Projeto resgata memórias e valoriza filosofia africana em comunidade

Educadora inicia primeiro registro de memórias de Boninal (BA) em aulas de filosofia e incentiva estudantes a reconhecerem seus direitos.

A filosofia me encontrou já naquelas primeiras perguntas sem resposta, em meus encantamentos poéticos, crescendo numa comunidade rural e ouvindo as histórias de minha mãe e meus avós, querendo encontrar o fio do tempo de onde tudo começou.

Eu queria encontrar a linha que me ligava aos lugares de onde vieram meus ancestrais, nas paisagens de suas memórias. Imagens me saltam aos olhos ao avistar lá atrás e ver como tudo transcorreu, lançando-me ao campo do direito à memória, ao patrimônio, à paisagem repleta de símbolos e história. E tudo isso me importa, enquanto professora de filosofia para jovens estudantes do ensino médio.

Em 2019, ao voltar ao território para assumir a função no Colégio Estadual Rui Barbosa, em Boninal (BA), tinha em mente inúmeras ideias para conectar a filosofia ao contexto local, com esse olhar atento para as possibilidades de aprendizado dentro desse imaginário rural que me construiu.

O município de Boninal está localizado no Sertão da Bahia, mais precisamente no Polígono das Secas, e a sua população conta com pouco mais de 13 mil habitantes, sendo 66% dessa população concentrada na área rural. Assim, 80% dos nossos estudantes são das comunidades rurais e são afrodescendentes, sendo que algumas dessas comunidades são remanescentes de quilombos. As suas famílias, em sua maioria, são de baixa renda e atuam na agricultura familiar, com poucas perspectivas e oportunidades.

Durante as aulas, procurei desenvolver as habilidades filosóficas por meio da análise e comparação de diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, considerando esse nosso imaginário rural e seus diversos aspectos como o ponto de partida para o filosofar.

Encontramos na ética Ubuntu a expressão perfeita para a nossa busca, numa redescoberta de uma identidade feita no coletivo, percebendo que tudo o que somos envolve essa marca de todos os aspectos da comunidade: as pessoas, o espaço, a paisagem, a cultura, as condições de vida, a natureza, e envolve também a marca daqueles que vieram antes: a nossa ancestralidade. Assim, iniciamos o projeto “As filosofias de minha avó: poetizando memórias para afirmar direitos”.

Jovem e sua avó sentados lado a lado. O estudante lê algo de papel em sua mão. A idosa olha para a câmera. Fim da descrição.
Estudante Ricardo Nascimento entrevista sua avó, Fidelcina Maria de Jesus. (Foto: Maria Isabel dos Santos Gonçalves.)

Conheça outros projetos de descolonização do currículo:
+ Eu posso ser poeta: projeto valoriza identidade e cultura afro-brasileira
+ Mancala promove inclusão e descolonização do currículo na EJA
+ Como trabalhei preconceitos para empoderar turma da EJA

As filosofias de minha avó

A memória é a maior riqueza do interior das comunidades quilombolas, é a trilha que nos levará aos mistérios acerca de um passado perdido, do dia em que nossos ancestrais foram saqueados de sua dignidade, retirados dos seus, da própria identidade. Esse mistério está marcado em cada afrodescendente.

Tendo isso em mente, busquei trazer a idealização de um método de registro e preservação como uma forma de afirmar as memórias contadas como um ato político, inspirados em Hannah Arendt.

A ideia era propor atividades que priorizassem o envolvimento dos estudantes com os seus avós e outros membros mais velhos das comunidades, para depois expressarem em linguagem poética as memórias coletadas, os ensinamentos ouvidos. Os jovens encontraram nos relatos de seus avós o retrato da resistência de seus ancestrais.

Estudante abraçada com avó. Ambas sorriem para a foto. Ao fundo, parede verde claro e porta azul. Fim da descrição.
Estudante Raiane Biano e sua avó, Ana Maria Paixão Santos. (Foto: Maria Isabel dos Santos Gonçalves.)

