Aprendizagem das crianças: o brincar como experiência educativa

A partir de reflexão sobre o processo de aprendizado de estudantes da educação infantil, educadora elabora proposta para desenvolver protagonismo estudantil

Como as crianças aprendem? Como fazer um planejamento que tenha como centro o interesse das crianças? Mesmo tão pequenas, elas podem ser protagonistas do processo ensino-aprendizagem?

Foram essas indagações que me fizeram repensar a minha prática docente na Creche Municipal João Eugênio, localizada no município de Recife, capital de Pernambuco. A creche atende cerca de 110 crianças da educação infantil em sete turmas, separadas em dois prédios (sede e anexo), e um corpo docente de oito educadoras. A nossa experiência aconteceu na sede.

Repensando a prática pedagógica

Sou professora há mais de 30 anos e, por opção, dedico pelo menos um turno do meu dia à educação infantil. Após observar atentamente as crianças, comecei a ficar incomodada ao perceber que as atividades propostas não contemplavam o interesse delas e não as deixavam felizes.

Os educadores precisavam falar mais alto na tentativa de chamar a atenção ou, então, um auxiliar tinha que ficar sentado ao lado da criança que não estava demonstrando interesse, para que ela não levantasse e fosse fazer outra coisa.

Nessas observações, percebi que muitas vezes toda a atenção da turma se voltava para algo totalmente diferente do que havia sido planejado. Uma caixa de massa de modelar jogada no lixo era mais atraente do que a própria massa. Então comecei a questionar minha prática pedagógica.

Dessa forma, iniciei uma pesquisa nos documentos oficiais e nas redes sociais e intensifiquei o olhar para as crianças, respeitando seus desejos e potencialidades. O levantamento e as observações apontaram um caminho de aprendizagens com significados e alegria. Nascia o projeto “Aprendizagens das crianças: maravilhamento e experiências”.

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Aprendizagens das crianças: maravilhamento e experiências

Meu objetivo em conjunto com os demais educadores da sala, auxiliares de desenvolvimento infantil (ADI), era possibilitar que as crianças fossem protagonistas das suas aprendizagens, por meio de interações com objetos e brincadeiras livres. Dessa forma, elas iriam construir e apropriar-se de conhecimentos a partir de suas ações com seus pares e com os adultos.

Para isso, nossas ações incentivaram a exploração pela ação e observação, experimentando e fazendo descobertas do espaço escolar e de uso de objetos.

Assim, organizamos espaços para que aprendizagens acontecessem pautadas nos campos de experiências, com o cuidado para que essas vivências fossem um convite para observações, pesquisas e diversão.

Enquanto as crianças brincavam, nós ficávamos atentos às aprendizagens que ali aconteciam e fazíamos as intervenções necessárias. Nessa exploração natural, muitas possibilidades de aprendizado e desenvolvimento se abriam.

Papéis higiênicos pendurados em cordão

Organizamos as experiências durante o ano letivo com quatro grupos de materiais que foram entrando no processo gradualmente. A cada dois ou três meses, aproximadamente, novos materiais iam se somando às nossas experiências de acordo com o interesse das crianças.

Inicialmente, percebemos que elas gostavam muito de brincar com papéis e com caixas. E esses foram os materiais da nossa primeira sequência de experiências.

Preparamos a sala com papéis higiênicos pendurados com cordão no teto. As crianças, quando adentraram o espaço, admiravam a montagem com olhares de felicidade e curiosidade. Uma delas começou a puxar um dos rolos e então a brincadeira começou.

Em sala de aula, cinco crianças uniformizadas, com camisas brancas e shorts azuis, olham admiradas para rolos de papel higiênico suspensos e presos a cordas horizontalizadas. Fim da descrição
Crianças brincam com rolos de papel higiênico suspensos. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Em sala de aula, rolos de papel higiênico estão suspensos em cordas dispostas horizontalmente. Fim da descrição.
Rolos de papel higiênico suspensos por cordas em sala de aula. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Perceberam qual era a força necessária para puxar o papel sem rasgar. Quando o a folha do material estava a uma grande altura do chão, tinham que pular ou pedir ajuda aos colegas mais altos (para alcançar a ponta). Depois, começaram outra brincadeira com os papéis no chão: se enrolavam, jogavam pra cima, pulavam.

Algumas crianças se transformaram em esculturas vivas de papel, enquanto outras estavam concentradas em olhar através do rolo de papelão vazio. Havia também aquelas que passaram um tempo amassando, sentido as texturas e os cheiros.

Caixas de papelão e fitas

A partir desta, planejamos outras experiências. Elas aconteciam uma vez por semana. Durante três meses, usamos nas experiências caixas de papelão, tiras de papel crepom e bolas grandes de papel que formaram mandalas e caixas de ovos.

Com as caixas, pudemos perceber que o corpo foi usado como unidade de medida: ”Será que vou caber ali?”. Muitas vezes, víamos elas se encolherem dentro da caixa para que outra criança entrasse.

Durante o ano, essas caixas se transformaram em muitos outros brinquedos: carrinho, bicicleta, patinete, castelos, casinha, tambor, cama, entre outros. Tivemos uma diversidade de experiências regada a muita criatividade.

