“Estou aqui porque acreditaram em mim”, diz aluno com deficiência aprovado na UFSCar
Calouro de Ciências Sociais, Guilherme relembra trajetória na rede pública de São Paulo até chegar ao Ensino Superior e destaca o apoio da família e de professora do AEE

O interesse por pautas políticas e sociais surgiu cedo na vida de Guilherme Isaque de Sousa Ferreira. Ainda no Ensino Fundamental, suas vivências como menino negro com paralisia cerebral o levaram a desenvolver um olhar crítico sobre os desafios, os direitos e as conquistas das pessoas com deficiência. No Ensino Médio, ao conhecer o curso de ciências sociais em uma aula de sociologia, ele não teve dúvidas: era esse o caminho que queria seguir no Ensino Superior. “Desde pequeno tenho um espírito ativista e percebi que ter essa formação poderia me ajudar a fazer a diferença na realidade de outras pessoas com deficiência”, conta o jovem de 18 anos.
No ano passado, ele fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e, após dois meses de espera, a confirmação da notícia mais aguardada chegou em janeiro: Guilherme não só garantiu uma vaga no curso que desejava como passou em 2º lugar para ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior de São Paulo, pelo sistema de cotas previsto na Lei nº 12.711/2012. “Foi uma emoção muito grande. Eu não tinha conseguido dormir de tanta ansiedade e, quando vi o resultado, não acreditei, pensei que fosse fake news. Fiquei tão feliz que não consegui dormir de novo”, diz.
O caminho até essa conquista, no entanto, não foi simples. “Quando Guilherme Isaque nasceu, fizemos vários exames, e a médica nos disse: ‘Ele tem paralisia cerebral, mas apenas a parte motora foi afetada, então a gente não sabe se um dia ele terá autonomia, se vai andar ou ficar na cadeira de rodas. O que sabemos é que ele é uma pessoa com deficiência”, conta Zilmar Lima de Sousa Ferreira, mãe de Guilherme.
No mesmo dia, ela ouviu que o filho poderia frequentar a escola regular ou uma instituição para pessoas com deficiência, se a família achasse melhor. Mas a segunda sugestão nunca foi uma opção. “Meu marido e eu conversamos e chegamos à conclusão de que Guilherme perderia muita coisa se estudasse apartado do convívio com outras crianças, porque aprenderia apenas de um jeito. E nós sempre acreditamos que nosso filho conseguiria muito mais”, reforça.
Após tentar matricular o filho na creche e receber uma negativa, Zilmar, que trabalha como empregada doméstica, se informou sobre os direitos das pessoas com deficiência e, com o passar dos anos, acionou a Secretaria Municipal de Educação (SME) e a Defensoria Pública para fazer valer o direito do filho à educação sempre que este lhe fosse, de alguma maneira, negado — o que é crime.

