Nos trilhos da democracia: projeto desenvolve conceitos políticos

A partir de conteúdos de geografia, projeto desenvolveu a importância da participação na vida pública e dos serviços públicos locais

O presente texto relata minha experiência de ensino de geografia realizada no ano de 2019 no Colégio Estadual Nelson Pereira Rebel, localizado no distrito de Travessão, município de Campos dos Goytacazes (RJ). Percebi que havia muita insatisfação dos estudantes em relação à política e aos serviços públicos e, por conta disso, decidi elaborar o projeto “Nos trilhos da democracia”.

Travessão é um distrito afastado do centro da cidade e apresenta inúmeros problemas urbanos, como a falta de segurança e a ausência de saneamento básico, além da precariedade do transporte público e dos serviços de saúde.

A realidade da escola e da comunidade

A escola, localizada bem ao centro da região, tem aproximadamente 800 estudantes e oferece três modalidades de ensino médio: regular, integral e Educação de Jovens e Adultos (EJA). Os alunos são oriundos do espaço urbano do distrito e de áreas rurais adjacentes. Em geral, são provenientes de famílias com baixa renda ou de classe média baixa.

A realidade vivenciada pelos discentes, em uma comunidade que está distante dos centros de poder com suas inúmeras carências e necessidades, nos fez pensar em um conjunto de ações que pudessem contribuir para a solução de problemas que afetam os próprios adolescentes e a sociedade local.

Diariamente, a precariedade dos serviços públicos é evidenciada nas reclamações da população e dos alunos, especificamente. Todavia, as queixas sobre saúde, transporte, saneamento básico e outros serviços são feitas apenas entre eles, sem haver um direcionamento às autoridades competentes.

Em sala de aula, estudantes sentados em carteiras acompanham documentário reproduzido em TV acima da lousa. Fim da descrição.
Foto: Diogo Jordão.

Nos trilhos da Democracia

Diante dessa situação, comecei a imaginar possíveis estratégias de ensino para trabalhar essas questões. O projeto foi protagonizado por alunos da turma 2001 do ensino médio integral, no âmbito da disciplina Projeto de Intervenção e Pesquisa (PIP) no ano de 2019.

O curso insere-se no âmbito da política do ensino médio inovador e tem como princípio um currículo mais dinâmico e relacionado à realidade do estudante. A disciplina tem como objetivo inserir o aluno no universo da pesquisa, fazendo dele um sujeito ativo no processo de ensino-aprendizagem.

Busca-se inicialmente, por meio de pesquisas, identificar problemas na escola ou na comunidade. Em seguida, os discentes aplicam uma intervenção para solucionar os problemas encontrados. Tendo em vista que a minha formação é em geografia, as atividades desenvolvidas na disciplina de PIP envolvem, consequentemente, as competências e habilidades relacionadas ao ensino dessa disciplina.

Nesse sentido, ressalto que o meu papel como professor é possibilitar que o aluno perceba o espaço em que vive como um produto social e reconheça a si mesmo como um sujeito capaz de construir um espaço de efetivação da cidadania.

Uma antiga linha de trem que atravessa o distrito de Travessão serviu como inspiração para o nome do projeto, por isso intitulado “Nos trilhos da democracia”. A proposta surgiu a partir de algumas necessidades e inquietações minhas e dos alunos.

Política: uma queixa generalizada

No início do ano letivo, ao propor o projeto para os alunos, notei que havia um descontentamento em relação à democracia. Os estudantes sempre associavam as ações políticas à corrupção e ineficiência de gestão. Além do desconhecimento sobre nosso sistema democrático, esse contato inicial demonstrou uma repulsa à política. Dessa maneira, o desafio para a construção do projeto ficava ainda maior.

Nesse contexto, mais do que resolver os problemas da localidade, “Nos trilhos da democracia” se justificou pela possibilidade de contribuir para a construção de uma cultura democrática, de modo que os alunos e a comunidade em geral se apropriem dos mecanismos participativos existentes ou criem novos caminhos para melhorar suas condições de vida mediante princípios democráticos.

