Projetos literários contribuem para ampliar as leituras de mundo

É fundamental que a escola assuma seu papel de protagonista na formação de novos leitores, compreendendo o acesso ao livro como um bem comum e um direito de todas as pessoas

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Certo dia, em uma floresta encantada, um monstro malvado, que gostava de assustar os seres humanos que por ali passavam, encontra um estranho objeto. Intrigado, ele pega o que parece ser apenas um amontoado de papel, cheira e lambe, mas logo joga no chão, com raiva. “Não tem gosto de nada!”, pensa. Mas alguma coisa dentro dele muda rapidamente quando vê saltar imagens coloridas das páginas que se abriram no chão.

Não demora para que o pequeno monstro, movido pelo encanto e pela curiosidade, aprenda a ler e passe a devorar livros, de modo que ele próprio começa a se transformar por meio de experiências literárias. Esse é o enredo de “O Monstro que Adorava Ler”, de Lili Chartrand, com ilustrações de Rogé, uma narrativa que reflete a magia dos livros.  

Quando uma criança mergulha nas páginas de um livro, ela embarca em uma jornada de muitas emoções e aprendizados. Ao acompanhar a história e se encantar com personagens, cenários, diálogos e situações diversas, ela tem a chance de conhecer novas culturas, ampliar o vocabulário, exercitar a imaginação, aprender mais sobre o mundo e entender as próprias emoções e as dos outros. Durante esse processo, ela também desenvolve a capacidade de decodificar palavras, compreender diferentes gêneros textuais e interpretar e analisar criticamente o que foi lido.  

Por todo esse potencial de aprendizagem, os livros são verdadeiros aliados no desenvolvimento integral de todas as pessoas, não só dos estudantes. De acordo com a última edição da pesquisa Retratos da Leitura, 48% da população brasileira com cinco anos ou mais não é leitora. Ou seja, não leu um livro, inteiro ou uma parte dele, ao longo dos 12 meses anteriores à realização do estudo, entre 2019 e 2020. Daí ser essencial que a escola planeje intencionalmente ações que promovam a formação de leitores desde a primeira infância.  

Ler para ampliar os horizontes 

De acordo com Bel Santos Mayer, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) e integrante da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, a leitura, especialmente a literária, colabora com o processo de formação leitora em todas as etapas de desenvolvimento da criança, uma vez que vira acesso às palavras, às histórias e a um repertório vasto.  

“A leitura é o que pode trazer mundos diferentes daquele que está dentro da casa dessa criança, como personagens e contextos que ela não vive fisicamente, mas que pode acessar por meio da literatura. Assim, tem a possibilidade de conhecer valores que são diferentes dos delas e de ampliar a empatia e o respeito a tudo que é diferente de si. Ao mesmo tempo, possibilita à criança fazer uma viagem para dentro de si mesma, definindo, por exemplo, quem ela é, do que gosta e em que acredita”, ressalta.   

A leitura de mundo precede a leitura da palavra 

Adriana Leite Limaverde Gomes, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC) e especialista em educação inclusiva, explica que, embora a educação brasileira tenha, do ponto de vista da escolarização, bem definido o ciclo em que se espera a consolidação da alfabetização — que envolve oralidade, leitura e escrita, nos primeiros anos do ensino fundamental —, não existe “idade certa” para aprender a ler. Em um universo heterogêneo como as escolas, os estudantes têm ritmos diferentes de aprendizagem.  

Vale também considerar que a leitura tradicional não é o único jeito de acessar outros mundos. “As crianças não pedem permissão para ler nem escrever. Desde muito pequenas, ainda bebês, elas fazem leituras de mundo, seja por meio dos sons, das imagens, das texturas, dos movimentos, do ambiente, da expressão dos adultos de sua convivência, e assim por diante”, afirma.  

“É como dizia Paulo Freire: ‘a leitura de mundo precede a leitura da palavra’. Portanto, são várias as possibilidades de leituras em meio às situações com as quais as crianças se deparam no contexto social”, completa Adriana, que é pesquisadora na área de linguagem e práticas educativas, no eixo escola e educação inclusiva.  

Por isso é importante promover, desde a educação infantil, o contato com o universo da leitura e da escrita por meio dos livros ou de atividades que façam a turma refletir sobre as práticas sociais de leitura e escrita em um convite para que as crianças “leiam sem saber ler”. Depois, no ensino fundamental, quando entra o trabalho de alfabetização propriamente dito, a exposição ao mundo da leitura e da escrita avança, com atividades inseridas na rotina. E, aos poucos, as crianças vão estabelecendo relações entre leitura e o sistema escrito, cada uma em seu ritmo.