A exemplo da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileiras dentro dos contextos educacionais, dediquei-me a seguir os passos daqueles que vêm propondo uma renovação epistemológica na filosofia, num viés não ocidentalista. E pelos fios das memórias familiares dos meus alunos, eu quis demonstrar para eles que a filosofia não se contenta com o que os europeus nos contaram e se abre também para trazer à tona esse olhar da periferia, em que as memórias são a expressão de um grito sufocado de toda uma vida de direitos negados.

Por meio da coleta de histórias dos avós, os estudantes fizeram uma conexão entre memória e as grandes questões da filosofia: a felicidade, o amor, o tempo, a sabedoria, o sentido da vida, e todos esses conceitos foram expressos no momento em que os avós contavam suas histórias, repleta de saudades e instantes marcantes. Em cada relato, foram infinitas as conexões feitas com diversos temas estudados.

Os relatos se revelaram como uma denúncia acerca dos direitos negados: o próprio direito à memória, preservação da cultura e comunidade, o direito à educação, acesso a saúde e as mínimas condições de sobrevivência.

Poetizando memórias para afirmar direitos

Após a coleta, os estudantes se dedicaram a escrever narrativas poéticas dos aprendizados de toda a experiência, apontando os aspectos filosóficos de cada relato. E os resultados foram poemas, narrativas, mini documentários, exposição de fotografias e até um musical.

Apesar dos poucos recursos que dispomos em equipamentos de imagem e fotografia, o projeto foi realizado com muito êxito pelos estudantes e foi recompensador em cada etapa.

Buscamos a eliminação de barreiras para que todos desenvolvessem o seu potencial. Por isso, realizamos revisões e discussões sobre algumas produções, fazendo levantamentos de melhoria para o desenvolvimento de cada aluno.

Saiba mais:
+ Como desenvolver estratégias pedagógicas inclusivas
+ Escola indígena resgata tradição em aulas inclusivas de geografia

Se os estudantes, anteriormente, não percebiam que a filosofia poderia se revelar nas diversas questões do cotidiano, com o projeto eles começaram a perceber na própria comunidade um arsenal de infinitas possibilidades para o filosofar.

Novos olhares se abriram para desvendar os porquês da realidade que os atinge, e os direitos que ainda não chegaram. Os alunos também passaram a acreditar no papel que eles têm para engajar toda uma comunidade nesse processo de resgate da memória e afirmação de uma identidade que é coletiva e precisa ser preservada.

A expressão da sabedoria

Muitos alunos foram auxiliados pelos pais na coleta de histórias e memórias dos avós ou bisavós. O projeto trouxe uma forte conexão entre os estudantes e suas famílias.

Idosa está sentada em cadeira na rua e posa para foto. Ao fundo, casa com pintura rosa e janela azul. Fim da descrição.
Dona Maria Caetana, da comunidade do Mulungu. / Foto: Fundação Victor Civita.

Ao ouvir os avós, eles passaram a reconhecer, nos relatos, a plena expressão da sabedoria, aquela que é experimentada na dificuldade e nas experiências vividas. Eles puderam testemunhar a filosofia viva feita em comunidade, o perpassar de um legado ancestral.

Esse projeto me fez acreditar que chegaremos àquela plena consciência inabalável da beleza de ser aquilo que se é, num crescente abandono das roupas que nos cobriram o colonizador, e da visão alheia que nos ditou qual seria a nossa identidade.

O simples movimento de levantar as vozes da memória vai inspirando outros a seguirem adiante. E é dentro dessas novas práticas decoloniais, que se abre a outras vozes, que eu e meus alunos deixamos nossa contribuição para a afirmação da memória afrodescendente.

Leia mais:
+ Finalistas de premiação se destacam com projetos inclusivos
+ Vencedores do Prêmio Educador Nota 10 valorizam equidade e inclusão


Maria Isabel dos Santos Gonçalves foi uma das 10 vencedoras do Prêmio Educador Nota 10 de 2020 com o projeto “As filosofias de minha avó: poetizando memórias para afirmar direitos”.

Deixe um comentário