foram eles que identificaram o problema”, conta Gileusa. A saída combinada com a turma foi colocar à venda figurinhas avulsas. “Nesse momento, devolvemos a eles o desafio de calcular quanto custaria cada figurinha, e eles chegaram ao valor de 15 centavos, número arredondado para fluir a dinâmica”, completa a professora.
Para Selene, o formato adotado no projeto pode proporcionar várias aprendizagens às crianças. “O processo aplicado é uma prática social de quem troca figurinhas, algo comum para crianças dessa idade. Ou seja, não foge da realidade deles. Da mesma maneira, permite, em sala de aula, compartilhar os conhecimentos matemáticos com a existência das problematizações, como, por exemplo, o fato de todos terem recebido a mesma quantia [cinco reais], mas de forma diferente. Eles trazem o problema, discutem e compartilham como entenderam a situação.” É possível, por exemplo, tratar de equivalência de valores ou de como trabalhar as operações matemáticas usando números decimais etc.
A especialista aponta que os professores precisam criar ambientes seguros para que cada aluno consiga compartilhar o que sabe, levantar suas dúvidas e trazer sugestões. “O profissional precisa chamar um a um para participar, seja inicialmente de maneira tímida, dizendo do que gostou e o que entendeu da proposta, mas que aconteça uma interação com o coletivo. E quando isso acontecer, o professor tem de estar atento ao que o estudante fala, respeitar o seu conhecimento e fazer com que a turma também o ouça e o respeite. Caso contrário, somente os mesmos irão participar, contribuir e se desenvolver nas aulas”, explica Selene.
Os frutos do trabalho
Ao final desse percurso, as professoras avaliam o projeto como bem-sucedido. Segundo elas, os participantes desenvolveram habilidade de cálculo mental, com entendimento da equivalência de valores no sistema monetário financeiro e de argumentação no processo de troca. E isso incluiu o estudante Fábio. “Vimos que ele participou ativamente da proposta, ao preencher o álbum e realizar os demais processos juntos com os colegas. A interação dele melhorou significativamente, e ele iniciou relações de amizades em sala de aula”, conta Joseane.
Selene pondera sobre a duração da iniciativa. “Esses trabalhos não podem ser pontuais. É claro que a educadora não irá ficar no sistema monetário e no álbum o ano todo, mas a lógica de buscar caminhos para fazer um ensino significativo e criar estratégias que considerem todos [os alunos] deve ser uma premissa permanente na escola.”
Seguindo essa linha e vendo o sucesso do projeto, as educadoras continuaram a trabalhar o tema e realizaram um bazar de roupas. “Como vimos que eles entenderam bem a proposta inicial, quisemos ampliar a prática com notas mais altas e uma dinâmica diferente: o bazar era com roupas usadas, cedidas pelas famílias e pela escola, e as vendas aconteciam entre eles com as moedas e cédulas criadas por nós”, relata Gileusa.
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Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade
O projeto “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade” é uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Movimento Bem Maior, o Instituto Ambikira e o Instituto Machado Meyer, e visa a formação de educadores, gestores escolares e técnicos de secretarias municipais de Educação de todo o país. O objetivo é potencializar práticas e políticas públicas locais que proporcionem uma educação de qualidade para todas e todos.
Dividido em diferentes etapas, que vão de 2023 a 2025, o programa é realizado em parceria com dez secretarias municipais de Educação, que representam as cinco macrorregiões do Brasil: Maués (AM), Óbidos (PA), Campo Formoso (BA), Gado Bravo (PB), Irauçuba (CE), Lucas do Rio Verde (MT), Cajati (SP), Patos de Minas (SP), Alvorada (RS) e Canguçu (RS).
No ano passado, a equipe do IRM conduziu uma formação semipresencial com cerca de 400 educadores desses municípios, que incluiu orientação e apoio para a elaboração e o desenvolvimento de cem projetos inclusivos, com foco na promoção do protagonismo e da autonomia de todos os estudantes.
Neste ano, as ações formativas do projeto Alavancas tiveram como público-alvo técnicos das secretarias municipais de Educação. O objetivo era que, ao final do percurso, cada rede elaborasse uma política pública voltada à educação inclusiva. Em 2025, está previsto o monitoramento das políticas elaboradas neste ano e uma pesquisa sobre os impactos gerados pelas formações, além de dois cursos que serão disponibilizados na plataforma de formação do IRM.