Como articular o AEE na Educação Integral em Tempo Integral?

Em entrevista, Liliane Garcez explica principais pontos do ofício do MEC, que busca sanar dúvidas das redes de ensino sobre o tema

Foto de Liliane Garcez, uma mulher branca, com cabelo curto e grisalho, que usa óculos. Ela segura um microfone com uma mão e gesticula com a outra. Ela veste uma blusa preta com estampas floridas. Fim da descrição.
“Se a Educação Integral é um direito, ela é um direito para todos os estudantes”, diz Liliane Garcez, da Diretoria de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (Dipepi). Crédito: Acervo/IRM

Um estudante com deficiência, que frequenta o atendimento educacional especializado (AEE), pode ser matriculado em uma escola de tempo integral? Como fazer esse registro no Censo Escolar? Como o AEE deve ser oferecido nessa modalidade? E aqueles que precisam se ausentar por conta de consultas médicas ou terapias? Essas são algumas das dúvidas que o Ministério da Educação (MEC) recebeu nos últimos anos e que motivou o órgão a publicar, no final de 2024, o Ofício nº 1379/2024/DPDI/Seb/Seb-MEC, que apresenta orientações sobre como deve ocorrer o AEE no Programa Escola em Tempo Integral (Peti). 

Para responder a essas e outras perguntas, a equipe do DIVERSA entrevistou Liliane Garcez, uma das autoras do ofício. Desde 2024, ela está à frente da Coordenação-Geral de Estruturação do Sistema Educacional Inclusivo da Diretoria de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (Dipepi), vinculada à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC.  

Na avaliação de Liliane, uma das principais mensagens do ofício é a de que “se a Educação Integral é um direito, ela é um direito para todos os estudantes”. Experiente em formulação e implementação de políticas públicas de Educação Especial, ela é formada em Administração Pública e Psicologia e mestre em Educação.  

A seguir, a especialista responde às perguntas que abrem esse texto e aborda outros temas, como a ampliação do número de estudantes com deficiência matriculados em escolas de tempo integral (com jornada de no mínimo sete horas), a importância de considerar as especificidades do AEE em cada etapa e modalidade de ensino e a sua necessária articulação com o currículo. Confira! 

O Censo Escolar de 2024 apontou que 22,9% das matrículas da Educação Básica eram em tempo integral. Entre os estudantes público-alvo da Educação Especial, esse percentual foi de 36,2%. Nos últimos anos, vemos uma tendência de crescimento nesses números. Como você avalia esse cenário?  

As famílias compreenderam que todas as crianças têm direito à educação, sejam elas público da Educação Especial [pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e com altas habilidades ou superdotação] ou não. Há uma mudança na compreensão da sociedade de que esse direito tem de ser pleno. Isso, a meu ver, fortalece o crescimento das matrículas em escolas regulares, no AEE e, obviamente, nas escolas de tempo integral. 

Quando as famílias optam por uma escola que se propõe a trabalhar em seu currículo dimensões que vão além do cognitivo, significa que essa proposição é vista de forma positiva. 

A Educação Integral em Tempo Integral não é só um alargamento da jornada. É uma perspectiva educacional que diz respeito ao desenvolvimento multidimensional da criança, do adolescente e do jovem. Ou seja, apostando em todas as dimensões do desenvolvimento humano [intelectual, físico, emocional, social e cultural].  

Nesse caminho, entendemos que o direito de aprender e de se desenvolver, com o devido suporte à participação plena quando requerido, deve ser garantido em todas as atividades oferecidas na e pela escola. Não podemos esquecer que, há bem pouco tempo, crianças com deficiência não participavam, por exemplo, das aulas de educação física, porque acreditava-se que aquele não era um ambiente propício para elas. 

O ofício afirma que “não existe impedimento para que os estudantes matriculados no AEE estejam matriculados no tempo integral”. Essa é a principal mensagem do documento? 