Como formar leitores no ensino fundamental  

Mas como formar leitores durante o ensino fundamental, garantindo a inclusão de todos? Para Adriana, o primeiro passo é compreender que a sala de aula é, por natureza, heterogênea e está em constante mutação. Por isso, é necessário conhecer a turma e entender quais são as diferentes estratégias pedagógicas utilizadas pelos estudantes para se apropriarem da leitura e da escrita. É com esse conhecimento que o professor conseguirá elaborar atividades que levem ao avanço de todos.  

Na prática, isso implica ao professor, que é o mediador por excelência, planejar e prever situações diversas nas quais todos e cada um possam participar, considerando que haverá em sala leitores fluentes e leitores em desenvolvimento. Ele pode promover atividades nas quais ele próprio lê, mas também é essencial acompanhar leituras coletivas, com as crianças em duplas, por exemplo, e leituras individuais. “O papel do professor é o de planejar quais serão as condições oferecidas, ou seja, se a leitura terá pistas, como mesclar palavras e imagens, por exemplo”, observa Adriana. 

A preparação de um ambiente leitor 

Para Bel, a leitura não pode ser vista apenas como uma atividade de lazer, muito menos ser colocada em um lugar de castigo. “A leitura precisa fazer parte do projeto educacional da escola, e, para isso, é necessário criar propostas atraentes, que envolvam desde pensar qual o lugar da biblioteca dentro da arquitetura da instituição, para que todos tenham acesso a ela, até a construção de nichos de leituras que coloquem a literatura como algo tão interessante a ponto de provocar situações de ‘fofoca literária’, com conversas sobre essas vidas que estão nos livros”, enfatiza a educadora, que há 18 anos faz parte de um movimento que “espalha livros da maternidade ao cemitério” em Parelheiros, região periférica na zona sul de São Paulo (SP).  

“Como em qualquer proposta na educação, é essencial ter intencionalidade ao trabalhar com a leitura. Não basta deixar os livros expostos na estante. Isso é insuficiente. Eles precisam estar em todos os lugares e ao alcance de todos, especialmente em territórios periféricos, onde as pessoas não têm livros dentro das suas casas. E, mesmo em territórios em que os livros estão presentes, a escola precisa incentivar o uso da biblioteca e da sala de leitura, caso tenha uma das duas”, comenta Bel. 

Bibliodiversidade: a importância de um bom acervo literário 

Outro ponto crucial é garantir aos estudantes acesso a um material rico, contextualizado e significativo para que possam compreender o sentido da leitura. “Muitas vezes, a depender da concepção que a escola tem em relação à leitura, isto é, se ela é extremamente tradicional, há uma certa ojeriza por parte desses estudantes, no sentido de não querer ler ou achar que a leitura é algo chato, um castigo, que não tem sentido. Em geral, isso ocorre também por conta da qualidade do material que é oferecido a eles no processo de formação de leitores”, pontua Adriana. Ou seja, um bom acervo literário pode ser determinante para o sucesso — ou não — de uma proposta literária com a turma. 

Para escolher boas obras, é imprescindível considerar, a princípio, a faixa-etária e os interesses dos estudantes, mas igualmente importante é a bibliodiversidade, segundo Bel. O conceito é difundido há mais de 30 anos por especialistas da área e diz respeito a livros e publicações que apresentam à sociedade diversas vozes e visões de mundo. “Somos tão diversos como pessoas, por que seria diferente na literatura? Por que estaríamos confinados a um único gênero literário, a um único tipo de livro?”, reflete.  

“Por muito tempo, achou-se que a escola era o lugar dos livros clássicos, mas ela também é o lugar onde é possível acessar essa bibliodiversidade, encontrar um livro ‘para chamar de nosso’, destaca Bel. Para isso, há a necessidade de oferecer gêneros distintos (conto, crônica, poesia, romance, história em quadrinho etc.) e autorias diversas (de regiões variadas do nosso país, mas também de outros países e continentes), mesclando literatura clássica e contemporânea. “Se a criança vem de uma família que não teve acesso aos livros na infância, aquela literatura terá muito o que dizer para ela e pode ser uma porta de entrada para pessoas que estão em processo de letramento em qualquer idade”, completa. Essa diversidade deve abranger histórias e autores de culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas, como estabelecem as leis 10.639 e 11.645.  

