Com intuito de inovar no atual sistema de ensino médio, educador propõe atividades de física que valorizam descoberta científica
Muitos são os desafios que um professor brasileiro enfrenta em sua prática laboral cotidiana. Especialmente no ensino médio, que, construído sob a herança de um segmento elitista, foi estruturado para cumprir o papel de mera transição para o nível superior.
No contexto de flagrante urgência de mudança de foco formativo da escola brasileira, surge o projeto “Óptica com ciência”, idealizado para estudantes do 3º ano do ensino médio da escola SEB Dínatos, em Brasília (DF).
O projeto parte de certas concepções de base. Entre elas, a de que uma educação científica deve ser capaz de produzir cidadãos conscientes do papel da ciência na sociedade. E, por conseguinte, cidadãos capazes de atuar, opinar e contribuir em temas científicos de relevância social.
Não foi foco do projeto articular essa premissa nas aulas práticas, mas essa foi uma temática muito recorrente nos debates que surgiram. A ênfase sobre o papel importante da ciência na tomada de decisões políticas, por exemplo, esteve presente no repertório dos estudantes nessas ocasiões.
Investigação
Para apoiar minha prática pedagógica, busquei formações continuadas que fossem capazes de instrumentalizar-me. E, de fato, minhas formações internacionais recentes foram, sob vários aspectos, reveladoras. Mostraram-me intensamente o que é ciência e como se faz ciência. Além disso, muniram-me de ferramentas didáticas e metodológicas capazes de conduzir um ensino de ciências nesses moldes na escola básica.
O primeiro, e mais importante, elemento dessa nova concepção sobre o ensino de ciências é a importância da investigação. A obtenção de dados, segundo uma metodologia criteriosa, é passo fundamental para a descoberta científica.
Consciente da ausência de investigações dessa natureza na escola básica brasileira, o principal objetivo do projeto foi produzir literacia científica competente na escola básica.
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Metodologia
O projeto “Óptica com ciência” foi desenhado para ser implementado em 16 encontros. Esses encontros se organizaram a partir de uma lógica inspirada no próprio empreendimento científico. Logo de partida, estabelecemos um método de investigação em três etapas.
Na primeira, prospectamos dados (quantitativos e qualitativos) a partir de experiências e objetos reais. Em seguida, analisamos os dados coletados: estatisticamente, para as medidas realizadas na etapa anterior; e, em formato de debates, para as observações e inferências produzidas. Por fim, sistematizamos o conhecimento gerado. Estas etapas foram repetidas a fim de cobrir os 16 encontros, constituindo assim o eixo lógico do projeto.
Para apoiar as atividades práticas, foi desenvolvida uma plataforma para utilização da técnica didática “aula invertida”. Desenvolvemos atividades “mão na massa”, nas quais os estudantes foram levados a produzir conhecimento em um ambiente propício e profícuo para tanto. A exposição direta do professor foi reduzida ao mínimo. Sempre quando necessário, os conceitos físicos emergiram naturalmente da experiência.
Em momento posterior, baseado nos dados obtidos, busquei responder aos questionamentos sugeridos, esperando que surgissem os conceitos físicos subjacentes. A construção dos conceitos físicos, em primeiro momento, não foi o principal objetivo. Inicialmente, propus que o objetivo fosse formar investigadores ou, pelo menos, atores conscientes da produção de conhecimento científico.
Conteúdos curriculares
As atividades pedagógicas foram desenvolvidas com o objetivo de propiciar um ambiente profícuo para a construção de habilidades e conhecimentos relacionados aos processos da ciência: desde como ela é produzida ao longo da história (em uma perspectiva diacrônica) até quais são as práticas mais consolidadas atualmente para a investigação científica.
Apesar de não ter sido projetado com este fim, o desenvolvimento das competências e habilidades previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é uma das principais potencialidades do projeto.
Entre os objetivos de conhecimento desenvolvidos, estão em destaque:
- Recorrer a elementos de conhecimento procedimental e epistemológico para realizar um experimento simples em contexto restrito;
- Conduzir experimentos que envolvam duas ou mais variáveis independentes em contextos restritos;
- Interpretar dados provenientes de um conjunto moderadamente complexo ou de contexto pouco conhecido.
Os conteúdos curriculares utilizados nesse projeto eram meios pelos quais os objetivos de conhecimento foram alcançados. Nessa perspectiva, os conteúdos são subjacentes às atividades desenvolvidas e não o foco delas.
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Cronograma
Em destaque nas aulas práticas, estão as estações rotativas que possibilitam uma série de reflexões interessantes sobre como e por quais processos as ciências naturais são desenvolvidas.
As avaliações formais foram feitas, por cultura da escola, no contraturno. Por isso, não houve aulas dedicadas exclusivamente a avaliações. Entretanto, dedicamos dois encontros para reflexões, conversas e pesquisa sobre a percepção estudantil do projeto.
