Como usar jogos matemáticos a favor da aprendizagem e da inclusão

Estratégia, que deve ser planejada com intencionalidade pedagógica, permite envolver todos os estudantes, como demonstra projeto de escola em Patos de Minas (MG)

Números, operações, equações, fórmulas, teoremas e problemas. Esses são apenas alguns dos conceitos que podem embaralhar o raciocínio de estudantes do ensino fundamental durante a aprendizagem da matemática. Seja pela complexidade, abstração ou dificuldade de compreender a sua relevância no dia a dia, esse componente curricular ainda é visto por muitos como um bicho de sete — ou incontáveis — cabeças. Um dos caminhos para desmistificar essa ideia é o trabalho com os jogos matemáticos, uma vez que eles “têm um papel fundamental nos processos de ensino porque trazem a ludicidade ao ato pedagógico”.  

É o que afirma José Eduardo Lanuti, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente e pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Quando há a oportunidade de entrar em contato com um conhecimento por meio de uma atividade lúdica que desafie e faça pensar na aplicação prática, o aluno acaba aprendendo com mais facilidade”, ressalta. 

Com mais de dez anos de experiência como professor de matemática nos anos finais do ensino fundamental e no médio, Lanuti garante que esse entendimento é mais acentuado no ensino desse componente, cuja fama é ser difícil ou até impossível de aprender com prazer.  

“Quando o professor consegue trazer, do planejamento da aula ao desenvolvimento das ações pedagógicas, atividades que envolvam jogos, ele vai proporcionar mais dinamicidade para os estudantes e conseguir organizar a aula de um jeito diferente, em duplas ou em grupos, por exemplo, saindo daquele formato tradicional em que o professor explica e o aluno apenas observa. Com os jogos, é preciso pensar e criar estratégias, e isso estimula muito o raciocínio dos estudantes”, explica.  

Para todos: o caráter inclusivo dos jogos  

Para Priscila Monteiro, mestra em educação matemática e professora na graduação em pedagogia do Instituto Vera Cruz, uma das principais vantagens dos jogos é que eles têm, por si só, um caráter inclusivo. “Uma pessoa que sabe menos pode jogar com uma que sabe mais e interagir a respeito das estratégias utilizadas. Então, eu posso saber menos sobre determinado assunto e, ainda que minhas estratégias não sejam tão avançadas, conseguir jogar”, observa.  

Nesse sentido, Lanuti enfatiza que “ensinar na perspectiva inclusiva é dar diferentes oportunidades para que todos os alunos participem, de acordo com a sua capacidade”. “A utilização dos jogos na educação básica é importante não só para os estudantes público-alvo da educação especial, mas para todos, porque não tem como, de antemão, o professor saber o que vai beneficiar um aluno em termos de aprendizagem. Às vezes, acredita-se que um determinado jogo vai favorecer um estudante, mas aquela dinâmica acaba ajudando outro”, comenta.  

Para ele, a educação, de modo geral, envolve algo que “ainda não foi muito aceito pela escola, que é a imprevisibilidade”, conceito que anda lado a lado com os jogos. É importante que o professor busque antecipar questões que podem surgir durante o jogo e pensar em intervenções possíveis, mas na hora da atividade é preciso também estar aberto ao inesperado. “No jogo, não sabemos quem vai vencer, quem apoia quem, que tipo de ajuda uma pessoa vai oferecer para a outra, se a regra tem de ser seguida ou se ela pode ser criada, quais conhecimentos o aluno vai mobilizar para avançar etc. Por isso, o jogo, ao mesmo tempo que facilita o processo de ensino e de aprendizagem, traz a imprevisibilidade para a aula, fazendo com que ela fique naturalmente mais dinâmica”, pontua.  

Priscila diz que a construção coletiva de diferentes saberes é outro fator que caracteriza o jogo como uma ferramenta inclusiva indispensável no dia a dia da escola. “O jogo não tem uma única estratégia, cada um pode usar a sua. Isso dá uma plasticidade cerebral, no sentido de: eu posso pensar por um caminho e você por outro, e o fato de estarmos juntos nos ajuda a pensar, a conhecer outros caminhos e outras estratégias”, reforça.  