Apesar de muito se falar sobre cidadania e democracia, esses conceitos parecem distantes para os alunos, de modo que são sempre associados à política partidária e à corrupção, conforme conversa realizada com a turma no início do projeto. Assim, o estudo dos problemas urbanos do lugar de vivência dos alunos foi o ponto de partida para trabalharmos o tema de maneira mais palpável.

Democracia, política partidária e cidadania

Dessa forma, percebeu-se a necessidade de estudar a organização político-administrativa do Brasil com foco na escala do município, assim como as competências do Poder Legislativo municipal. A ditadura militar, a participação política e os movimentos sociais também foram conteúdos que mereceram atenção no caminho trilhado.

Para Milton Santos, é inconcebível a cidadania sem o componente territorial, pois é no território que os direitos se tornam práticas sociais por meio dos equipamentos e serviços disponíveis aos cidadãos.

Milton Santos defende que a organização e a gestão do território devem ser instrumentais a uma política efetivamente redistributiva, atribuindo justiça social para toda a população, independentemente de onde o indivíduo estiver. Nesse sentido, o estudo da Geografia Política torna-se essencial, pois cabe a ela indagar de que modo o território expressa o exercício concreto da cidadania.

Metodologia do trabalho

Munido de um arcabouço teórico, organizei o projeto utilizando uma sequência metodológica por etapas:

A primeira etapa do projeto buscou entender alguns conceitos que seriam importantes para as seguintes. Reunidos em círculo, assistimos e debatemos alguns vídeos e documentários que versam sobre cidadania e democracia. Além disso, trouxemos temas como ditadura, legalização das drogas, movimentos sociais e discriminação racial e de gênero.

A intenção foi de que os alunos expressassem suas opiniões de maneira saudável, entendendo que a diversidade de pensamentos faz parte de uma sociedade democrática. Concluindo os debates, entreguei a cada aluno uma folha em branco e solicitei que fizessem um desenho sobre uma causa social pela qual eles levantariam bandeira. Temas como meio ambiente, bullying e homofobia foram abordados de forma bastante criativa.

Estudante realiza desenho com as cores da bandeira lgbt e com os dizeres "girl power". Fim da descrição.
Foto: Diogo Jordão.

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Em uma segunda etapa, com o intuito de refletir sobre os direitos da cidadania, reunidos em grupos no laboratório de informática da escola, os estudantes deveriam escolher um artigo da Constituição e posteriormente confrontá-lo a uma notícia da internet sobre um fato relacionado àquele direito.

Os alunos destacaram temas como o direito à aposentadoria, relacionando-o a notícias sobre a reforma da previdência. Também foi abordado o direito ao transporte, onde debateram as dificuldades de locomoção para os próprios estudantes.

Assim, entenderam que a cidadania não termina na confecção da lei, mas na constante luta por sua efetivação. Após essa etapa, os alunos se dividiram em grupos para a realização de um projeto de pesquisa.

Ouvindo a comunidade

Apresentei à turma quatro temas ligados à democracia: eleição e representação política; movimentos sociais; participação política; e organização político-administrativa do Brasil.

Os alunos elaboraram objetivos e metodologia, pesquisaram na internet, elaboraram questionários do tipo enquete de opinião e saíram às ruas para ouvir a comunidade.

Em laboratório de informática, três alunas uniformizadas olham para tela de computador. Fim da descrição.
Estudantes pesquisaram sobre os temas no laboratório de informática. (Foto: Diogo Jordão.)

Nesse momento, os alunos puderam ouvir seus responsáveis, assim como outros moradores daquele lugar. A pesquisa foi o ponto-chave do projeto, pois dela saíram as opiniões e sugestões de melhorias para o distrito.

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Após a aplicação do questionário, os times elaboraram gráficos com os resultados e produziram um relatório que foi apresentado para a comunidade escolar. Na pesquisa, 80% dos entrevistados não souberam responder quantos vereadores compõem a Câmara Municipal de Campos dos Goytacazes.

