Aproveite os jogos para diversificar as estratégias de alfabetização

Quando planejados, esses recursos desafiam e engajam os alunos a ampliar os conhecimentos sobre oralidade, escrita e leitura

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A alfabetização é um processo desafiador tanto para as crianças, que precisam construir e desenvolver habilidades de leitura e escrita, quanto para os professores, que devem adotar estratégias diversificadas e significativas para atender às necessidades de cada estudante. Os jogos podem desempenhar um papel fundamental nesse contexto, tornando a aprendizagem mais lúdica, desafiadora, envolvente e interativa. Quando usados com intencionalidade pedagógica, eles estimulam a criatividade, a imaginação, a concentração e o raciocínio lógico. 

Durante o processo de alfabetização, se bem planejados, os jogos podem levar a turma a refletir sobre a oralidade, a escrita e a leitura, a partir do uso de palavras e textos que estão presentes nos mais diversos contextos sociais. Podem, por exemplo, despertar a curiosidade do estudante sobre a correspondência sonora de letras e sílabas, o uso de vogais e consoantes e a posição na qual elas aparecem em nomes próprios, de animais ou de objetos presentes no cotidiano.  

Ao observar a turma jogando, o professor tem mais elementos para identificar os conhecimentos prévios dos estudantes e o que eles ainda precisam aprender. Com essas informações, durante e após o jogo, é possível fazer intervenções mais eficazes, que os ajudem a avançar na formação das palavras, na composição das sílabas e na relação fonema-grafema, entre outros aspectos essenciais para a alfabetização.

“Essas atividades contribuem para o desenvolvimento da autonomia intelectual, pois estimulam o estudante a pensar por si mesmo, articulando diferentes pontos de vista, elaborando estratégias e interpretando as jogadas dos colegas, por exemplo. Elas também favorecem a autonomia moral, ao incentivar o cumprimento e a avaliação das regras, e promovem a cooperação entre os pares, o que é um aspecto essencial para a dinâmica do jogo”, explica Selene Coletti, professora há mais de 40 anos na rede pública, sendo dez deles dedicados à alfabetização, e atualmente gestora na Escola Municipal de Educação Básica (Emeb) Philomena Zupardo, em Itatiba (SP). Selene foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10 em 2016 e é colunista da Nova Escola.   

Uma estratégia para todos 

Outro aspecto positivo dos jogos é que eles têm, por si só, um caráter inclusivo, segundo Rosana Kelly Baldan, mestre em Educação Inclusiva pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em educação e saúde na infância e adolescência pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). De acordo com ela, essa é uma valiosa opção, sobretudo quando comparada às “metodologias tradicionais, que têm se mostrado insuficientes para atender todos os perfis de estudantes”. 

A especialista ressalta que os jogos fazem parte das metodologias ativas. Ao adotá-los na sua rotina de trabalho, o professor coloca o estudante no centro do processo, assegurando a ele vez e voz. “A inclusão já acontece nesse momento, pois, por meio deles, é possível estimular o engajamento, a experimentação e múltiplas formas de aprendizado — o que dialoga diretamente com o conceito do desenho universal para a aprendizagem (DUA), que tem como premissa a variedade de estratégias para atender as diferentes maneiras e ritmos de aprendizagem”, salienta.  

Por todos esses argumentos, Rosana defende que o uso de jogos para a alfabetização é uma estratégia eficaz, pois transforma o ensino em uma experiência acessível, permitindo que os alunos se sintam parte do processo. “Eles entram em contato com letras, números, seriação e formação de palavras de maneira lúdica, percebendo que podem acessar o conteúdo de diferentes formas, respeitando seus próprios ritmos e estilos de aprendizagem”, frisa.  

Ludicidade a favor da aprendizagem 

Para que colaborem com a aprendizagem dos estudantes, os jogos precisam ser utilizados com intencionalidade pedagógica. “Muitos profissionais ainda veem os jogos como um passatempo: ‘Está chovendo? Vamos dar um joguinho para a turma. Vieram poucos alunos? Vamos jogar’, o que é um equívoco, pois a prática nos mostra que eles podem ser aliados não só na alfabetização como em todas as etapas e disciplinas”, afirma Selene. 