Segundo Lanuti, esse é justamente um dos pontos mais interessantes dos jogos: fazer com que os estudantes criem suas próprias estratégias e busquem o conhecimento para entender a dinâmica proposta. “O jogo estimula até a necessidade de o aluno pesquisar um determinado assunto para conseguir jogar. Assim, acaba sendo um atrativo para que ele possa também ir reconhecendo em que pontos pode avançar e quais são os conhecimentos que já possui. Isso dá ao professor muitas pistas de como reorganizar o trabalho para procurar outras atividades que vão ajudar essa criança ou jovem a avançar na aprendizagem.” 

Para aproveitar esse potencial dos jogos, os professores podem observar as estratégias utilizadas pelos estudantes durante as partidas e realizar junto com a turma um momento de compartilhamento e debate dos caminhos escolhidos. 

Como usar jogos matemáticos nos anos finais 

De acordo com Lanuti, há uma crença de que os conteúdos dos anos iniciais do ensino fundamental são mais concretos e os dos anos finais e do ensino médio são mais abstratos, o que dificultaria o uso de jogos matemáticos nessas etapas. Ele questiona essa ideia e garante que os jogos podem ser utilizados a partir de diferentes intenções do professor.  

“É possível utilizar essa estratégia para, por exemplo, investigar os conhecimentos prévios dos alunos sobre um determinado tema, substituindo a avaliação diagnóstica”, afirma Lanuti. Esse pode ser um caminho para identificar os saberes dos estudantes sobre conteúdos que deveriam ter sido estudados nos anos iniciais do ensino fundamental e que são importantes para o que ele [o professor] quer trabalhar naquele momento. “Ao perceber as dificuldades da turma, o professor pode sanar dúvidas referentes ao conteúdo dos anos iniciais antes de iniciar o trabalho previsto nos anos finais”, frisa. 

Os jogos também podem servir para revisar algo que anteriormente já foi debatido entre a turma e o professor. Nesse caso, eles entram como parte de um planejamento mais amplo, que se desdobra em outras ações e atividades.  

Tanto a escolha do jogo quanto a abordagem, destaca Priscila, vão depender da intencionalidade pedagógica. “O trabalho com xadrez, por exemplo, é superbacana. Mas, matematicamente, o que eu quero que os alunos aprendam jogando xadrez? O professor precisa pensar quais das tantas habilidades previstas na BNCC [Base Nacional Comum Curricular] são favoráveis a esse trabalho, o que pode sistematizar a partir do xadrez ou de outros jogos. Ou seja, é possível escolher diferentes tipos de jogo de acordo com o que os alunos querem, com o conteúdo e com a aprendizagem que se espera deles”, pontua.  

Pontos de atenção

  • Lúdico e intencional devem caminhar juntos. Ao optar pelos jogos, o professor deve partir de algumas perguntas para que as atividades não fiquem apenas no lúdico e tenham intencionalidade pedagógica, tais como: Qual a finalidade pedagógica desse jogo? O que quero alcançar com esse jogo em sala de aula? Quais conteúdos serão trabalhados a partir desse jogo? 
  • Há momentos de jogar e de refletir sobre o jogo. Priscila acrescenta que o jogo não pode estar isolado de outras propostas. “Não pode ser jogo, jogo e jogo. Tem o momento do jogo e da reflexão sobre o jogo. Esses momentos podem ser sobre situações que o professor observou enquanto os alunos jogavam e que podem ser transformadas em problemas para compartilhar e discutir com todo o grupo, por exemplo”, pontua.  
  • O jogo é importante, mas não dá conta de tudo. “O jogo é um apoio que vai ao encontro de uma concepção de educação escolar que foge daquela tradicional e excludente. É um importante recurso desde que a intencionalidade pedagógica seja também dinâmica, inclusiva, democrática e atenta às diferenças de cada estudante. Nenhum recurso, seja de alta ou baixa tecnologia, é suficiente sem uma intenção bem-direcionada para essa perspectiva inclusiva da educação”, diz Lanuti. 
  • Interdisciplinaridade pode ampliar possibilidades. “Às vezes, o professor pensa: ‘Vou propor um jogo que trabalhe fração’. Mas, para entender as regras do jogo da fração, é preciso retomar divisão, multiplicação etc. ou entender o que é um texto instrucional. Nesse caso, por exemplo, pode ser que o grupo precise do apoio do professor de língua portuguesa para trabalhar esse tipo de texto com a turma, em uma perspectiva interdisciplinar”, exemplifica Lanuti. 