Nesse sentido, os temas também precisam ser avaliados durante a escolha das obras, especialmente porque muitos deles dialogam com a realidade dos estudantes. “Hoje em dia nós temos, por exemplo, uma vasta literatura antirracista. É fundamental trazer essa discussão para dentro da escola, como também é necessário considerar pautas que às vezes são colocadas embaixo da mesa, como se não pudessem ser discutidas, que é o caso de homofobia, machismo, questões relacionadas aos povos indígenas, às pessoas com deficiência e a outros grupos marginalizados. Não estamos dizendo que o olhar deva estar exclusivamente voltado para essas literaturas, mas elas precisam estar presentes no acervo”, ressalta.  

+ Confira 15 dicas de literatura afro-brasileira e africana, em reportagem do portal Geledés.

O que um bom projeto de formação de leitores deve ter? 

Encantamento. “Eu não conheço um projeto de leitura que funcione sendo uma coisa enfadonha. Tem de encantar, tem de ter brilho. Tem de ser um projeto que não contemple só as crianças e adolescentes, mas também envolva os professores responsáveis”, diz Bel. Isso pode ser alcançado por meio da seleção cuidadosa dos livros e das atividades planejadas, por exemplo.  

Acessibilidade. De acordo com Adriana, ao elaborar um projeto, deve-se perguntar: “Quem será o meu público-alvo? Para quem é esse projeto?”. E, a partir disso, pensar em como as ações serão desenvolvidas, uma vez que devem ser acessíveis a todos, considerando o modo como cada estudante entra em contato com o livro e o desenvolvimento de sua autonomia. Na prática, pode significar pensar em acervo com livros em braille ou acessível por meio de leitores digitais, por exemplo.  

Articulação com o PPP. É importante que o projeto esteja alinhado ao projeto político-pedagógico (PPP) da escola e não seja visto como algo separado. É fundamental o diálogo entre os envolvidos e os demais profissionais da escola, buscando uma integração com outras áreas do conhecimento e um envolvimento amplo da comunidade escolar. “É preciso uma aldeia para a gente também se encantar pela literatura”, diz Bel.  

Planejamento. O professor deve preparar atividades pensando no antes, no durante e no depois da leitura. No antes, é possível ter ações para chamar a atenção para a capa, o título e as ilustrações, por exemplo, ou apresentar informações sobre a temática da obra. O durante envolve promover condições de acesso e de garantia da autonomia. E o depois pode incluir momentos para os estudantes compartilharem impressões e opiniões sobre os livros.  

Projetos literários: alavancas para a formação 

A Escola Municipal Samuel Galvão de Oliveira, situada na periferia de Campo Formoso, a 400 quilômetros de Salvador (BA), atende cerca de cem estudantes do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, sendo que dez deles são público-alvo da educação especial. Até o começo do ano passado, a sala de leitura era um espaço pouco utilizado e, para a grande maioria dos alunos, os livros literários eram objetos pouco explorados, uma vez que o contato com eles não fazia parte da rotina dentro e fora do ambiente escolar. Nesse contexto, muitos alunos apresentavam dificuldade para realizar atividades de leitura e escrita.  

Tudo mudou quando a ex-coordenadora pedagógica da unidade, Marcela Nunes, percebeu o interesse de uma estudante do 5º ano pela leitura. “A Luíza é uma criança que anda para cima e para baixo com um livro nas mãos. Ela tem Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) com hiperfoco em livros e não gostava de participar de outras atividades nem de interagir com os colegas, mas amava ler”, conta.  

Marcela teve a ideia de criar um clube do livro para envolver também os outros alunos. Assim nasceu o “Clube do Livro SG” (a sigla faz referência ao nome da escola), desenvolvido durante o projeto “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade”, em 2023 — uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Movimento Bem Maior, o Instituto Ambikira e o Instituto Machado Meyer.  

O clube surgiu com o intuito de incentivar a leitura e a interação entre estudantes do 4º e 5º ano por meio da troca de conhecimentos possibilitada pelas experiências literárias e, assim, ampliar o repertório de todos. Todo o desenvolvimento do projeto contou com a tutoria da equipe de formação do Alavancas. A primeira etapa foi planejar as ações e apresentá-las à comunidade escolar.  