A educadora enfatiza que o trabalho com jogos pode ser realizado com estudantes que estão em todos os níveis de escrita. Ela menciona, como exemplo, jogos de memória, bingo de nomes e forca, entre outras possibilidades. Contudo, pondera que o professor precisa saber quais objetivos de aprendizagem quer alcançar para, inclusive, escolher os jogos de acordo com as necessidades da turma, considerando as especificidades de cada um.  

“Também é importante conhecer a dinâmica e as regras de cada jogo para, a partir disso, elaborar previamente as perguntas que serão feitas aos alunos. Enquanto a turma joga, é preciso observar atentamente como eles interagem durante a atividade, quais hipóteses revelam sobre o tema em estudo quando enfrentam uma situação problema, quais dúvidas compartilham com os amigos e de quais estratégias de resolução eles lançam mão. Esses são insumos valiosos para o professor registrar e intervir quando necessário. É essa clareza na intenção que promove a aprendizagem dos estudantes”, explica Selene. 

O diferencial, reforça Selene, está na qualidade da intervenção que o docente faz durante cada jogo, que pode ser direcionada a cada estudante conforme a hipótese de escrita em que ele se encontra, sempre buscando desafiá-lo. Muitas vezes é possível iniciar a discussão com uma pergunta para um aluno que tem uma escrita pré-silábica. E, ao ouvir sua resposta, solicitar que um colega que está no nível silábico sem correspondência sonora comente. Esse movimento estimula a reflexão coletiva e contribui para que todos possam avançar. 

Rosana concorda e acrescenta que o principal desafio do professor é justamente fazer um bom planejamento. “É fundamental alinhar o uso dos jogos aos objetivos de aprendizagem. Não é ‘jogar por jogar’. O professor deve se perguntar: quais são os meus objetivos de aprendizagem hoje? Ao final dessa atividade, onde quero que meus alunos cheguem? E esse alcance deve estar diretamente relacionado à alfabetização”, reforça. 

Para elas, a intencionalidade também é crucial para que os jogos não se restrinjam ao lúdico. O ideal é que tanto o professor quanto a turma compreendam que as brincadeiras estão associadas ao desenvolvimento de algumas habilidades. “A partir do momento em que trabalham com os jogos, os estudantes já estão exercitando a participação e o pensamento crítico. Eles estão vendo, criando hipóteses e percebendo que podem errar, entender o motivo do erro e descobrir como corrigi-lo. Se a atividade for em grupo, também desenvolverão a cooperação”, destaca Rosana. 

Outro aspecto que não pode ficar de fora é a reflexão sobre a experiência. Selene afirma que o professor deve planejar momentos em que os estudantes possam discutir o jogo coletivamente, compartilhando desafios e descobertas. “É essencial que eles expressem suas percepções, falem sobre as dificuldades encontradas e discutam diferentes estratégias”, diz a educadora. 

Da teoria para a prática 

Esses desafios foram vivenciados por três professoras da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Hilário Feijó, em Alvorada (RS), na região metropolitana de Porto Alegre. Elas decidiram usar jogos para tornar o processo de alfabetização de uma turma de 1º ano mais inclusivo, levando em consideração as especificidades de todos os estudantes, inclusive aqueles com deficiência. Um dos principais objetivos da estratégia adotada foi desenvolver a autonomia de um garoto com baixa visão e a interação entre todos da sala.   

Thereza Duarte, professora regente, Ivanete Oliveira, professora do atendimento educacional especializado (AEE), e Gisele Schroder, então orientadora e supervisora da escola, se reuniram diversas vezes para planejar atividades que envolvessem toda a turma e escolheram três jogos o dado das vogais, a sacola das letras e o jogo da memória do alfabeto e imagens. Assim surgiu o projeto “Alfabetizando os Sentidos”, construído durante a formação do “Alavancas para a educação inclusiva de qualidade”, uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (leia mais sobre a iniciativa no final deste texto).   

“Escolhemos essa estratégia pedagógica porque nossa escola já incentiva bastante o uso de jogos e porque eles promovem muita interação entre as crianças. Sabíamos que essa seria uma forma divertida de ensinar os alunos que estavam iniciando sua trajetória no Ensino Fundamental, já que, nessa etapa, o tempo de concentração é menor do que o das turmas mais velhas”, explica Gisele Schroder, que liderou o projeto. 