Se a Educação Integral é um direito, ela é um direito para todos os estudantes. Esse é um dos principais recados do texto, mas não o único. Outra mensagem do ofício é o necessário diálogo entre a Educação Básica, em todas as suas etapas e modalidades de ensino, e a Educação Especial. Isso é imprescindível para que a gente tenha uma educação de qualidade para todo mundo, sem exceção. 

É importante lembrar que o MEC tem papel de realizar apoio técnico e financeiro às redes de ensino. Entre 2023 e 2024, foram aportados R$ 439 milhões para a aquisição de materiais, equipamentos e tecnologias assistivas para a realização do AEE direcionados a mais de 21 mil escolas, por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola – Sala de Recursos Multifuncionais (PDDE-SRM). 

Já no âmbito do Programa Escola em Tempo Integral, foram transferidos mais de R$ 4 bilhões para a criação das matrículas, sendo sua utilização orientada pelo artigo 70 da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação] e explicitada no Manual de Execução Financeira, elaborado pela Seb [Secretaria de Educação Básica] e pelo FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação] em articulação com a Secadi.  

Em todos esses programas, é possível verificar o esforço do governo federal para que os recursos públicos cheguem de fato às unidades escolares para assegurar acessibilidade e inclusão para todas e todos os estudantes. 

Mas não basta o aporte financeiro. Para que a educação inclusiva e integral aconteça, os recursos têm de ser acompanhados por uma sustentação técnica, por uma intencionalidade referendada em princípios e diretrizes nacionais. Por isso, resolvemos escrever esse ofício entre Secadi e Seb, a partir das inúmeras dúvidas que recebemos. As respostas elaboradas buscam contribuir para que essas duas políticas caminhem juntas de forma exitosa e tenham como pressuposto o direito à educação. 

Por fim, mas não menos importante, sabemos que profissionais responsáveis pelos programas nas redes estaduais e municipais de ensino precisam dialogar sobre como o AEE deve ser configurado em cada uma das etapas, níveis e modalidades de ensino, como parte do regime de colaboração entre os entes federados. Então, buscamos dar exemplo sobre a necessidade dessa articulação: o ofício não poderia ser redigido somente pelas mãos da Coordenação-Geral de Educação Integral em Tempo Integral ou pela Coordenação-Geral de Estruturação do Sistema Educacional Inclusivo. Precisava envolver ambas as diretorias, bem como as duas pastas – Seb e Secadi –, e considerar as Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica e as Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva. E assim foi feito.  

As redes precisam planejar a oferta do AEE na Educação Integral reconhecendo as especificidades dessa perspectiva, assim como as de cada etapa de ensino? 

Vejamos, o AEE é um componente do direito à educação dos estudantes público da Educação Especial. Se pensarmos na cronologia do desenvolvimento humano, o AEE para bebês é necessariamente diferente daquele realizado com crianças, adolescentes e jovens. Portanto, temos de considerar essas diferenças também nas etapas de ensino e no currículo de cada uma delas. O AEE na Pré-Escola tem objetivos distintos daquele nos anos iniciais do Ensino Fundamental, bem como nos anos finais ou no Ensino Médio, dado que o objetivo central é a quebra de barreiras. 

O ofício está endereçado às dúvidas sobre o AEE na Educação Integral de Tempo Integral que podem ou não aparecer nas etapas ou modalidades. Entretanto, é bom ressaltar que muito do que reiteramos no documento é válido para a educação como um todo. 

Como articular o AEE na Educação Integral em Tempo Integral? 

A Educação Integral é direito, e o AEE também é direito. Por isso, assegurar o diálogo faz com que os dois programas ganhem musculatura e promovam essa articulação. Sem ela, continuaremos a questionar como ficará a Educação Inclusiva e como ficará a Educação Integral. Como par dialógico, uma completa a outra, e ambas não podem ser entendidas de forma separada. A resposta deve ser elaborada de maneira articulada. 

