Professor do Ceará ensina astronomia com experiências táteis

Projeto inclusivo, que envolveu a construção de maquetes para a compreensão de conceitos de ciências, colocou docente entre os vencedores do Prêmio Educador Nota 10

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O que você vê quando olha para o céu? O sol e a lua ou os planetas Vênus, Marte e Júpiter? Os conjuntos de estrelas conhecidos como as Três Marias e o Cruzeiro do Sul, quem sabe? Ou, com sorte, a Via Láctea, galáxia que abriga o Sistema Solar? Há muitos anos, a ciência nos ensina que enxergamos a olho nu apenas uma fração ínfima do universo. A observação do que acontece além da Terra é limitada por diversos fatores, como a atmosfera, que filtra grande parte da radiação e da luz provenientes do espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que somos, em grande parte, cegos quando o assunto é astronomia.  

Essa compreensão foi o ponto de partida para que o professor Maurício Soares de Almeida, de 38 anos, desenvolvesse o projeto Explorando o Espaço: Desbravando o Sistema Solar com Experiências Táteis – Uma Proposta Inclusiva do Ensino de Física e Astronomia”, com alunos do 1º ano do Ensino Médio, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), em Juazeiro do Norte, a 491 quilômetros de Fortaleza. Com a proposta, ele foi um dos nove finalistas da 26º edição do Prêmio Educador Nota 10, realizada em 2024 pelo Instituto Somos, com apoio do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), entre outras organizações, e ficou em 2º lugar no eixo de Inovação e Tecnologia. 

A ideia surgiu em 2019, quando Maurício, que é mestre em energias renováveis e doutor em física da matéria condensada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), recebeu pela primeira vez em sala de aula uma estudante com deficiência visual. “Até aquele momento, eu não sabia como ensinar física para estudantes cegos”, conta. O desafio dele era ainda maior porque a escola, que é de ensino integral, não conta com atendimento educacional especializado (AEE), portanto, ele não tinha um colega docente com quem discutir estratégias possíveis para eliminar as barreiras. “Minha aluna disse que gostava e queria aprender sobre astronomia, o que me estimulou ainda mais a pensar como faria para que ela aprendesse os conteúdos junto com a turma toda”, lembra.  

Um horizonte palpável 

A resposta chegou após algumas pesquisas: o professor começou a procurar materiais acessíveis para a turma toda, considerando principalmente a complexidade dos conteúdos de astronomia que seriam trabalhados, mas logo esbarrou em outro obstáculo. “Vi que não havia muita oferta de materiais que fossem verdadeiramente acessíveis, ou seja, que funcionassem para todos os alunos, independentemente de haver ou não deficiência, e que favorecessem a aprendizagem deles”, recorda.  

A solução veio das palavras de Evgen Bavcar, que nasceu em 1946, na Eslovênia, e se tornou fotógrafo depois de ficar cego, na adolescência, em decorrência de dois acidentes: “O teu horizonte é até onde você pode ver. Se você vê com as mãos, logo o teu horizonte é até onde você pode tocar”. Sem a visão, o artista esloveno idealizou uma maneira de fazer fotografias a partir do som e do contato, o que inspirou Maurício em sua empreitada. “Conheci o trabalho de Bavcar durante minhas pesquisas, e essa frase me marcou muito porque, afinal, qual é o objetivo de um professor? É expandir os horizontes dos alunos. Então pensei: por que não fazer isso por meio do tato?”, diz.  

Assim, o professor decidiu propor aos estudantes a construção coletiva de maquetes com materiais didáticos táteis para que toda a turma compreendesse, na prática, os principais conceitos da astronomia, como gravidade, Sistema Solar, modelo heliocêntrico, formação de eclipses, fases da lua e Leis de Kepler, entre outros. Ele conta que, a princípio, era um trabalho voluntário por parte dos alunos, não valia ponto. Para a alegria dele, assim que apresentou a ideia, boa parte da turma de 40 estudantes se engajou e quis participar da experiência.  

Após promover discussões sobre os temas em sala de aula, as maquetes foram montadas no laboratório de física, no contraturno das aulas, durante meses. Em pequenos grupos, os alunos tiveram liberdade para criar os trabalhos, desde os primeiros esboços até a montagem, de modo que o papel de Maurício era mediar o processo, tirando dúvidas e apontando caminhos possíveis. Os pré-requisitos eram que as representações fossem facilmente replicáveis e feitas com materiais de baixo custo, como isopor, EVA, barbante, papel acetato, tinta, pincel, algodão e cola quente. “Eu fazia apenas alguns ajustes finos, indicando, por exemplo, o que não estava claro e o que poderia melhorar. Eles foram os protagonistas.”  