Tapete cultural: números que fazem sentido 

Justamente por conhecer o potencial pedagógico dos jogos no ensino da matemática, Natane Souza decidiu usar essa estratégia com alunos do 9º ano assim que chegou à Escola Municipal (EM) Major Augusto Porto, localizada na zona rural de Patos de Minas (MG), como professora de apoio [equivalente a professora auxiliar em outros locais]. Por sete anos, ela trabalhou em uma instituição de educação especial, mas, com o passar do tempo, foi se interessando cada vez mais pela escola comum. Até que, no ano passado, a educadora passou a atuar no apoio pedagógico aos alunos com deficiência, em sala de aula, juntamente com professores regentes. Na época, a escola, que não tem atendimento educacional especializado (AEE), atendia 112 crianças e adolescentes, sendo sete com deficiência intelectual, matriculados do 6º ao 9º ano.  

Segundo a educadora, todos os estudantes foram prejudicados pela pandemia de Covid-19. “A turma do 9º ano perdeu toda a base da matemática do início dos anos finais do ensino fundamental. Eles não tiveram acesso a muitos conteúdos do 6º e do 7º ano. Então, quando falamos de potenciação e radiciação com alunos que não compreendiam contextos de multiplicação e divisão, vimos que estávamos chovendo no molhado”, lembra Natane, que é formada em matemática e pedagogia e especializada em educação especial. 

Diante desse cenário, a professora constatou que, para ampliar o repertório de estratégias da turma para resolver situações-problemas e cálculos, seria preciso uma abordagem diferente, que envolvesse todos os estudantes de forma lúdica. “Percebemos que a maior dificuldade dos alunos em relação à potenciação e radiciação se dava porque eles não compreendiam a base e precisávamos apresentar isso de um jeito que engajasse todos”, ressalta.  

Além disso, na turma havia três estudantes com deficiência intelectual, com níveis de conhecimento diferentes, para os quais materiais concretos eram importantes. “Primeiro, minhas colegas e eu nos sentamos para pensar o que poderíamos fazer e entendemos que, da perspectiva da matemática, alguns alunos têm mais necessidade do concreto, de algo que faça os olhinhos brilharem para compreender o conteúdo”, conta a professora.  

Depois de algumas atividades com jogo da memória, com peças feitas pelos estudantes para relembrar as regras de potenciação e radiciação, realizamos algumas rodas de conversa para discutir como seguir o processo de aprendizagem. “Nós pensamos juntos: ‘Como podemos melhorar o que estamos fazendo?’. Eles foram dando várias sugestões, até que uma aluna falou: ‘E se a gente fizesse como aqueles jogos de pergunta e resposta, em que vamos jogando o dado em um tabuleiro e avançando nas casas?’, e todo mundo gostou da ideia.”  

Foi assim que surgiu o “Tapete Cultural”, projeto desenvolvido pela educadora, no início de 2023, durante a formação do “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade”, realizada pelo Instituto Rodrigo Mendes (leia mais sobre a iniciativa no final deste texto).  

A ideia consistia em trabalhar o conteúdo de potenciação, radiciação e expressão numérica por meio de um grande tapete que seguisse a lógica de um jogo de tabuleiro de avançar casas, confeccionado com desenhos dos próprios estudantes sobre a cultura local — daí o nome “tapete cultural”. Com tudo pronto, era hora de partir para a prática. Para isso, eles contavam com um painel de balões com perguntas que envolviam os dois temas: matemática e referências culturais. Por exemplo: “A população do Distrito de Areado comemorou festivamente a reinauguração da Igreja de Nossa Senhora das Dores em 10² √361+125-10, depois de um trabalho de restauração que durou dez anos. Qual foi o ano da reinauguração?”.  

Em duplas, os alunos escolhiam um balão e, se acertassem a resposta, avançavam no tabuleiro gigante.  

De acordo com Natane, todas as etapas do projeto foram desenvolvidas junto com a turma, e os resultados de todo esse processo não demoraram a aparecer. “Os alunos entenderam que, para se sair bem no jogo, era preciso estudar e praticar o conteúdo que estávamos vendo. Isso fez com que, de modo geral, todos apresentassem avanços na aprendizagem”, constata.  