Em sala de aula, três crianças uniformizadas brincam com fitas de papel colorido. Duas deles estão com as fitas em suas cabeças, enquanto outra joga o objeto para cima. Fim da descrição
Crianças brincam com tiras de papel. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Em pátio escolar, fitas de papel branco estão depositadas ao redor de bolinhas de papel coloridas. Fim da descrição.
Materiais com fitas de papel crepom organizados para atividade. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Panelas no parquinho

Nossa segunda sequência foi com panelas, copos, colheres de pau e bule. Quando esses materiais eram expostos na sala, sempre surgia batucada. As crianças descobriam o som que saía do bule quando era soprado e notaram que o instrumento produzia um barulho diferente para cada criança que o soprava.

Perceberam que, batendo uma panela na outra, o efeito era a produção de um determinado som; batendo no chão, era outro. Já a colher de pau virou microfone. Quando os mesmos materiais eram expostos no parque, colocavam areia nas panelas e se divertiam ao ver a poeira levantar.

Apertavam com força as panelas e tampas no chão para observar os desenhos formados. Alguns também transformaram as panelas em banco. E tivemos festas com bolos de areia.

Percebemos que o brincar livre é o segredo. É por meio das interações e da brincadeira que a criança atribui sentido ao seu mundo e se apropria de conhecimentos que a ajudarão a agir sobre o universo em que ela vive.

Panelas de alumínio espalhadas Em chão de areia. Fim da descrição.
Panelas espalhas em chão de areia para atividade com alunos. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Em chão de areia. nove crianças brincam com panelas e caixas de papelão. Fim da descrição.
Crianças brincam com panelas em chão de areia. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

A experiência com as flores do jambeiro

Nossa terceira sequência foi com flores e frutas. Na frente da creche tem um jambeiro, cujas flores cor de rosa na época da florada enchem o chão de beleza. O jambeiro foi o pontapé inicial para uma sequência de experiências com flores, frutas e sementes.

As crianças se sentiram atraídas e começaram a pegar flores e me mostrar. Coloquei as primeiras duas flores alinhadas no chão. Outras foram chegando e, juntos, fomos colocando lado a lado cada flor trazida. Formamos uma linha do tempo da flor ao fruto e apreciamos a árvore. Lindo de ver os olhinhos dessas crianças brilhando ao descobrirem (como eles diziam) que “a flor vira fruto”.

Em parquinho de escola, dois escorredores infantis contrastam com chão forrado de flores rosas do jambeiro. Fim da descrição.
Parquinho da escola com o chão forrado de flores do jambeiro. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Em parquinho de escola, três crianças uniformizadas brincam depositando flores rosas do jambeiro em panelas. Fim da descrição.
Crianças em atividade com flores do jambeiro. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Deste dia em diante, nossas experiências passaram a ser degustar, pegar e cheirar outros frutos e frutas. Neste período, todas as turmas da creche estavam trabalhando alimentação saudável.

Com a laranja-cravo, cheiraram, descascaram e apertaram o gomo pra ver o caldo escorrer pelas suas mãos. Também começaram a experenciar apertar o gomo para ver as sementes pularem alto. Outras crianças ficaram minutos mastigando o gomo, colocando-o nas mãos e observando as mudanças ocorridas no gomo quando mastigavam.

Também tiveram experiências com goiaba, abacaxi etc. Plantamos sementes de tomates na horta da escola, com a ajuda de uma mãe de outra turma, e acompanhamos o desenvolvimento da planta.

Em jardim de escola, três crianças uniformizadas e em fileira olham para folhas de planta acompanhados por educadora. Fim da descrição.
Crianças realizam atividade de observação de sementes e plantas. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Criança segurando pratinho e colher pega melancia de prato depositado sobre mesa de refeição. Fim da descrição.
Crianças experimentam frutas durante atividade. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Lençóis, bacias e água

Nossa quarta e última sequência contou com lençóis pendurados na sala. As crianças brincaram de se esconder no meio dos materiais. Eram muitas risadas: se perdiam e se achavam no labirinto de panos. Puxaram lençóis pendurados e viraram fantasmas. Também tivemos nessa sequência experiências com bacias, pregadores de roupas e água.

Em sala de aula, oito crianças brincam com bacias e lençóis brancos. Fim da descrição.
Crianças brincam com bacias e lençóis. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Em sala de aula, crianças observam lençóis brancos suspensos em cordas de varal. Fim da descrição.
Lençóis foram pendurados em sala de aula para promover brincadeiras entre as crianças. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Além disso, tivemos uma vivência com “sacos de Dudu” (sacolés) com água pendurados. Essa experiência foi intitulada “Lágrimas de saudades que se transformam em memórias”. A partir dela, redigi um texto resgatando toda a nossa vivência e entreguei às famílias na última reunião do ano e combinamos que ele seria guardado como um tesouro e entregue a essas crianças quando forem adolescentes.