O professor não se ateve a apenas planejar como garantir a participação dos estudantes — muitos reduzem a inclusão a isso —, mas se preocupou também com a aprendizagem de todos. Para isso, os conceitos da física deveriam ser bem explicados nas maquetes. Em uma delas, por exemplo, foram utilizadas bolas de isopor para representar o Sol, a Lua e a Terra, demonstrando a diferença de tamanho entre eles, barbante para indicar o caminho feito pela luz entre esses corpos celestes e que resultam no eclipse lunar, enquanto a região de sombra foi coberta por EVA, e a iluminada, por outro tipo de papel. “Tateando, a pessoa consegue verificar qual é o caminho feito pela luz, qual é a região iluminada e qual é a região de sombra, por meio da textura dos materiais utilizados. Dessa forma, ela consegue compreender como se dá a formação de um eclipse”, explica Maurício.  

Trabalho em equipe: do chão da escola ao universo 

E, por falar em protagonismo, o professor ressalta que as observações feitas por sua estudante com deficiência visual foram cruciais em todas as etapas. “Ela nos dizia o que queria entender dos conceitos que estavam sendo discutidos e a gente montava os experimentos a partir desses apontamentos”, explica Maurício. “Ela também nos ajudou a compreender quais tipos de materiais eram mais coerentes com a proposta. Uma vez peguei cartolina para que ela fizesse legendas em Braille usando a máquina que temos na escola e, quando ela soube, disse: ‘Professor, esse tipo de papel não dá para ser usado, porque o cego lê apertando e a cartolina não funciona para isso’. Ou seja, ouvi-la foi parte indispensável [do processo], pois era ela quem podia nos contar o que e como melhorar”, completa. 

Com os trabalhos prontos, os grupos se reuniram para apresentar para toda a turma as maquetes produzidas. Assim, o desafio de pensar como decifrar aqueles conceitos de uma maneira que todos pudessem entender e de ouvir as contribuições dos colegas geraram aprendizados. “Além dos avanços nos conhecimentos de física, que se mostraram muito significativos ao final do processo, as principais marcas desse projeto foram o trabalho em equipe, que mobilizou a turma toda com muito entrosamento, diálogo e respeito. Os alunos compreenderam que a inclusão beneficia todo o mundo. Esses foram, de fato, os maiores aprendizados que eles tiveram”, avalia.  

Com o apoio da gestão escolar e das famílias dos alunos, o projeto ultrapassou os muros da escola. Após a publicação de uma das maquetes em uma revista científica brasileira, Maurício e seus estudantes foram convidados para apresentar os trabalhos em um congresso de física em Sobral, em uma comunidade de cegos em Crato e para graduandos de física em Fortaleza, todas cidades cearenses.  

Inclusão é educação para todos   

Desde 2019, o projeto de educação inclusiva se tornou uma constante na prática pedagógica de Maurício e segue sendo realizado anualmente com o 1º ano do Ensino Médio, mesmo que não haja estudantes com deficiência na turma. A proposta foi estruturada em três etapas que são desenvolvidas em dois meses: levantamento prévio do conhecimento dos alunos sobre os temas, definição das equipes e maquetes, e execução e apresentação.  

Na primeira fase, o educador faz perguntas disparadoras para identificar o que a turma sabe sobre conceitos relacionados à astronomia, depois discute as ideias com todos e tira dúvidas. Em seguida, os estudantes se dividem para fazer os esboços das maquetes, checar conceitos e, por fim, construir as representações no laboratório de física. Na última fase, cada grupo apresenta em sala de aula o seu trabalho para os demais.   

A selecionadora de física do Prêmio Educador Nota 10, Ana Luiza Sério, explica que a proposta de inclusão foi um dos pontos que motivaram a escolha do projeto do professor Maurício como um dos nove finalistas entre os 2.700 inscritos. “Atuo na área de física há muitos anos, e, infelizmente, ainda é muito difícil encontrar trabalhos como esse, que se preocupam com a inclusão de todos os estudantes”, observa ela, que é professora de física da Escola Vera Cruz, mestre em ensino de ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora das atividades de divulgação científica e extensão do Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR), que é vinculado à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). 