Como é que a gente organiza os tempos e espaços escolares? Bem, tudo que é novo nos convoca a pensar em diferentes propostas de organização. Mais uma vez, estamos falando de mudança de cultura e também de compreensão do que é o currículo. Partimos do pressuposto de que a Educação Integral não é uma modalidade de ensino; é uma estratégia de ensino que considera a integralidade dos estudantes, um princípio-ação tal qual a inclusão. E, dessa forma, o AEE deve estar integrado às atividades disponibilizadas para as turmas no âmbito da Educação Integral. 

De acordo com o documento, uma dúvida recorrente é sobre como oferecer o AEE se não há contraturno na Educação Integral em Tempo Integral. 

Sim, não há contraturno na concepção da Educação Integral. Para responder a essa questão, temos de voltar a 2008, quando foi lançada a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva [PNEEPEI]. Historicamente faz pouco tempo, mas muita coisa mudou desde então.  

A oferta do AEE, preferencialmente no contraturno, foi proposta pela PNEEPEI para responder a um desafio daquela época. Qual era esse desafio? Resumidamente, as redes de ensino não percebiam nenhuma incoerência em retirar um estudante público da Educação Especial de determinada aula para que ele fosse para o AEE. 

Por que isso ocorria? “Ah, como ele não vai aprender o conteúdo que o professor está trabalhando, ele vai aproveitar mais se estiver nesse momento recebendo o atendimento especializado.” Esse senso comum, dominante na época e que ainda está presente nos dias de hoje, pressupõe que sabemos de antemão o que cada estudante pode ou não aprender, partindo do diagnóstico, o que fragiliza a aposta educacional que poderia ser realizada em sala de aula junto com a turma. 

Como era usual as redes de ensino entenderem que era correto retirar os estudantes da sala de aula e organizar o AEE de modo substitutivo, a PNEEPEI buscou responder a essa questão afirmando como princípio a garantia de que os estudantes público da Educação Especial participassem plenamente das atividades em sala de aula. Para tanto, o AEE foi afirmado como complementar ou suplementar, a ser realizado no contraturno. Por quê? Para que um direito não antagonizasse com o outro. Para romper com a dinâmica de escolha entre acessar o currículo comum ou o AEE. Atualmente, em 2025, na discussão sobre como articular a Educação Integral e a Educação Inclusiva, temos de manter esse princípio e avançar em uma concepção de currículo que considere a integralidade dos estudantes sem e com deficiência.  

Isso requer superar a lógica do turno e do contraturno? 

Sim. Avançar em termos educacionais passa pelo rompimento da lógica de turno e contraturno. Na perspectiva da formação integral do ser humano, o cognitivo vale tanto quanto o emocional, que vale tanto quanto o cultural, e assim por diante. Com base nesse princípio, a aula de educação física não é menos importante do que a de matemática. A de arte não é menos importante do que a de português. Inclusive, porque podemos pensar em estratégias para aprender matemática e português nas aulas de educação física e de arte. Então, precisamos também considerar a integralidade do currículo, e o AEE não pode ficar de fora dessa organização, desse planejamento.  

A Educação Integral possibilita que o AEE ocorra em outros espaços e não apenas na SRM? Ela facilita a articulação com os demais profissionais da escola?

O diálogo entre os professores se dá a partir do currículo que está posto e que será trabalhado pela unidade escolar. Precisamos tomar cuidado para não sermos novamente seduzidos a ter de escolher entre isso ou aquilo. O que eu quero dizer com essa afirmação? Que o projeto político-pedagógico [PPP] deve contemplar o AEE, como já está estabelecido na PNEEPEI, que tem na SRM seu local de realização prioritário.  