A trajetória na Educação Básica
Do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, Guilherme estudou em duas escolas das redes municipal e estadual, em São Paulo (SP), e frequentou o Centro da Criança e do Adolescente (CCA), que oferece atividades extracurriculares a crianças e adolescentes em vulnerabilidade social matriculados na rede pública. Paralelamente a isso, fazia tratamentos, como fisioterapia e fonoaudiologia, na Assistência à Criança Deficiente (AACD).
Desafios relacionados principalmente à falta de acessibilidade e ao capacitismo fizeram parte de toda a sua trajetória escolar. “O começo foi muito difícil porque não tive muito apoio na escola. Hoje em dia não preciso de nenhum recurso para andar, mas quando era pequeno usava cadeira de rodas, depois passei a usar andador e, por último, muletas, e as coisas não eram muito acessíveis. Antigamente eu precisava, por exemplo, de uma mesa e de uma cadeira específicas, que consegui porque minha mãe sempre lutou pelos meus direitos e por tudo que era importante para o meu aprendizado”, conta.
O cenário melhorou no 5º ano, quando a professora Amanda Santana chegou para atuar no atendimento educacional especializado (AEE) da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Espaço de Bitita, na região central da capital paulista — onde Guilherme estudou do 1º ao 9º e frequentou o AEE por três anos, até não mais ser necessário. A educadora foi fundamental para o desenvolvimento do garoto e se tornou uma aliada da família na garantia da inclusão escolar.
“Amanda é uma pessoa muito importante na minha vida porque acreditou em mim, me incentivou e me ajudou muito, principalmente na parte emocional, com minhas inseguranças e frustrações. Ela sempre deixou claro que não seria fácil e eu teria que me dedicar bastante para alcançar o que queria. Na aprendizagem, eu não tinha muita dificuldade porque, apesar de ter paralisia cerebral, isso não afetou a minha intelectualidade. Ela me motivou a sonhar alto, e essa é uma das coisas que me fizeram estar onde estou hoje”, ressalta o garoto.
Amanda lembra de quando chegou à escola, em 2017, e conheceu Guilherme, que estava com dez anos e usava um andador para se locomover. “Ele foi um dos meus primeiros alunos como professora de AEE, e uma das minhas tarefas era conhecê-lo e entender quais eram as suas necessidades. Fui observando-o no dia a dia, na sala de aula e fora dela, pois a ideia era identificar quais apoios e recursos eram necessários naquele momento”, conta ela, que é formada em pedagogia, mestre e doutoranda pela UFSCar, especializada em Educação Especial com ênfase em altas habilidades e superdotação.
Desafios e eliminação de barreiras
A educadora destaca que o estudante acompanhava os conteúdos da sala de aula com certa facilidade e que a professora regente, com quem ela tinha uma boa interlocução, o avaliava de maneiras diversas. O período mais desafiador veio com a transição para os anos finais do Ensino Fundamental, quando Guilherme passou a ter professores diferentes para cada componente curricular.
“Passamos a enfrentar dificuldades em relação à escrita dele, que era desafiadora por conta da motricidade comprometida, e foi preciso traçar um caminho junto com todos os professores, fazendo alguns combinados sobre as produções textuais. Mais adiante, disponibilizamos um notebook para que ele pudesse digitar seus trabalhos. Isso facilitou bastante para Guilherme, inclusive melhorando o tempo de resposta, pois a sua escrita era algo que demandava muito”, explica Amanda.
A atuação de Amanda não se limitava à rotina pedagógica do AEE. Na época, além de promover momentos formativos com os demais professores sobre a Educação Especial na perspectiva inclusiva — o que faz até hoje —, ela liderava um grupo de conversa com estudantes para discutir o que era ser uma pessoa com deficiência, quais suas necessidades e como identificar e eliminar barreiras, principalmente atitudinais. De acordo com a educadora, em muitos momentos, foi preciso parar para conversar com Guilherme, com honestidade, sobre o capacitismo presente no cotidiano escolar, que também prejudicava outros estudantes com deficiência.
“A gente conversava bastante sobre esse estigma que ainda paira na sociedade, de que pessoas com deficiência são incapazes, e eu sempre disse que ele podia fazer tudo o que quisesse. Guilherme sempre foi um menino muito esforçado, e me lembro de várias situações em que ele se impunha para realizar o que desejava. Isso tem muita relação com a família”, comenta.
Amanda enfatiza que, no trabalho de AEE, a parceria com a família é essencial para o desenvolvimento do estudante com deficiência. “Eu sempre tive uma proximidade muito grande com Zilmar. A família sempre foi uma aliada da escola no processo de empoderamento do Guilherme, que, de fato, é um garoto empoderado, tem noção sobre a sua deficiência, entende o seu lugar e principalmente sabe que não é uma pessoa incapaz de absolutamente nada.”
Ela conta que um dos momentos mais marcantes com Guilherme foi em uma festa de Dia das Crianças da escola, que costumava alugar brinquedos infláveis para celebrar a data. “Guilherme gostava de jogar futebol de sabão, mas naquele ano ele estava gripado e a única coisa que restava era um brinquedo que era alto e precisava de força para escalar. Ele ficou chateado porque não conseguia subir. Eu falei: ‘Vamos juntos! Eu vou subir com você’. Coloquei ele nas minhas costas e reforcei: ‘Se segura que a gente vai subir’. Subimos e ele brincou. O ideal seria que o brinquedo fosse acessível a todas as crianças, mas, naquele momento, carregá-lo foi a solução para que ele também pudesse brincar. Essa história resume o meu papel enquanto professora do AEE, que é eliminar as barreiras que existem e possibilitar às pessoas com deficiência o mesmo acesso que as demais. Esse é o princípio do direito à inclusão”, enfatiza.

Chegada à universidade
Com a aprovação na UFSCar, Guilherme se mudou de São Paulo para São Carlos, a 231 quilômetros da capital, com a mãe e o pai. As aulas começaram na semana passada e, em meio à nova etapa, as expectativas são as melhores. Ele diz que algumas coisas referentes à acessibilidade o preocupam, como o momento das refeições, uma vez que precisa de apoio para se servir e levar a bandeja até a mesa, mas que está confiante de que tudo dará certo, uma vez que a universidade já sinalizou que irá solucionar a questão.
Sobre a vida acadêmica, Guilherme adianta que se dedicará a pesquisar sobre a presença e a permanência de pessoas com deficiência no Ensino Superior e na produção de conhecimento por meio da pesquisa acadêmica. Inclusive, já sonha em fazer um intercâmbio de pesquisa fora do país.
Na última semana, Zilmar falou com a reportagem diretamente do campus da UFSCar. “Estando aqui, na universidade, passa um filme na minha cabeça. É muito gratificante ver meu filho fazendo faculdade, ver aonde chegamos depois de tantas lutas, de tantos ‘nãos’, desde a creche que negou a presença dele por ser PcD (Pessoa com Deficiência). Na ocasião, eu disse: ‘Meu filho vai estudar aqui, sim’, e assim foi, e assim tem sido. É uma emoção muito grande”, diz.
Ver seu ex-aluno chegar ao Ensino Superior também é um momento emocionante para Amanda. Ela diz que, ao perseguir seus sonhos, Guilherme escancara portas para quem virá depois dele. “Ele vira notícia porque o acesso de pessoas com deficiência nas universidades ainda não é comum no nosso país, é um outro grande desafio. Ter convivido com Guilherme Isaque e vê-lo chegar aonde quis estar — porque não é apenas chegar à universidade, é chegar aonde ele quis estar — é motivo de muito orgulho”, frisa.
“Quando olho para trás, gosto de pensar que estou servindo o menino que eu fui, servindo a família que tive e as pessoas que acreditaram em mim. Não sou um herói e nada disso é um milagre, como algumas pessoas gostam de dizer. Eu me dediquei e me esforcei para estar aqui”, diz Guilherme. Ele, no entanto, lamenta que a sua conquista ainda faça parte de uma realidade para poucos no Brasil. “Sou PcD, negro e pobre entrando na universidade e, infelizmente, ‘a exceção’ sem querer ser exceção. Mas se eu puder dar um conselho para outras pessoas com deficiência que desejam trilhar esse caminho é: vai ser difícil, sim, porque nada para nós é fácil, mas levante a cabeça e descubra a sua própria força. Tente.”
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