A seguir o cronograma detalhado, aula a aula, do projeto “Óptica com ciência”:
- “Por que estudar ciências?”: introdução.
- “Vamos observar a luz!”: estações rotativas com diversas experiências didáticas demonstrando REFRAÇÃO, REFLEXÃO e ABSORÇÃO. O objetivo foi realizar uma visão panorâmica em relação ao que iríamos estudar no semestre.
- “Como a luz se comporta?”: debate sobre os resultados da aula anterior. Definições sobre os conteúdos relatados.
- “Vamos medir a luz nos espelhos planos!”: investigação sobre equidistância da imagem-objeto e medida de ângulos de reflexão. Essa foi a atividade mais interessante e com maior repercussão do projeto. Nesta aula, realizamos as medidas utilizando materiais de baixo custo e, na aula seguinte, análises estatísticas das quase 400 medidas realizadas. Foi possível demonstrar os principais métodos científicos para a investigação natural utilizada atualmente.
- “Como a luz se comporta nos espelhos planos?”: análise sobre os resultados da aula anterior. Definições sobre conteúdos correlatos aos espelhos planos.
- “Reflexões sobre nosso trabalho”: entrega de provas e discussão de resultados. Importante momento de reflexão e conversa no qual foi recolhido a opinião dos estudantes por meio de questionários on-line e escuta sensível em sala de aula.
- “Vamos observar espelhos curvos!”: investigação sobre comportamento de espelhos esféricos.
- “Sistematização: como a luz se comporta nos espelhos curvos?”: aula expositiva sobre os resultados da aula anterior. Definições sobre os conteúdos relatados.
- “Espelhos esféricos”: análise qualitativa e quantitativa.
- “Vamos observar a refração!”: experimentação sobre refração.
- “Sistematização: como se comporta a luz ao refratar?”: exposição.
- “Definições matemáticas de refração”: aula teórica.
- “Vamos observar as lentes!”: experimentação sobre comportamento óptico das lentes.
- “Definições matemáticas de lentes”: aula teórica.
- “Reflexões sobre nosso trabalho”: importante momento de reflexão e conversa, no qual foi recolhida a opinião dos estudantes por meio de questionários on-line e escuta sensível em sala de aula.
Ciência para todas e todos
Alguns estudantes participantes do projeto “Óptica com Ciência” possuíam alguma deficiência e foram levados em conta no planejamento das atividades. A estratégia foi bem simples: oportunizar a eles, assim como para os demais estudantes, uma vivência com objetos reais e, partindo das observações realizadas pelos próprios estudantes, CONSTRUIR o conhecimento científico correlato à óptica geométrica.
O elemento mais importante nessa estratégia foi valorizar as observações simples e, partindo delas, construir um conhecimento científico completo e profundo. A cada etapa, os estudantes foram convidados a socializarem suas observações e não houve nenhuma aula expositiva na qual o objeto de estudo direto não estivesse presente.
Este é o pressuposto do projeto: não é possível estudar a natureza na escola básica de maneira satisfatória e não propedêutica sem a presença do ente natural estudado (ainda que indiretamente). Além das ações em sala de aula, em plataforma construída para aplicar a técnica “aula invertida”, havia uma aba para contato, na qual qualquer estudante poderia escrever dúvidas diretamente para mim, além de sugestões e críticas.
A ferramenta foi amplamente utilizada por muitos estudantes e os resultados obtidos por eles nas avaliações formais, apesar de não ser o foco do projeto, foi muito além do satisfatório. Essa experiência constituiu algo inédito na escola.
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Protagonistas do conhecimento
Em dois momentos presenciais e continuamente on-line, foram recolhidas várias evidências e indícios do sucesso do projeto. Obtive diversos relatos emocionantes de muitos estudantes que não apenas se engajaram com o projeto, mas se encantaram com a possibilidade de (em muitos casos) pela primeira vez na sua carreira acadêmica serem protagonistas do conhecimento construído sobre a natureza.
A direção e a coordenação apoiaram muito o projeto e, sem elas, o sucesso não seria o mesmo. O reconhecimento do bom trabalho por profissionais de larga experiência em múltiplos contextos educacionais é uma forte evidência de tal conquista.
A percepção estudantil, registrada em formulários de pesquisa on-line produzidos por mim, também indicaram uma excelente aceitação. O reconhecimento tão vigoroso do projeto “Óptica com ciência” por parte dos estudantes é, para mim, um forte indício do sucesso do projeto e do potencial que ele tem para posteriores desdobramentos.
Em avaliações informais procedidas em momentos presenciais, os estudantes puderam fazer uma autoanálise. Os discursos e argumentos utilizados surpreenderam pela utilização inédita de termos e compreensões próprias do processo científico.
André Luís Miranda de Barcellos Coelho foi um dos 10 vencedores do Prêmio Educador Nota 10 de 2020 com o projeto “Óptica com ciência”.