No entanto, essa não é a única forma e nem é o único momento em que o AEE pode estar presente na vida do estudante público da Educação Especial dentro da escola. Existem algumas funções específicas desse serviço que, sim, podem ganhar qualidade quando realizadas prioritariamente em um ambiente ou em uma sala organizada para esse fim. Mas temos de considerar os contextos de redes municipais e estaduais de educação, nos quais nem todas as escolas têm uma SRM. 

Nesse caminho de pensarmos em outras possibilidades de efetivação do AEE, a Educação Integral nos instiga. Um ponto é central: a compreensão de que o diálogo entre o professor regente e o de AEE é imprescindível para que a gente faça acontecer, de fato, uma educação inclusiva. E o instrumento desse diálogo é o currículo comum. Qualquer que seja a forma de organização do AEE proposta pela unidade escolar, a existência e a colaboração entre esses dois professores são fundamentais, pois ambos têm a educação como sua tarefa máxima e comum.  

Esse movimento envolve outras pessoas, por certo. A educação não acontece sem a participação das famílias e dos próprios estudantes, sem a participação da gestão da escola. Assim, quando o professor do AEE vai organizar o seu trabalho, mobilizar o estudo de caso ou propor um plano de atendimento educacional especializado [PAEE], ele não pode estar apartado da dinâmica escolar e do currículo que está sendo proposto. Pare eliminar as barreiras que impedem o estudante de ter acesso ao conhecimento e à participação, é preciso conhecê-las.

Tudo isso não é novo, mas penso que a Educação Integral em Tempo Integral joga novamente luz sobre essas questões. Pois, se em uma escola de tempo parcial nós não podemos prescindir desse diálogo, em uma escola que funciona em tempo integral, em uma estratégia de Educação Integral, menos ainda. Esses direitos não podem, de forma nenhuma, ser hierarquizados.

Como organizar o AEE a partir das especificidades de cada etapa de ensino e também de cada estudante?

Novamente, o AEE tem de ser organizado de acordo com o currículo que está posto. E vai ganhar diferentes contornos na Educação Infantil, no Ensino Fundamental ou no Ensino Médio. Obviamente, é preciso levar em conta também as necessidades de cada estudante para planejá-lo e organizá-lo. Vamos imaginar uma criança cega. Para ela, o AEE na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental poderá ter como um de seus objetivos garantir o acesso ao Braille, para o desenvolvimento da autonomia de leitura e escrita. Quando esse estudante chegar no Ensino Médio, talvez o foco do AEE não precise mais ser o ensino do Braille e tenha outra função, ou ainda nem seja necessário pela inexistência de barreiras. Temos de lembrar, a todo momento, que colocar a pessoa à frente da deficiência nos obriga a pensar sobre qual é o objetivo do AEE para esse estudante, e não para essa deficiência.  

A organização do AEE a partir do currículo, e não da deficiência, é instigada pela Educação Integral em Tempo Integral, porque é preciso manejar tempos, espaços, materiais e relações de acordo com o que está posto naquele contexto.  

Os anos finais do Ensino Fundamental e o Ensino Médio são mais desafiadores para a articulação do AEE na Educação Integral devido à própria organização das etapas, como a fragmentação do trabalho docente? 

Quando falamos em AEE hoje em dia, não tem ninguém no Brasil que não saiba o que é, correto? Podemos ter diferentes compreensões e formas de implementação, mas o AEE é uma política pública exitosa. O mesmo ocorre quando falamos de SRM. Não existe nenhuma rede pública, das 5.596 existentes, que não tenha conhecimento sobre esse espaço. Está consolidado nacionalmente. 