Para isso, a escola organizou um chá com leitura, em um ambiente com tapetes e almofadas, com a presença de educadores, famílias e estudantes. Na ocasião, a professora do atendimento educacional especializado (AEE) fez uma contação de história, como uma maneira de despertar o interesse pelo universo literário. Na sequência, as professoras explicaram o projeto e convidaram todos a participar. O objetivo, além de atrair os estudantes, era conquistar o apoio de pais e responsáveis.  

Nas etapas seguintes, as responsáveis pelo projeto (Marcela, a professora regente Naiana da Silva Gama Santos e a professora do AEE) se uniram para escolher o acervo de livros, considerando a faixa-etária dos estudantes e a diversidade das obras. Depois, elas prepararam uma ficha de inscrição, na qual o aluno podia colocar seus principais interesses, e uma carteirinha do associado, para proporcionar a sensação de pertencimento ao clube. Outro momento importante foi a definição de combinados, como horários e os cuidados com os livros. Mais de 60 estudantes do 4º e 5º ano se inscreveram para participar dos encontros que eram realizados na sala de leitura, duas vezes por semana, no contraturno das aulas. 

Não demorou para que a sala de leitura, que antes vivia deserta, fosse ocupada pelas turmas dos últimos anos do ensino fundamental. Os alunos podiam ler livremente e, em pequenos grupos, conversar sobre as obras, com a mediação das educadoras. Eles também podiam pegar livros emprestados e levar para casa. Na devolução, contavam como havia sido a leitura.  

“Luíza não faltava um dia, e logo percebemos que ela começou a interagir muito mais com os colegas, falando dos livros que lia”, recorda Marcela. “Samuel, outro estudante com deficiência, não sabia ler palavras, mas se maravilhava com os livros que tinham imagens e recontava as histórias. Ele sempre dizia: ‘Professora, esse livro é muito bom, estou amando”, completa.  

Propostas devem ser complementares à sala de aula 

Adriana enfatiza que projetos de leituras devem envolver as famílias, o que requer, por exemplo, o aluno levar livros para casa para ler com os pais. “O propósito desses projetos deve ser criar um ambiente de prazer e deleite, no qual os estudantes tenham autonomia de escolha, para que possam optar pelo que querem ler e tenham a oportunidade de usar esses momentos para simplesmente se deliciar com a leitura, sem cobranças, sem notas, mas sim para criar gosto por essa prática”, destaca a especialista.   

Ela pondera, porém, que os projetos de leitura devem ser pensados como uma complementação ao trabalho realizado em sala de aula. “A criação de clubes e círculos de leitura que possibilitem momentos e espaços para a livre expressão é fundamental para a formação leitora, desde que sejam desenvolvidos de maneira suplementar à atuação do professor em sala, que deve incluir na rotina momentos de leitura”, recomenda.  

A professora regente Naiana sabe bem disso. No decorrer do ano letivo, a sala de leitura se manteve aberta aos estudantes — e continuou com boa frequência, muito por conta do estímulo inicial, diz ela —, mas, devido à falta de profissionais para fazer a mediação do clube no contraturno escolar, o projeto passou a ser desenvolvido apenas com a turma do 5º ano.   

Toda semana, a gente dedicava um período exclusivamente à leitura. Eles escolhiam um livro, levavam para casa e depois a gente fazia uma roda de conversa. Era um momento muito importante para a troca entre todos, conta Naiana. “Alguns tinham mais dificuldade na fala e preferiam preencher uma ficha com um resumo da obra, contando quem era o autor, o ilustrador e do que mais tinham gostado”, completa a professora. Oferecer maneiras diferentes para os estudantes se expressarem (além da escrita, o compartilhamento pode ser feito por meio de desenho, de áudio ou vídeo, por exemplo) permite a participação de todos na atividade.  

A professora ressalta que todos participaram, independentemente de saber ler ou não. Como no caso de Samuel, outros estudantes com deficiência ainda não desenvolveram a leitura da palavra, mas liam imagens, recontavam a partir do que viam e gostavam de ouvir as histórias compartilhadas na sala. “Tínhamos uma aluna com deficiência intelectual, e a mãe dela era analfabeta, não existiam livros na casa dessa família. Para essa criança, os momentos de leitura eram um deleite, a gente percebia no olhar, nas expressões e nos gestos o quanto era satisfatório para ela”, frisa.  