“O professor Maurício tinha uma estudante com deficiência, mas não viu isso como um obstáculo, e sim como uma possibilidade de crescer e avançar. No decorrer dos anos, mesmo sem estudantes com deficiência, ele seguiu realizando o projeto, e isso nos mostra que a inclusão não está ali como um problema a ser resolvido, mas é algo que nos faz encarar o mundo de outra forma”, reforça a educadora. No caso, para refletir como o professor pode apresentar o conteúdo de maneiras diferentes, considerando o que é necessário para eliminar barreiras que possam impedir a aprendizagem de qualquer estudante. E como, ao diversificar as estratégias, ele pode beneficiar toda a turma, que tem a oportunidade de compreender os conceitos estudados não apenas por meio de uma exposição oral. 

Maria da Paz de Castro Nunes Pereira, a Gunga, especialista em educação inclusiva e também selecionadora do Prêmio Educador Nota 10, concorda e reforça que o projeto é inclusivo porque prioriza a inclusão independentemente se há ou não alunos com deficiência na turma. “É princípio da educação inclusiva construir propostas para todos os estudantes, e o professor Maurício fez isso ao criar um projeto com a intenção de que este fosse permanente. Com isso, ele considerou o mais importante, que é: a escola é para todos”, sustenta.  

Outro ponto que chama a atenção, de acordo com Gunga, é a maneira como os estudantes aprenderam no primeiro ano do projeto. “Ao optar por trabalhar com toda a turma, em vez de ensinar separadamente a aluna com deficiência, o professor não apenas promove o aprendizado dela, mas também incentiva o diálogo com os colegas, afinal, ninguém aprende sozinho. Ao envolver o grupo na construção do trabalho, todos se beneficiam dessa interação, permitindo que a aluna exerça seu direito de aprender junto com os outros, e não de forma isolada em aulas particulares, que é algo que empobrece o processo de aprendizagem de qualquer estudante com deficiência”, defende a especialista.  

Dicas e pontos de atenção para se inspirar no projeto 

Para Gunga e Ana Luiza, iniciativas como essa servem de inspiração para professores de todo o país, inclusive de outros componentes curriculares, especialmente pela simplicidade dos recursos utilizados, baixo custo dos materiais e experimentos de fácil reprodução. Mas o que deve ser considerado ao elaborar um projeto inclusivo que garanta a aprendizagem dos alunos?  

De acordo com Maurício, para elaborar um bom projeto é necessário, sobretudo, estar atento àquilo que os estudantes já sabem e ao que ainda precisam aprender, sejam eles alunos com ou sem deficiência. Essa percepção é fundamental para desenvolver uma iniciativa que elimine barreiras e inclua toda a turma, independentemente do contexto. “Se pergunte: essa ideia é acessível a todos? Se a resposta for positiva, certamente será um bom projeto”, sugere.

Já Gunga afirma que, para fazer um trabalho inclusivo, é essencial ouvir o que a turma tem a dizer. Como no exemplo citado por Maurício, em que sua aluna com deficiência apontou qual material era mais adequado para a proposta. “É preciso ter em mente que é o estudante que nos diz como ele aprende”, enfatiza.  

Ana Luiza, por sua vez, considera um ponto de atenção garantir, ao dividir a turma em grupos, cada qual desenvolvendo um tema, que os alunos aprendam com o trabalho dos colegas, ao mesmo tempo que reconhece que esse é o maior desafio ao realizar atividades no formato de seminário. Ainda assim, a educadora aponta algumas possibilidades.  

A primeira delas é pedir aos estudantes que registrem as apresentações para, posteriormente, avaliar o que a turma aprendeu. Outra sugestão é fazer um questionário com perguntas que envolvam todas as apresentações. Além disso, é possível optar por uma avaliação coletiva ao reunir os grupos em um momento de troca e propor que comentem sobre o que foi dito pelos colegas.  

“Outra estratégia que às vezes uso com os meus alunos é pedir que eles façam perguntas sobre os trabalhos. A partir disso, avalio o nível de aprendizagem. Por exemplo, se são perguntas que pedem para quem está apresentando repetir o que foi dito ou perguntas referentes a informações muito pontuais, isso nos diz uma coisa. Se são perguntas de maior complexidade ou de aprofundamento, nos diz outra coisa”, sugere. Mapear esses conhecimentos é importante para o professor saber o que precisa ser retomado nas aulas seguintes com toda a turma, antes de iniciar um novo conteúdo.  

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