“Os jogos são o melhor meio para incluir as crianças porque, geralmente, um aluno que no dia a dia se sente um pouco excluído pode ser estimulado a participar jogando e interagindo com os demais. E foi isso que aconteceu no decorrer do projeto: vimos que os estudantes com deficiência participaram de todas as etapas e jogaram com seus pares. Foram momentos interessantes em que todos saíram ganhando”, observa Rozelena Damaceno de Lima Soares, que na época era coordenadora pedagógica e colaborou com o desenvolvimento do “Tapete Cultural”. Hoje ela segue na escola como professora.  

Dicas práticas para trabalhar com jogos

  1. Envolva os estudantes desde o início. Comece perguntando se querem jogos em aula. Isso é importante porque, mesmo que a ideia pareça atrativa, nem sempre a turma está disposta a participar de atividades lúdicas. Caso a resposta seja positiva, explore quais tipos de jogo e temas são do interesse deles. Todo o planejamento deve ser feito de forma colaborativa para garantir que a atividade seja inclusiva e adequada ao contexto dos alunos. É o que garantirá que os jogos escolhidos sejam relevantes e estimulantes. 
  2. Defina o objetivo pedagógico. O propósito pedagógico não deve estar apenas atrelado ao que se espera que o aluno saiba ao final da atividade, pois os jogos podem possibilitar diferentes aprendizados. É essencial entender que os resultados do jogo podem não se manifestar imediatamente ou no tempo esperado pelo professor, mas isso não invalida o uso do recurso.  
  3. Escolha bem os jogos. Ao selecionar os jogos, é preciso considerar como eles se relacionam com os conteúdos que se deseja abordar. O trabalho de planejamento antes da aula deve focar em analisar o jogo e verificar qual se alinha melhor aos objetivos traçados. Um dos principais aspectos dessa escolha é a atratividade, ou seja, o jogo deve ser interessante para os alunos, seja no aspecto visual, para aqueles que enxergam, seja no aspecto tátil, para os que não enxergam, por exemplo. 
  4. Opte por duplas ou grupos. Após a explicação coletiva da proposta, organize os estudantes em grupos para jogar. Isso evita a frustração de esperar a vez por muito tempo e permite que cada dupla ou grupo resolva problemas de forma autônoma. É recomendável que o professor confie que os alunos podem lidar com discussões ou desentendimentos durante o jogo e encontrar soluções entre si. 
  5. Seja flexível. Permita que os estudantes joguem mesmo que não sigam à risca as regras. O professor deve circular pela sala supervisionando e intervindo, quando necessário, para retomar regras ou esclarecer dúvidas. O jogo pode ser integrado a diferentes atividades, com alguns grupos jogando enquanto outros realizam tarefas variadas. 

Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade 

O projeto “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade” é uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Movimento Bem Maior, o Instituto Ambikira e o Instituto Machado Meyer, e visa a formação de educadores, gestores escolares e técnicos de secretarias municipais de Educação de todo o país. O objetivo é potencializar práticas e políticas públicas locais que proporcionem uma educação de qualidade para todas e todos.  

Dividido em diferentes etapas, que vão de 2023 a 2025, o programa é realizado em parceria com dez secretarias municipais de Educação, que representam as cinco macrorregiões do Brasil: Maués (AM), Óbidos (PA), Campo Formoso (BA), Gado Bravo (PB), Irauçuba (CE), Lucas do Rio Verde (MT), Cajati (SP), Patos de Minas (SP), Alvorada (RS) e Canguçu (RS).    

No ano passado, a equipe do IRM conduziu uma formação semipresencial com cerca de 400 educadores desses municípios, que incluiu orientação e apoio para a elaboração e o desenvolvimento de cem projetos inclusivos, com foco na promoção do protagonismo e da autonomia de todos os estudantes.  

Neste ano, as ações formativas do projeto Alavancas tiveram como público-alvo técnicos das secretarias municipais de Educação. O objetivo era que, ao final do percurso, cada rede elaborasse uma política pública voltada à educação inclusiva. Em 2025, está previsto o monitoramento das políticas elaboradas neste ano e uma pesquisa sobre os impactos gerados pelas formações, além de dois cursos que serão disponibilizados na plataforma de formação do IRM. 

 

 

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