Quando perguntados se já participaram de alguma sessão na Câmara, 90% responderam que não. Assim, os estudantes perceberam um distanciamento da população em relação à política, o que justificava uma intervenção que buscasse aproximar o povo das esferas de poder.

Intervindo na comunidade

Após esse levantamento, partimos para a etapa da intervenção. Mais uma vez lançamos mão da aplicação de questionários na comunidade. Inicialmente, de forma coletiva, elaboramos as perguntas.

O objetivo era saber como a população local avaliava os serviços públicos. Além disso, buscávamos levantar as demandas da população para melhorar as próprias condições do seu lugar de vida.

Mais uma vez realizamos aulas de campo para aplicar os questionários. Com os resultados em mãos, os alunos elaboram gráficos e tabelas. Novamente a apuração ressaltou a avaliação negativa em relação aos serviços públicos locais, com destaque para o transporte e a saúde.

Em entrada de bar, três estudantes abordam para pesquisa duas senhoras sentadas em mesa amarela. Fim da descrição.
Foto: Diogo Jordão.

Em rua de bairro, estudante realiza questionário com moradora do bairro. A aluna segura um caderno em suas mãos, enquanto a entrevistada apoia braço direito em grade de portão e segura garrafa Pet com a mão esquerda. Fim da descrição.
Estudante entrevista moradora do bairro. (Foto: Diogo Jordão.)

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Café com política

Seguindo com a etapa de intervenção, convidamos uma vereadora em exercício para participar do evento “Café com política”, no qual os alunos apresentariam os resultados da pesquisa.

Em auditório, professor Diogo em pé discursa para estudantes ao lado de apresentação projetada. Estudantes o observam sentados em cadeiras. Fim da descrição.
Foto: Diogo Jordão.

Fizemos uma roda de conversa na qual se mostraram bastante curiosos, fazendo perguntas à vereadora sobre sua atuação parlamentar. Após essa conversa, foram apresentados os resultados das pesquisas feitas com os moradores.

A vereadora ouviu com atenção e teceu comentários. Ao final, entregamos a ela um ofício contendo as solicitações de melhorias sugeridas pelos cidadãos. A vereadora se comprometeu a apresentar as demandas na Câmara Municipal, a fim de que fossem solucionadas pela prefeitura.

A intervenção possibilitou que a vereadora estivesse presente na escola e conhecesse as reais condições do lugar. Nessa etapa, os alunos se colocaram como um elo entre a comunidade e o poder público municipal.

Após duas semanas, tomando como base o ofício elaborado pelo projeto, inúmeras solicitações de melhorias para os serviços públicos foram apresentadas na Casa Legislativa. Além disso, as demandas também foram apresentadas ao secretário municipal de saúde em uma audiência pública.

Em frente a câmera de vereadores, grupo de 12 estudantes posa para foto em pé. Fim da descrição.
Estudantes em frente à Casa Legislativa de Campos dos Goytacazes (RJ). (Foto: Diogo Jordão.)

Desafio: o jogo da trilha democrática

No percurso trilhado, buscamos a todo momento o protagonismo dos estudantes, sem haver uma preocupação explícita com a avaliação do processo. Planejamos as etapas de maneira que o aluno fosse avaliado sem perceber.

Os debates, desenhos, a construção do projeto de pesquisa, a elaboração e aplicação dos questionários, a produção de gráficos, relatórios e do ofício evidenciaram os conhecimentos construídos.

Somado a isso, propus para a turma o desafio de construir um jogo de tabuleiro como forma de avaliar as aprendizagens e também para multiplicar as ideias de uma cultura democrática. Consideramos que esse modelo de jogo representaria muito bem as ideias do projeto “Nos trilhos da democracia”.

Como o jogo do tabuleiro funcionou?

Assim como os alunos fizeram ao longo do ano, no jogo os participantes também percorreriam uma trilha que os levariam a se desenvolver como cidadãos mais conscientes e participativos.

