Escola indígena valoriza cultura e território no MT

Primeira indígena formada doutora pela UNB, Eliane Boroponepa conta como sua gestão envolve família e comunidade em escola do povo Balatiponé-Umutina

Como educadora e gestora, atualmente na Escola Estadual Indígena Jula Paré, em Barra do Bugres (MT), o meu trabalho tem a perspectiva de valorização e ressignificação dos conhecimentos e saberes do povo Balatiponé-Umutina, dando ênfase e dialogando com os saberes dos não indígenas. 

Somos um povo que está em processo de ressignificação da nossa língua e revitalização da nossa cultura. Embora muitos na comunidade não sejam falantes da língua nativa, conseguimos tornar a língua materna obrigatória no currículo da escola. Com apoio dos anciãos que ainda estão vivos, ela está sendo repassada para as crianças e jovens, que já sabem algumas palavras e até mesmo músicas.

Montagem de duas fotos. À esquerda, estudantes indígenas participam de oficina de cerâmica, enquanto são observados por educadores. À direita, estudantes sentados em grupo participam de oficina de histórias. Fim da descrição.
Fotos: Eliane Boroponepa Monzilar. Fonte: arquivo pessoal.

Os professores indígenas também têm um papel fundamental, principalmente na área de linguagens, pois ensinam os alunos a produzir frases e textos na língua materna. Todos os professores da escola são indígenas e moradores da aldeia. E a maioria está se especializando no curso de mestrado da Faculdade Indígena Intercultural. 

Entre as atividades de inovação, que foram e são desenvolvidas em sala de aula durante a minha experiência como educadora, destaco as seguintes que me marcaram muito nesse processo de ensino-aprendizagem. 

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Conhecer o território

Em diálogo com os estudantes do ensino médio, percebi que não conheciam o seu próprio território e transitavam pouco pela história da demarcação da terra. Quando indagados sobre a história do território Balatiponé-Umutina, os estudantes não sabiam e viram a necessidade de conhecê-lo in loco, em uma atividade de elaboração de projeto denominada “Aula de Campo – Conhecer o Território Indígena Umutina”.  

Conhecemos o marco da divisa, os lugares sagrados, as aldeias antigas, bem como as aldeias que foram sendo construídas ao longo do tempo. Na ação, foi identificada a oportunidade de explorarmos as narrativas históricas dos anciões, a oralidade, a escrita sobre o marco histórico, a referência da divisão do território e, principalmente, estimular o sentimento de pertencimento e a reafirmação da identidade étnica e a valorização do espaço territorial.  

Tivemos três momentos nessa proposta. Primeiramente, o debate e a elaboração do projeto, cronograma, organização e articulação com professores, cacique, liderança e tratorista. O segundo foi a prática, ou seja, a ida para conhecer o marco, a divisa do território e a descida de barco pelo rio Bugres (Xopô, na língua Umutina), com registros por escrito e com máquina fotográfica. Cada estudante fez o relatório dessa atividade com a ajuda da narrativa dos anciões presentes. A atividade proporcionou a exploração do conceito de território, com as histórias contadas pelos anciãos, o processo da demarcação, hectares e os recursos naturais existentes dentro do território.

Montagem com duas fotos. Ambas mostram crianças indígenas praticando arco e flecha em espaço aberto. Fim da descrição.
Fotos: Eliane Boroponepa Monzilar. Fonte: arquivo pessoal.

No terceiro momento, realizamos a sistematização da aula de campo para a comunidade escolar por meio de seminários, cartazes, relatos das experiências e exposição de fotos da atividade. 

A atividade foi um sucesso. Todos conseguiram participar e fazer uma ótima apresentação, que também envolveu pais, anciões e gestão escolar. Desde então, a proposta passou a constar no nosso Projeto Político-Pedagógico, executada durante o ano letivo. 

Entendemos que essa atividade de campo contribuiu, ainda, para que as novas gerações, a comunidade e a escola tivessem acesso ao conhecimento, aos saberes, valorizando o processo histórico da demarcação pelas pessoas que o vivenciaram.  

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Projeto Boika y Ixó

Outra atividade considerada inovadora das práticas pedagógicas executadas na sala de aula com a turma dos estudantes do ensino fundamental foi o Projeto Boika y Ixó. O objetivo dessa ação é o fortalecimento e a valorização no manejo da confecção do arco e flecha e, consequentemente, incentivar o esporte tradicional.  

Para começar, a turma foi até as matas para pegar as matérias primas, que são: taquara, seriva e tucum (palmeira da qual é retirada a fibra para fazer o cordão do arco). Em seguida, aconteceram as oficinas com os anciãos, que detém o manejo da confecção dessas artes. Eles ensinaram a preparação e confecção do arco e da flecha e os estudantes ficaram empolgados e interessados. Para finalizar a atividade, realizamos uma competição do esporte tradicional denominado “Flechada”.  

Tais ações visam a promoção e fortalecimento dessas práticas do saber do povo Balatiponé-Umutina, que, por alguns anos, ficaram fragilizadas. A atividade permitiu a conscientização de sua importância. Para a Escola Jula Paré, trata-se de um momento muito importante e histórico, um trabalho construído e elaborado em conjunto com a equipe escolar: gestão, coordenadores, familiares, anciãos, professores e estudantes. 

Semana cultural

É importante destacar o Projeto da Semana Cultural, desenvolvido pelos professores indígenas Balatiponé-Umutina. São atividades que têm fortalecido as práticas culturais da comunidade, como a festa tradicional, realizada no mês de abril. 

São realizados os preparativos da dança tradicional, a preparação da tinta para a pintura corporal, ensaios dos cantos, preparação das comidas típicas: beiju, a xixa, peixe assado e a caça, confecção de trançados de diferentes formas. No final, no dia da grande festa houve a apresentação das danças: Mixinose, Loruno, Yuri, Katama, Andorinha, Boika, entre outras. A juventude e as crianças já se pintam cotidianamente, cantam na língua materna, e os adultos estão envolvidos ativamente, valorizando a cultura. 

Muitos conhecimentos e saberes tradicionais puderam ser construídos e reconstruídos por meio dessas atividades, em diálogo com os conhecimentos dos componentes curriculares da base do ensino não indígena. São oportunidades para conhecer mais sobre a realidade do nosso povo Balatiponé-Umutina.

A minha motivação para desenvolver essas iniciativas está no intuito de emergir, fortalecer, valorizar as práticas dos conhecimentos socioculturais e, principalmente, o protagonismo dos estudantes enquanto indígenas dentro do âmbito escolar interno e externo à aldeia.  

Essas ações inovadoras estão centradas dentro da filosofia da escola e da educação escolar indígena do povo Balatiponé-Umutina.


O relato “Com apoio de anciãos, escola indígena valoriza cultura e território no MT” foi publicado originalmente no Porvir, em 03 de agosto de 2022.

Eliane Boroponepa Monzilar é indígena, pertence ao povo Balatiponé-Umutina. Mora na aldeia Boropo, no Território Indígena Umutina, no Mato Grosso. Licenciada em ciências sociais, tem especialização em educação escolar indígena. É mestre em desenvolvimento sustentável e doutora em antropologia social. 

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