Já o Programa Escola em Tempo Integral tem dois anos. Claro, se olharmos para trás, tivemos o Mais Educação e outras experiências, das quais partimos e nos alimentamos. Sabemos também que a Educação Infantil tem excelentes experiências, porque essa etapa já atua dentro de uma perspectiva integral de ser humano. Ela não separa cuidar de educar, por exemplo. À medida que vamos avançando na escolarização, o processo se torna mais complexo por um lado e mais fragmentado por outro. O Ensino Médio talvez seja a etapa que mais tenha essas características que você sugere: aulas mais curtas, professores que se revezam, tempo de aula reduzido, enfim. Então é claro que os desafios para a Educação Infantil são, em alguma medida, um tanto diferentes daqueles do Ensino Médio. Mas, por outro lado, estamos falando de pessoas em idades diferentes e que se colocam no mundo de maneiras distintas. Ouvir os estudantes sem e com deficiência é sempre um excelente ponto de partida para compreender caminhos possíveis de qualificar a educação. 

Tornar o currículo acessível é central para a articulação do AEE na Educação Integral?

A educação é muito dinâmica. Um dos apontamentos mais importantes que está no ofício é a discussão sobre o currículo, que é, por si, um instrumento flexível. O currículo vai dizer como os estudantes da escola terão acesso às aprendizagens. Se ele não for acessível, acaba se configurando, ele mesmo, em uma barreira. Se o currículo considera que o sujeito de aprendizagem tem um corpo ou uma cognição padronizada e homogênea, com as mesmas inteligências e habilidades, ele certamente vai ser uma fonte de exclusão. Isso vale para crianças com ou sem deficiência. Essa é uma questão fundamental na educação e que também não é nova. 

As escolas devem construir seus PPP e estabelecer seus currículos. A parte que cabe aos professores e gestores é organizar esses dois documentos considerando como ponto de partida quem são os meninos e as meninas daquela escola. É nesse momento que decorre a necessidade de compreendermos que esse currículo não pode deixar ninguém de fora. O acesso a ele é um direito. A BNCC [Base Nacional Comum Curricular], enquanto lei, traz essa questão como princípio e diretriz transversal. E o direito à educação está embasado justamente na acessibilização do currículo. E esse movimento não é obrigação exclusiva do professor do AEE. Faz parte da função social da escola, de toda a comunidade escolar. 

Às vezes, pensamos que o currículo é uma peça pré-determinada, que vem de fora para dentro. Mas essa afirmação não é verdadeira. A BNCC traz uma base nacional de conhecimentos aos quais todos os estudantes brasileiros devem ter acesso. Ela é orientadora do currículo, que é um documento flexível, que deve ser organizado a partir das diferentes realidades e dos diferentes estudantes que fazem parte de cada uma de nossas escolas. Ou seja, o currículo não é único e imutável. As novas gerações mostram novas formas de aprender, de entender o mundo, que também não é o mesmo. Os professores mudam suas formas de ensinar e de organizar os conhecimentos a serem ensinados. Mudamos nossa compreensão do que é deficiência, entendida atualmente como uma relação entre barreiras e impedimentos. Nesse momento, não cabe mais escolher qual é o estudante que terá acesso pleno ao currículo ou, em termos mais amplos, ao direito à educação.   

Por que é preciso acreditar no potencial de aprender de todos os estudantes e qual a relação dessa premissa com o currículo? 

A aposta em todos os estudantes é potencializadora de aprendizado. O currículo, por suas características, indica qual é o recorte que estamos fazendo de uma herança de conhecimento comum ao qual todos temos de ter acesso, aprender, compartilhar. Não é à toa que falamos em currículo comum, porque ele é composto por conhecimentos que devem ser comuns a todas as pessoas, indistintamente, como parte do desenvolvimento humano, social. Não é comum porque ele é o inverso de especial. Ele é comum porque tem de estar disponível e ser acessado por crianças, adolescentes, jovens e adultos com e sem deficiência, com transtorno do espectro autista (TEA), com altas habilidades ou superdotação.  

No ofício procuramos deixar bem explícito qual é o papel do AEE e da acessibilidade curricular, reconhecendo e nomeando o desafio que está posto no âmbito da organização dos sistemas de ensino, do PPP das escolas e de seus currículos, considerando todos os profissionais envolvidos. 