Em área externa de escola, estudantes estão sentados em roda enquanto professora, que está ao centro, faz contação de história. Fim da descrição.
Atividades de leitura e contação de histórias reúnem na praça estudantes e professoras da Emef São Francisco, em Óbidos (PA). Credito: Acervo pessoal/ Amanda Filizzola

A arte do ler, contar e recontar 

O incentivo à formação de leitores não deve ficar restrito aos anos iniciais do ensino fundamental. “Piquenique da Inclusão: a Arte do Ler, Contar e Recontar” é o nome do projeto realizado com estudantes do 6º e 7º ano da Emef São Francisco, em Óbidos, município situado a 1.100 quilômetros de Belém (PA). A iniciativa, também desenvolvida durante a formação do “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade”, mobilizou toda a comunidade escolar e ultrapassou os muros da escola. “O nosso principal objetivo foi envolver os alunos no mundo da leitura e da escrita, estimulando a imaginação”, explica a professora de língua portuguesa Amanda Filizzola, além de desenvolver a criatividade e a capacidade de comunicação e expressão, com atividades nas quais os estudantes podiam apresentar suas interpretações das obras por meio de desenhos, dobraduras, textos e contações de história. “Contamos com o envolvimento de todos: professores, profissionais da escola e especialmente das famílias”, completa a docente.  

Ela conta que a ideia do projeto surgiu da constatação de que, nos últimos anos, a escola tem recebido muitos estudantes público-alvo da educação especial. Boa parte deles, principalmente os com TEA, enfrentam barreiras na comunicação e na interação com os colegas. “O intuito era criar uma proposta que envolvesse todos os estudantes com deficiência no processo da leitura, também aqueles mais tímidos e retraídos, que não participavam muito das aulas, de forma que pudessem se comunicar e interagir com os demais por meio das experiências literárias”, explica.  

O projeto teve diversas etapas e contou com a participação de toda a equipe da escola, inclusive da professora do AEE, Maziane Matos. Em todas elas, Amanda e Maziane se articularam para planejar propostas que garantiriam o acesso de todos às ações do projeto.  

Isso significou, por exemplo, considerar como envolver Edmilson, um estudante de 15 anos, que tem deficiência auditiva e microcefalia e não está alfabetizado. Ele foi transferido para a escola no ano passado, quando teve, pela primeira vez, acesso ao serviço do AEE. Apesar de a escola não contar com um intérprete de Libras, a professora do AEE conseguiu iniciar o processo de alfabetização apresentando a ele alguns sinais. Ela também ensinou os colegas de turma, os demais professores e os familiares do estudante.  

Foi nesse contexto que ocorreu a escolha das obras que iriam compor o projeto, incluindo livros da escola e outros do acervo das educadoras e dos próprios alunos. As organizadoras pensaram na diversidade de gêneros e de autores, mas também consideraram a necessidade de ter opções para um leitor em início de formação caso do Edmilson.  

Depois vieram as rodas de leitura com três turmas, nas quais discutiam os títulos lidos, recontavam as histórias e tinham a tarefa de levar os enredos para casa. “A proposta era que eles contassem histórias para os pais, para que também vivenciassem essa troca de conhecimentos, e depois compartilhassem com os demais como tinha sido a experiência”, conta Amanda.  

“Como estamos em um contexto amazônico, temos muita contação de histórias com lendas e mitos, e isso favoreceu o trabalho, além de aflorar ainda mais a imaginação deles”, completa a professora. Ainda nessa etapa, ela organizou um jogo com um dado no qual constavam perguntas objetivas para aguçar a discussão sobre os livros. Por exemplo: “Qual outro final você daria para a história?”.   

A etapa seguinte foi o trabalho com uma ficha de leitura com perguntas sobre a história lida. Havia também a possibilidade de se expressar por meio de desenhos que representassem a leitura da obra, opção escolhida por muitos alunos. “Nesse momento, descobrimos que alguns deles eram desenhistas e conseguiam se expressar muito bem por meio dessa linguagem”, comenta Amanda. Ela conta que um deles foi Ian, que é um aluno com TEA.   

Depois foi realizada uma oficina de dobraduras, na qual um estudante que já dominava essa arte ensinou os colegas a recontarem as histórias dos livros por meio da construção de objetos de papel. E, por fim, ocorreu o piquenique. O local escolhido para a vivência foi a praça da cidade, que foi palco de diversas atividades de leitura e contação de história, com a presença de professores de outros componentes curriculares e das famílias.  