Na primeira atividade, as educadoras apresentaram à turma o dado das vogais. Nela, os alunos se sentavam em roda, e cada um jogava o dado e dizia se aquela vogal estava ou não presente em seu nome. Para isso, utilizavam como apoio fichas com seus nomes escritos. Caso estivesse, o estudante devia indicar quantas vezes a letra aparecia para, em seguida, escrever o seu nome na lousa para que toda a turma pudesse acompanhar. Depois, eles foram convidados a fazer o mesmo processo com os nomes dos colegas.  

O segundo jogo realizado foi a sacola das letras. Com a turma distribuída pela sala, os alunos tiveram seus olhos vendados para tirar da sacola uma letra. Por meio do toque, eles tentavam descobrir, tateando seu formato, qual letra haviam sorteado. Em seguida, tinham de falar uma palavra que iniciava com aquela letra. Um banco de palavras foi elaborado durante essa atividade. [Cabe destacar que o objetivo das educadoras não era o de simular a experiência da deficiência, o que não é recomendado.] 

Para o jogo da memória com o alfabeto e imagens, que tinha letras em relevo e imagens em contraste, as professoras providenciaram materiais ampliados. Eles foram colocados no chão, de modo que os estudantes ficassem em volta formando um círculo. Um aluno era escolhido para iniciar e, após a sua tentativa de encontrar o par correspondente, escolhia outra criança para continuar a brincadeira, e assim por diante. Cada um foi desafiado a relacionar uma letra com uma figura, considerando a letra utilizada no início da palavra relativa à imagem. Por exemplo: a letra “m” com a figura de uma maçã. De acordo com Gisele, todos participaram e respeitaram a sua vez, dando a oportunidade de cada colega fazer sua tentativa.  

“Sabíamos que, com os jogos, a participação de todos seria mais efetiva do que em uma atividade apenas no papel, sem interação. E não deu outra: a turma se engajou e se divertiu. Outro aspecto importante foi que as brincadeiras estimularam discussões e questionamentos, permitindo que os alunos se ajudassem mutuamente. Aqueles com mais facilidade colaboravam com os colegas que tinham mais dificuldade, e a dúvida de um muitas vezes era a de outro. Foi um ótimo jeito de aprender brincando”, lembra. 

Jogos que engajam 

Os jogos também foram a estratégia adotada pelas professoras do Centro Educacional Professor Antonio Barbosa Braga (Cepabb), em Irauçuba (CE), a 150 quilômetros de Fortaleza, para trabalhar a alfabetização com duas turmas de 1º ano e promover a inclusão dos recém-chegados ao Ensino Fundamental.   

Ao lado das professoras regentes Ana Maria Almeida Braga e Carlilce de Sousa Bastos, a professora do AEE Antônia Maria Almeida Braga teve a ideia de criar a trilha do alfabeto para estimular a leitura e a escrita. Com o jogo de percurso montado no chão para que todos tivessem acesso, o estudante precisava jogar um dado, andar o número de casas correspondente e, de acordo com a letra indicada na trilha, falar o nome de um animal ou de um objeto que começava com a mesma letra.  

“Se a letra fosse ‘t’, por exemplo, ela dizia o nome de um animal que começasse com essa letra. Dessa forma, o jogo trabalhou a identificação e o som das letras e a ordem alfabética”, explica Antônia.  

A ação faz parte do projeto “Alfabetização e Inclusão – Um processo de Letramento”, também elaborado durante a formação do Alavancas. Ao todo, 40 estudantes participaram, sete deles com transtorno do espectro do autismo (TEA). “Todos interagiram, o que nos chamou a atenção, especialmente porque alunos com autismo, que muitas vezes evitavam esse tipo de atividade em grupo, se envolveram. Foi um momento de grande engajamento”, diz a professora.

Dicas para usar jogos no processo de alfabetização. 