Por tudo isso, é bastante oportuno compreender a Educação Integral e a Educação Inclusiva como par dialógico. Boa parte das perguntas que nos endereçaram dizem respeito a como organizar e como fazer. Temos dialogado muito sobre essas questões dentro do MEC, sempre com a presença da Seb e da Secadi, e junto com representantes das redes de ensino. É necessário afirmar que a execução das políticas educacionais parte da colaboração entre os entes nacionais e subnacionais. 

Os dados do Censo Escolar mostram um aumento de matrículas de estudantes público da Educação Especial no último ano em todos as etapas da Educação Básica. Mostra também um aumento de matrículas na Educação Integral em Tempo Integral. Ou seja, temos a oportunidade de reconhecer as barreiras, dado que as crianças, os adolescentes e os jovens estão matriculados em nossas escolas. Mas organizar um currículo integral e inclusivo requer de nós ir além: promover a participação de todos os estudantes público da Educação Especial em todas as atividades promovidas pela escola, de modo a qualificar ainda mais nosso repertório pedagógico. 

Outra dúvida à qual o ofício busca responder é como ficam os estudantes público-alvo da Educação Especial matriculados em escolas de tempo integral que precisam se ausentar nos momentos de terapia e de consulta médica. Como proceder nessas situações? 

Reafirmamos que os tratamentos médicos e terapêuticos têm, sem dúvida, importância na proteção ou no cuidado integral de bebês, crianças, adolescentes e jovens. Contudo, eles não fazem parte da oferta da educação em tempo integral, que englobam práticas pedagógicas e campos de experiências educacionais, que tem finalidade educativa, e não terapêutica. Esse é um primeiro ponto que temos de reafirmar. Ao mesmo tempo, os sistemas de ensino não podem impedir a matrícula em tempo integral devido à necessidade de comparecimento a esses serviços médicos e terapêuticos. Eles são legítimos dentro da trajetória de cada estudante.

Novamente, nós estamos falando de relações e de pessoas. Não são questões estanques e que têm resposta pronta e única. Por isso, é fundamental o diálogo com as famílias, que devem ser ouvidas e, ao mesmo tempo, precisam escutar a escola sobre a importância de seus filhos e filhas participarem das atividades pedagógicas. Estamos falando de arranjos locais dos sistemas de ensino que não impeçam um ou outro direito. Estamos defendendo a coexistência dos direitos, portanto, novos arranjos de tempos, espaços, materiais e relações nas escolas.

Nem sempre essa é uma conversa fácil…  

O que você está me dizendo é que não tem resposta pronta, cada pessoa em seu contexto é única. A Educação em Tempo Integral se baseia na própria reorganização dos tempos e espaços escolares, no PPP de cada unidade e no diálogo com os próprios estudantes. É preciso considerar a promoção de práticas de qualidade de saúde integral e também os direitos de aprendizagem. Nosso desafio é organizar todos esses saberes e práticas sem hierarquizar saúde e educação. Sim, nem sempre é uma conversa fácil, mas, sem ela, não chegaremos a respostas potentes. 

Todas as pessoas, em algum momento, precisarão se ausentar de suas atividades por questões de saúde.

Exato. Não é exclusivo para pessoas com deficiência, e a LDB já versa sobre quantidade mínima de horas e dias letivos para cada etapa de ensino. Mas, então, por que esse questionamento surge? Porque muitas vezes as famílias, ou melhor, boa parte da sociedade, ainda têm como base a deficiência num paradigma clínico. Nesse sentido, o tratamento médico ou terapêutico pode ganhar notoriedade, uma importância maior do que a presença desse estudante na escola.  

Não estou dizendo que isso não possa acontecer, claro que pode. Tem horas que ou nós cuidamos da saúde ou não teremos como comparecer em nenhum lugar. Entretanto, essa hierarquização é mais acirrada em relação às pessoas com deficiência. E isso precisa começar a ser dissolvido, pois as práticas de cuidado e de saúde integral são imprescindíveis, assim como a educação. 

