Pai e filha: parceiros no esporte e na educação
O professor Edvaldo Souza dos Santos conta como a prática de atividade física, na rua e na escola, estimula sua filha, que usa cadeira de rodas, a fazer e ocupar o espaço que quiser
“Desde criança gosto de praticar atividades físicas e esportivas, não pela competição, mas pelo fato de poder me movimentar, participar de algo interessante e estar com outras pessoas.” Ter o esporte como um hobby foi o que levou Edvaldo Souza dos Santos a atuar como professor de educação física e personal training. Mais do que uma atividade profissional, esse interesse fortaleceu o vínculo com sua filha Sophia, de dez anos, e se tornou uma maneira de combater o capacitismo enfrentado por sua família.
Há cerca de três anos, pai e filha praticam diferentes atividades esportivas juntos, principalmente corrida de rua. Segundo ele, a rotina de exercícios permite que a menina vivencie experiências às quais toda criança deveria ter acesso, independentemente de ser ou não uma pessoa com deficiência. Aos quatro anos, Sophia recebeu o diagnóstico de uma doença rara, que afeta os membros inferiores e exige o uso de uma cadeira de rodas.
Nesse período, ele afirma que ele e sua mulher, Manoela Francisca da Silva, viveram uma fase de negação e medo. “A ansiedade é o que mais toma conta da gente e nos faz sofrer, em especial pensar que o futuro dela não seria como idealizamos inicialmente. Mas o tempo mostrou que precisamos viver um dia de cada vez. Ela está crescendo, tem amigos, brinca, chora e sorri. Tudo como pode e deve ser na vida de uma criança.”
O esporte no cotidiano da família
O interesse pela corrida de rua partiu da própria Sophia, que um dia pediu para acompanhar Edvaldo, mesmo sem saber, de fato, o que ele iria fazer. “Lembro que eu ia correr à beira da praia e ela quis ir junto. No começo, eu disse que não dava, mas ela insistiu. Pensei no que precisava fazer e a levei.” Nesse dia, ele mudou o trajeto inicial e fez uma corrida de cinco quilômetros na ciclofaixa, empurrando a cadeira. “Ela adorou sentir a brisa no rosto e passear pela cidade e pedia para eu correr o máximo possível”, conta.
A partir desse momento, Edvaldo começou a levar o esporte ainda mais a sério e buscou manter uma boa condição física para ter força suficiente para conduzir a filha. Ele geralmente realiza sozinho treinos de resistência nas ruas de São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo, onde a família mora. E, aos domingos, vai com Sophia até a Estrada Velha de Santos para o treino conjunto.
“Apesar de ela gostar de correr, os treinos mais puxados são demorados, então corremos juntos apenas uma vez por semana para nos prepararmos para as maratonas, meias-maratonas e demais competições das quais participamos.”
Edvaldo compartilha que ambos já participaram de dezenas de eventos, inclusive no exterior. Em corridas de curta distância, muitas vezes é sua mulher quem acompanha a filha. Os organizadores são sempre receptivos à presença deles nas competições. Contudo, ele ressalta que a falta de acessibilidade ainda é uma barreira a ser enfrentada.
“Em geral, corremos nas ruas de grandes cidades. E, muitas vezes, o trajeto é planejado sem levar em conta obstáculos que dificultam ou impedem o nosso deslocamento. Uma simples elevação no chão, uma calçada ou buracos podem nos atrapalhar. Certa vez, nos deparamos com trilhos de trem no caminho da prova. Tivemos de parar e levantar a cadeira para passar por aquele trecho antes de continuar.”
O que ajudou a dupla a melhorar a performance e ter mais conforto e segurança nas corridas foi trocar a cadeira de rodas social por um triciclo acessível. O equipamento foi doado por uma pessoa anônima, que conheceu a história dos dois nas redes sociais e quis apoiar a iniciativa.
O pai entende que todos esses cuidados, bem como os recursos de acessibilidade, incentivam os dois a continuar correndo. “Participar dos eventos é uma forma de viver a cidade. Quando estamos fazendo o trajeto, Sophia vê as placas, os prédios, as casas e as pessoas. Ela gosta de todo o ritual: retirar o kit de materiais da corrida no dia anterior ao evento, falar com outras pessoas e escolher as músicas que vamos ouvir no caminho.”
Além da influência do pai, Sophia tem contato com outros esportes por meio da sua rotina de fortalecimento muscular. Entre as atividades praticadas por ela estão a natação, o vôlei adaptado e o atletismo. “Apesar de ser importante por conta do tratamento, acredito que, se não houvesse essa necessidade, ela manteria o mesmo interesse, pois sabemos que o esporte é fundamental em nossas vidas”, afirma Edvaldo.
Outro esporte do qual ela participa é a paradança. Em 2024, Sophia foi campeã mirim nacional de dança em cadeira de rodas. “Ainda que ela tenha ganhado a competição, a prática não visa a busca por medalhas. O objetivo sempre é a diversão, o desenvolvimento e a troca com outras pessoas.”
Pai e filha juntos na escola
A trajetória escolar de Sophia começou aos quatro anos, na pré-escola. Neste ano, ela está matriculada no 5º ano do Ensino Fundamental na Escola Municipal de Educação Básica (Emeb) Professor Cassiano Faria e terá o pai mais uma vez próximo em sua rotina. Isso porque Edvaldo é professor de educação física na mesma unidade e, pelo segundo ano, tem a filha como uma de suas alunas.