  1. Acredite no potencial dos jogos – “No contexto da educação inclusiva, os jogos são uma excelente estratégia para criar um ambiente de aprendizado flexível e acessível, garantindo que todos os estudantes possam aprender de acordo com suas necessidades e potencialidades. Eles não devem ser vistos apenas como atividades recreativas, mas sim como ferramentas que podem ativar processos cognitivos e tornar o aprendizado mais significativo”, afirma Rosana.
  2. Estude essa estratégia pedagógica – Antes de escolher um jogo para trabalhar é importante que o professor avalie se ele é uma boa estratégia de aprendizagem. Buscar conhecer diferentes alternativas, lendo sobre as dinâmicas e as regras de cada jogo, é fundamental. Esse conhecimento prévio auxilia na escolha mais assertiva do jogo que melhor atenderá a turma.
  3. Certifique-se de que são acessíveis – É fundamental considerar a acessibilidade. “Se optar por um jogo pronto, o professor deve verificar se ele é completamente acessível [e quais são as barreiras presentes que podem dificultar a participação dos estudantes]. Caso não seja, uma sugestão é avaliar se ele mesmo pode construir o que está faltando, pedir apoio ao professor do atendimento educacional especializado (AEE) ou verificar qual material é necessário para garantir que todos tenham acesso. Se essas alternativas não forem suficientes, o ideal é partir para um plano B. “Se impede a plena participação de um estudante, esse jogo não é bom”, ressalta Rosana.
  4. Ofereça múltiplas formas de interação – Os jogos devem permitir diferentes formas de participação. Algumas crianças não registram por escrito, mas conseguem expressar-se oralmente. Outras podem demonstrar compreensão por meio de gestos ou ações. É essencial garantir que todas essas maneiras de interação possam ser avaliadas. Para isso, é importante diversificar alternativas que possibilitem a expressão do aprendizado.
  5. Converse com a turma – Os professores precisam dialogar com os estudantes sobre o uso dos jogos e suas finalidades. Independentemente da idade, eles gostam de entender por que determinadas estratégias são propostas. Segundo Rosana, esse tipo de discussão ajuda a fortalecer uma cultura de respeito, empatia e compreensão, fugindo do modelo tradicional de ensino bancário descrito por Paulo Freire.
  6. Insira os jogos na rotina – Os jogos devem fazer parte do cotidiano da sala de aula. O professor pode introduzi-los inicialmente uma vez por semana, sempre com um foco pedagógico bem definido, conforme sugere Selene. É importante que os jogos estejam disponíveis nas prateleiras da sala de aula para que as crianças possam utilizá-los em momentos livres.
  7. Valorize as diferentes estratégias – Cada estudante aprende de uma maneira diferente. É essencial permitir que um aluno auxilie o outro, favorecendo o apoio mútuo. Os jogos não devem ser apenas uma brincadeira, mas uma ferramenta incorporada ao processo pedagógico. Quando bem estruturados, eles podem desenvolver a autonomia dos estudantes a ponto de eles mesmos criarem seus jogos, regras e estratégias, trocando experiências entre si. Esse protagonismo é um dos grandes ganhos da inserção da ludicidade na aprendizagem.
  8. Registre o processo – A observação e o registro são fundamentais para que o professor acompanhe o desenvolvimento dos estudantes e faça as intervenções necessárias. Fotografar, filmar ou fazer anotações são formas de documentar o progresso e refletir sobre o que a turma aprendeu, o que deu certo e o que pode ser aperfeiçoado no planejamento pedagógico e na sua execução.

Saiba mais: 

+ Como enfrentar as barreiras na alfabetização 

Alavancas para a educação inclusiva de qualidade   

O projeto “Alavancas para a educação inclusiva de qualidade” é uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Movimento Bem Maior, o Instituto Ambikira e o Instituto Machado Meyer, e visa a formação de educadores, gestores escolares e técnicos de secretarias municipais de Educação de todo o país. O objetivo é potencializar práticas e políticas públicas locais que proporcionem uma educação de qualidade para todas e todos.    

Dividido em diferentes etapas, que vão de 2023 a 2025, o programa é realizado em parceria com dez secretarias municipais de Educação, que representam as cinco macrorregiões do Brasil: Maués (AM), Óbidos (PA), Campo Formoso (BA), Gado Bravo (PB), Irauçuba (CE), Lucas do Rio Verde (MT), Cajati (SP), Patos de Minas (SP), Alvorada (RS) e Canguçu (RS).      

Em 2023, a equipe do IRM conduziu uma formação semipresencial com cerca de 400 educadores desses municípios, que incluiu orientação e apoio para a elaboração e o desenvolvimento de cem projetos inclusivos, com foco na promoção do protagonismo e da autonomia de todos os estudantes.   

No ano passado, as ações formativas do projeto Alavancas tiveram como público-alvo técnicos das secretarias municipais de Educação. O objetivo era que, ao final do percurso, cada rede elaborasse uma política pública voltada à educação inclusiva.  

Em 2025, está previsto o monitoramento das políticas elaboradas neste ano e uma pesquisa sobre os impactos gerados pelas formações, além de dois cursos que serão disponibilizados na plataforma de formação do IRM. 

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