Para Amanda, um dos momentos mais marcantes foi a participação de Ian, que, antes do projeto, não interagia com ninguém. “Ele não conseguia ter qualquer tipo de conexão com outras pessoas e vivia muito restrito a seu próprio mundo”, relembra. No dia do piquenique, ele pegou o barquinho de papel que tinha feito anteriormente, em atividade com a professora do AEE, e contou para todos, da sua maneira e com riqueza de detalhes, a história do Titanic. Depois desse dia, ele continuou fazendo dobraduras e contando outras histórias em sala de aula. “O projeto foi um estalo para que ele pudesse interagir com os demais alunos e para descobrir o potencial da leitura e das histórias”, relata. De acordo com a professora, atualmente ele acompanha a turma sem a necessidade do trabalho no AEE.  

Outro momento que fez sucesso no piquenique foi o “tabuleiro inclusivo de histórias”, desenvolvido por Amanda para alunos com deficiência visual e auditiva, mas que foi utilizado por todos das turmas. As casas do tabuleiro têm numerais em braille e uma dobradura tátil de um animal amazônico. Cada estudante joga um dado e, quando cai em um número, ele deve criar na hora uma pequena história com o animal em dobradura. Os estudantes podem construir histórias coletivas ou individuais. 

Leitura, escrita e muita interação  

Ao longo dos projetos, tanto no “Clube do Livro SG” quanto no “Piquenique da Inclusão”, os avanços dos estudantes ficaram evidentes. Em ambos, as equipes pedagógicas registraram evolução na leitura, na escrita e na interação entre eles. “Ouvi de muitos pais que os filhos não passavam mais tanto tempo no celular porque os livros estavam despertando mais o interesse das crianças. A possibilidade de discutir as histórias com os colegas era um estímulo para eles”, conta Marcela, ex-coordenadora da Escola Municipal Samuel Galvão.  

“No início do projeto, a gente perguntava para as turmas quem gostava de ler, se liam em casa e se a família contava histórias. A maioria dizia que não gostava de ler, que não tinha contato com os livros e que preferiam histórias orais”, relembra Amanda. “No final, ficou evidente o gosto pela leitura. Entre os alunos com TEA, também percebemos um grande avanço na escrita, na comunicação, na memória e na compreensão de ideias abstratas”, completa. “Em outro caso, tivemos uma aluna com deficiência que não sabe ler, mas as imagens dos livros chamaram tanto a sua atenção, que ela conseguiu narrar toda a história sem saber uma palavra do que estava escrito nas páginas, só fazendo a leitura das imagens.”  

Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade   

O projeto “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade” é uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Movimento Bem Maior, o Instituto Ambikira e o Instituto Machado Meyer, e visa a formação de educadores, gestores escolares e técnicos de secretarias municipais de Educação de todo o país. O objetivo é potencializar práticas e políticas públicas locais que proporcionem uma educação de qualidade para todas e todos.   

Dividido em diferentes etapas, que vão de 2023 a 2025, o programa é realizado em parceria com dez secretarias municipais de Educação, contemplando todas as macrorregiões do Brasil: Maués (AM), Óbidos (PA), Campo Formoso (BA), Gado Bravo (PB), Irauçuba (CE), Lucas do Rio Verde (MT), Cajati (SP), Patos de Minas (SP), Alvorada (RS) e Canguçu (RS).     

No ano passado, a equipe do IRM conduziu uma formação semipresencial com cerca de 400 educadores desses municípios, que incluiu orientações e apoio para a elaboração e o desenvolvimento de cem projetos de práticas pedagógicas inclusivas, com foco na promoção do protagonismo e da autonomia de todos os estudantes.   

Neste ano, as ações formativas do projeto Alavancas terão como público-alvo técnicos e profissionais de órgãos ligados ao executivo, ao legislativo e ao judiciário dos municípios participantes. O objetivo é que, ao final do percurso, cada rede elabore uma política pública de educação especial na perspectiva inclusiva. Em 2025, está previsto o monitoramento das políticas elaboradas no ano anterior e uma pesquisa sobre os impactos gerados pelas formações, além de dois cursos autoinstrucionais que serão disponibilizados na plataforma de formação do IRM. 

 

Este conteúdo faz parte de uma série de reportagens sobre os projetos desenvolvidos no âmbito do “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade”, iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM). 

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