Os alunos deveriam criar frases que seriam colocadas nas casas do tabuleiro. Metade delas deveria ser de exemplos positivos de atuação democrática; a outra metade, de negativos.

Na dinâmica do jogo, cada vez que o jogador parasse em uma casa com uma ação ruim de cidadania, teria que voltar algumas casas no tabuleiro. Já quando parasse em uma casa de atuação positiva, seria beneficiado, podendo avançar para ficar mais próximo do final.

Em pátio escolar, estudantes se reúnem ao redor de mesa em que duas alunas jogam jogo de tabuleiro. Ao fundo há desenhos coloridos. Fim da descrição.
Estudantes utilizam jogo de trilha criado por eles. (Foto: Diogo Jordão.)

Em pátio escolar, estudantes se reúnem ao redor de mesas em que colegas jogam jogo de tabuleiro. Fim da descrição.
Foto: Diogo Jordão.

Os alunos ficaram bastante empolgados com a atividade. Criaram as frases com muita facilidade, demonstrando que realmente adquiriram conhecimentos e valores democráticos e de coletividade.

Reproduzimos cópias do jogo em uma gráfica e distribuímos a mais de 200 pessoas em um evento escolar aberto à comunidade. Com isso, esperamos que essas duas centenas de pessoas atuem como multiplicadores da cultura democrática.

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Avaliação do projeto

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a construção da cidadania é um exercício contínuo e que demanda a participação de todos para assegurar seus direitos, além de fazer cumprir deveres pactuados por princípios constitucionais e de respeito aos direitos humanos.

Dessa forma, é papel da escola proporcionar experiências e processos que tornem os jovens participantes ativos das sociedades nas quais estão inseridos.

Acreditamos que o projeto contribuiu muito para possibilitar que os alunos estudassem conceitos políticos necessários para compreender a importância da participação na vida pública.

A partir das atividades, eles puderam entender o valor da democracia na construção de uma sociedade mais justa. Mediante conhecimentos de geografia, a turma investigou, analisou criticamente e criou soluções para problemas reais do seu entorno. E os estudantes fizeram isso utilizando diferentes linguagens, como de desenhos, relatórios e slides, assim como a produção do jogo.

As tecnologias digitais também estiveram presentes, sendo usadas de maneira significativa na produção e disseminação dos conhecimentos, como na atividade com notícias da internet, nas pesquisas e na elaboração de gráficos.

Além disso, pudemos sair da monotonia da sala de aula, nos apropriando de diferentes espaços, como a sala de informática, a biblioteca, o pátio da escola, as ruas do bairro e a Câmara Municipal.

Em calçada de rua, professor Diogo tira selfie sorridente. Ao fundo, grupo de estudantes uniformizadas andam por calçada, enquanto alguns alunos passeiam pela rua. Fim da descrição.
Foto: Diogo Jordão.

Protagonismo discente e ensino emancipador

O protagonismo dos alunos permeou todo o processo, sendo dado a eles a oportunidade de expressar suas opiniões e se colocar como agentes políticos, seja nas entrevistas na rua, na roda de conversa com a vereadora ou na multiplicação das ideias por meio do jogo de tabuleiro.

Eles também puderam analisar a realidade do lugar onde vivem e propuseram medidas para solucionar os problemas identificados adotando princípios democráticos. A importância de debater ideias e levantar bandeiras, se posicionando diante de processos políticos e sociais nos diversos âmbitos da vida, também foi observada.

Pude compreender a necessidade e a importância de trabalhar com o lugar de vivência do aluno, pois isso o aproxima dos conteúdos e aumenta o seu interesse no processo de aprendizagem.

Da mesma maneira, é fundamental investir em outros espaços e métodos na construção do conhecimento. O desenvolvimento de um ensino dinâmico, usando tecnologias e demais ferramentas do cotidiano discente contribui na construção de um ensino emancipador.


Diogo Jordão é um dos 10 vencedores do Prêmio Educador Nota 10 de 2020 com o projeto “Nos trilhos da Democracia”.

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