Em sala de aula, criança sorri para câmera, enquanto três crianças ao fundo brincam com bacia de água. Fim da descrição.
Alunos brincam com bacias de água. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Em sala de aula, duas crianças molhadas brincam com saquinhos com água suspensos no teto. Fim da descrição.
Brincadeira com “sacolés” de água. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Segue um trecho do texto “Lágrimas de saudades que se transformam em memórias”:

Assim como a água que transborda, nossa curiosidade transbordou e as paredes fechadas de uma sala já não nos cabiam. Descobrimos então outros espaços, outros materiais… E então, a água doce do rio se misturou com a água salgada do mar e percebemos que juntos podemos ser lago, cachoeira, mangue… e que assim a aprendizagem acontece de fato.

Participação das famílias no processo

As famílias participaram do projeto desde o início. Diariamente, quando chegavam para deixar seus filhos, encontravam o espaço da sala sempre organizado para recebê-las. Ali, além de outras coisas, íamos criando laços, vínculos de confiança e nos conhecendo.

Também tínhamos um grupo de WhatsApp da turma e o utilizávamos para enviar uma curadoria de fotos e vídeos das nossas experiências para as famílias. Queríamos que elas pudessem acompanhar e interagir com seu filho dentro de um contexto.

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As famílias também se envolveram ativamente na seleção dos objetos. A maioria dos materiais não estruturados para as experiências foi trazida por elas, que aos poucos foram se envolvendo com o processo. Após a experiência com as flores do jambeiro, uma das mães chegou mais cedo e pegou jambos para a filha experimentar.

Em pátio escolar, mães de alunos estão sentadas em cadeira e batem palmas. Fim da descrição.
Em pátio escolar, mães posam para foto sentadas no chão. Fim da descrição.
Em pátio escolar, coordenadora Mirtes, em pé, fala com familiares de alunos sentadas em cadeiras. Fim da descrição.
Familiares participam de atividades durante reunião. (Foto: Mirtes Ramos Melo.)

Do mesmo modo, quando tivemos degustação de goiaba, nenhuma criança sabia o nome da fruta. E uma das mães percebeu que, embora tivesse uma goiabeira em casa, nunca tinha dito o nome da fruta ao filho. Outra mãe fez uma pesquisa sobre o brincar heurístico e compartilhou no grupo.

As famílias eram sempre instigadas a brincar com seus filhos. Durante todo o processo, tivemos pais e mães presentes, e o olhar das famílias para as brincadeiras mudou. Percebemos que muitas dessas experiências foram vivenciadas também em casa, estreitando ainda mais os laços familiares.

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Articulação com o currículo

Procuramos alinhar todo o projeto com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), respeitando os direitos de aprendizagens e desenvolvimento na educação infantil: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se.

Observamos crianças construindo sua autonomia, convivendo e brincando entre pares, com objetos e experenciando a natureza, expressando-se por meio de diferentes linguagens, reconhecendo sua identidade, valorizando as diferenças e a importância da cooperação, e se relacionando com o ambiente social.

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Também estudei muito sobre abordagem pedagógica de Reggio Emília, que, entre outras coisas, reposiciona o lugar do professor, enfatiza a importância da participação das famílias no processo e percebe as crianças como pesquisadoras, protagonistas do processo ensino aprendizagem.

O projeto dialoga também com a Política de Ensino da Rede Municipal do Recife, que estimula a promoção de experiências que incentivem a curiosidade e a autonomia em situações desafiadoras do cotidiano de forma significativa e contextualizada. Isso para favorecer a compreensão e a interação com o meio e com o seu semelhante.

O brincar como ponto de partida para a aprendizagem

As crianças foram protagonistas de um processo formativo onde todo o contexto educativo aconteceu pelas suas experiências. No nosso projeto, a interação, a parceria das crianças e a organização para resolver as questões que apareciam (ou para compartilhar as descobertas) foram percebidas durante todo o processo.

A ampliação do vocabulário também foi evidente. Todo esse desenvolvimento nos deu a certeza de que movimento também é pensamento, é aprendizagem. Percebemos que terminamos o ano com crianças mais curiosas, parceiras, solidárias, respeitosas, amorosas, justas e felizes.

Arquivei minha aposentadoria: tenho muito a aprender

Intensificamos nossos estudos e observações sobre o brincar e sobre as infâncias. Essas pesquisas mudaram o nosso olhar sobre o potencial das crianças e começamos a percebê-las como pesquisadoras. Arquivei minha aposentadoria, pois percebi que tenho muito a aprender

Esse projeto nos mostrou que as relações são importantes. O professor precisa sentir as essências das infâncias ali apresentadas, conhecer bem seu grupo. Só então ele poderá planejar tendo como foco o interesse e felicidade das crianças.

É preciso ter os ouvidos e olhos bem atentos. É preciso estudar sempre e estar ao lado dessas crianças dando-lhes segurança, organizando os ambientes para que elas vivam suas experiências, sejam respeitadas e possam viver plenamente suas infâncias.


Mirtes Ramos Melo foi uma das 10 vencedoras do Prêmio Educador Nota 10 Site externo de 2020 com o projeto “Aprendizagens das crianças: maravilhamento e experiências”.

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