Entendo que o caminho é sempre o diálogo. Há uma rede de ensino que, para dar uma resposta a essa questão, oferece duas possibilidades de tempo integral: uma de sete horas e outra de nove horas. Para os familiares com crianças com deficiência, que têm maior necessidade de acessar cuidados integrais, de saúde e outras questões, é indicada a matrícula na jornada de sete horas, para que essa composição seja possível. Percebe que isso é bem diferente de hierarquizar direitos ou de compreender que a saúde é mais importante do que a educação? 

Além disso, é importante organizar o dia de cada estudante, para sair da compreensão de que estudantes público da Educação Especial dizem respeito a um grupo homogêneo de pessoas que requerem sempre os mesmos tipos de apoio. Ou seja, é sempre necessário atentar se não estamos passando a deficiência na frente da pessoa. Por exemplo, toda criança tem direito a ter tempo para viver e brincar. Considerar apenas saúde e educação é reduzir direitos e esquecer que lazer, descanso, acesso a outras atividades que não estão vinculadas necessariamente à educação e à saúde são fundamentais ao desenvolvimento pleno. Não só as crianças, mas também os adolescentes e os jovens. O equilíbrio é imprescindível para que atuemos de uma forma integral e integrada. É importante compreender que o acesso a terapias e procedimentos relacionados à saúde garantem, de alguma maneira, avanços pedagógicos. O diálogo é de fato o caminho para sairmos do paradigma atual e construirmos uma escola mais inclusiva, integral e feliz.  

Como as escolas devem registrar no Censo Escolar as matrículas de estudantes que realizam o AEE e têm uma jornada de tempo integral? 

Não há nenhum impedimento e a dupla matrícula está garantida. O ofício é bastante explícito: “Para os alunos em atendimento no AEE que estejam na escola em tempo integral, o Sistema Educacenso permite que seja realizada a declaração do aluno no AEE em horário coincidente/concomitante com a escolarização. Essa é a única situação em que o Educacenso permite alunos vinculados em turmas distintas em horários coincidentes. Para os estudantes em atendimento no AEE que não estejam em tempo integral, o AEE deverá ser declarado no turno contrário ao da escolarização”.  

Se mesmo assim ainda houver dúvidas, o Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira] disponibiliza uma página com perguntas recorrentes, que traz informações precisas às redes sobre como registrar a matrícula do tempo integral e a matrícula no AEE. Além disso, é possível consultar os canais de atendimento oficiais do Inep a partir de seu portal ou pelo e-mail c[email protected]. 

Para finalizar, quero deixar um recado aos gestores municipais e estaduais. O mecanismo de dupla matrícula tem sido fundamental para chegarmos aos números atuais registrados no Censo Escolar de 2024, recém-lançado, em relação ao público da Educação Especial, tanto nas escolas comuns do ensino regular quanto no AEE.  

Essa indução financeira considera que a educação especial inclusiva requer a substituição do ‘ou’ pelo ‘e’ para avançar ainda mais na garantia de que nenhum estudante com deficiência, transtorno do espectro autista, altas habilidades ou superdotação seja excluído do sistema escolar por conta dessa característica. 

A atual gestão da Secadi e do MEC atuou junto à Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade (Cif), sob a liderança do ministro Camilo Santana e da professora Zara Figueiredo, para ampliar o fator de ponderação do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação] para a modalidade da Educação Especial. Ele passou de 1,2 em 2023 para 1,4 em 2024, um crescimento de 17%. Então, mobilizem suas escolas a preencherem corretamente o Censo Escolar, de modo a garantir que esse e outros recursos, como o PDDE-SRM, sobre o qual falei anteriormente, cheguem a suas redes de ensino. Dessa forma, faremos jus ao pacto federativo em prol de uma educação que não deixa ninguém para trás! 

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