Devido à sua atuação como docente, Edvaldo tem uma visão crítica sobre os desafios que o sistema educacional precisa superar para garantir uma educação inclusiva.
Ele se orgulha de Sophia ter sempre frequentado uma escola comum e estar em sala como qualquer outra criança, aprendendo e participando ativamente das atividades. Essa realidade não quer dizer que não existas ou não existiram desafios. Uma das barreiras enfrentadas foi a acessibilidade física da escola. “Em um dos espaços para apresentação dos alunos, não havia rampa. Sua construção foi uma das primeiras reivindicações que minha esposa e eu fizemos. Outra solicitação foi para tornar o banheiro acessível. Ele até existia, mas estava em más condições.”
O fato de Edvaldo ministrar aulas para Sophia não foi por acaso. O professor fez questão de ser o responsável por essa disciplina na turma dela, pois sabia que as crianças com deficiência ou dificuldade de mobilidade nem sempre eram contempladas nas aulas. “Ficava incomodado com aquilo. Não só pelo fato de ela ser minha filha, mas porque é nossa responsabilidade como educadores trabalhar em prol do desenvolvimento das potencialidades de cada estudante. Trabalho com outros alunos com deficiência e, ao planejar as aulas, sempre busco garantir a participação de todos.”
Ao comentar sobre seu trabalho, Edvaldo conta que desenvolve atividades em espaços abertos, como a quadra e o pátio, buscando abordar diferentes jogos e brincadeiras de estafeta, que são aquelas nas quais as crianças se revezam para realizar determinados percursos. “As atividades são sempre planejadas para que todos participem. No pega-pega, por exemplo, eu vou com a Sophia empurrando a cadeira. Quando tenho outros estudantes que têm dificuldade na interação, caso de alguns com transtorno do espectro do autismo (TEA), seguro a mão deles e vamos correndo até se sentirem à vontade e entenderem a dinâmica.”
Segundo ele, ter uma filha com deficiência favorece também o seu vínculo com as famílias dos demais estudantes com deficiência. O primeiro passo, enfatiza, é conhecer cada criança e conversar com os responsáveis. Esse diálogo constante o aproxima deles. Ao compartilhar sua história, eles passam a saber que Edvaldo também tem uma filha com deficiência.
“Quando mantenho essa relação, consigo ter uma ideia do que a criança gosta e de quais caminhos são possíveis seguir. Muitos pensam que a deficiência define quem é a pessoa, mas não é isso. Cada ser humano é único. Então preciso conhecer aquela pessoa para ajudá-la a aprender”, diz.
O combate ao capacitismo
A rotina de treinos, corridas e um pouco do cotidiano de Edvaldo e Sophia são compartilhados nas redes sociais de cada um. Segundo o pai, isso começou com o intuito de dividir com amigos e conhecidos os momentos vividos pela família. Mas aos poucos as postagens ganharam grande alcance. Somente no Instagram, somando os dois perfis, eles têm cerca de cem mil seguidores.
Embora tenha iniciado o uso das redes por outro motivo, Edvaldo considera que hoje ambos conseguem mostrar o potencial da pessoa com deficiência e combater o capacitismo. “Não nos colocamos no lugar de vencedores ou algo parecido pelo fato de ela ser uma pessoa com deficiência. Sophia pode e faz tudo isso porque as pessoas ao redor reconhecem a capacidade e o direito dela.”
Ele se recorda que em muitos momentos a filha perguntou sobre o motivo pelo qual as pessoas olhavam para ela a todo o instante. “Eu sabia que a causa estava no fato de ela estar em uma cadeira de rodas. Isso aconteceu em diferentes lugares. Quando mais nova, eu dizia que era por conta da beleza dela, mas hoje já conversamos e ela sabe o motivo.”
Outra razão que o incomoda é receber rótulos por simplesmente ser um pai presente na vida da filha, ainda mais por ela ser uma criança com deficiência. “Confesso que fico mal ao saber que algumas pessoas começaram a me adjetivar de superpai. Quando isso ocorre, sempre respondo que sou apenas um pai. É triste as pessoas acharem que eu sou isso. Mas o fato de os outros [pais] não estarem presentes faz com que eu pareça diferente, melhor”, desabafa Edvaldo, contando que é a mãe quem acompanha a filha na fisioterapia e em outros momentos do cotidiano semanal.
Nas publicações, eles também compartilham outras atividades das quais Sophia participa com o apoio do pai, como jogar taco, brincar no escorregador inflável e descer no tobogã de uma piscina. “Eu, como pai, sinto satisfação ao ver a alegria e o sorriso da minha filha quando ela vive esses momentos. Sei que ela está desenvolvendo seu potencial no esporte e na escola, além de construir memórias por conta dessas vivências.”
Segundo o professor de educação física, compartilhar essas histórias — a mãe também está nas redes sociais — ajuda outras famílias a entenderem a importância de as crianças vivenciarem diferentes experiências e serem estimuladas a explorar suas habilidades e gostos. “Percebemos isso com as mensagens que recebemos de outros pais e mães que relatam se inspirar em nós. Entendo que a família precisa de apoio tanto quanto a criança. São muitos os desafios a serem enfrentados, e só aqueles que estão ao lado, lutando por elas, sabem o quanto é desgastante. Temos de nos ajudar e pensar na criança, pois, no final, é ela quem ganha ou perde.”
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