Chegada à universidade: estudantes com deficiência apontam avanços e desafios
Matrículas no Ensino Superior triplicam na última década, mas acesso continua restrito. Alunos e especialistas cobram mais ações de acessibilidade e formação docente para enfrentar barreiras existentes

“A decisão de cursar o Ensino Superior nunca foi uma dúvida para mim. Mas, por muito tempo, pareceu um sonho distante. Não porque me faltasse desejo, mas porque os caminhos até lá pareciam sempre mais difíceis”, afirma Neyara Rebeca Barroso Lima, pessoa com deficiência visual e com transtorno do espectro do autismo (TEA). Aos 35 anos de idade, ela é licenciada em Letras pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre e doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), professora de italiano e consultora em audiodescrição e acessibilidade.
Ela conta que, durante toda a sua trajetória escolar, houve muitos momentos de exaustão e solidão, mas que nada disso a fez desistir de estudar. “O que foi determinante para eu continuar foi a certeza de que a universidade também precisava me ouvir e que eu tinha o direito de ocupar esse espaço com a minha voz, com a minha experiência e com a minha forma única de ver e sentir o mundo”, conta a estudante, que é cega desde o nascimento.
Em 2012, um ano após o ingresso de Neyara à universidade, o Brasil tinha 26.483 estudantes com deficiência matriculados no Ensino Superior. Uma década depois, esse número mais que triplicou e chegou a 92.756 em 2023, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
É necessário comemorar esse crescimento nas matrículas, bem como as trajetórias escolares como a de Neyara, que mostram ser possível a entrada nesse nível de ensino. Mas elas representam uma minoria. Isso porque no Brasil o acesso ao Ensino Superior é permeado pela desigualdade. Segundo informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a Pnad Contínua, de 2022, entre a população com 25 anos ou mais, apenas 20,9% tinham nível superior. Quando o foco está nas pessoas com deficiência, o percentual é ainda menor: 7%.
Desafios começam na Educação Básica
Entre os brasileiros com 25 anos ou mais, apenas 25,6% das pessoas com deficiência concluíram o Ensino Médio em 2022, ou seja, uma a cada quatro. Em contrapartida, no universo das pessoas sem deficiência esse percentual mais que dobra: 57,3%, segundo a Pnad Contínua.
Esse cenário reflete um processo de afunilamento do quantitativo de matrículas de estudantes público-alvo da Educação Especial ao longo da Educação Básica, como mostra o infográfico a seguir, que traz os percentuais de alunos com deficiência dentro do universo total de matrículas em cada etapa.

Adriana Pagaime, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora na Fundação Carlos Chagas nas áreas de políticas de inclusão de pessoas com deficiência no Ensino Superior e mundo do trabalho, acessibilidade e capacitismo, observa que a queda no número de matrículas no decorrer das etapas da Educação Básica está ligada, principalmente, às barreiras impostas pela sociedade ao público-alvo da Educação Especial — a começar pelo capacitismo (leia mais sobre o conceito nesta reportagem).
De acordo com ela, a situação é ainda mais delicada no Ensino Médio. “Muitos estudantes são desestimulados a continuar os estudos no Ensino Superior por conta da crença de que, por terem uma deficiência, não vão conseguir entrar no mundo do trabalho e que, portanto, não precisam seguir com os estudos. Esse desestímulo, muitas vezes, não vem necessariamente de alguém, mas da própria organização da escola que faz com que o ambiente não seja, de fato, acolhedor e inclusivo”, observa.
Esse contexto foi vivenciado por João Avelino, que tem 30 anos e é uma pessoa com deficiência auditiva, durante o percurso na Educação Básica, na década de 2000, no oeste do Paraná, onde nasceu. “Eu sentia que não pertencia à escola. Aprender era bastante custoso para mim, e não havia, de fato, uma aposta no meu processo de aprendizagem”, conta. Apesar das barreiras, o desejo de cursar o Ensino Superior o acompanhou. “A decisão de continuar os estudos era uma oportunidade para alcançar melhores condições de vida e também um ato de resistência, uma vez que, como pessoa parda, surda, gay e empobrecida, venho de uma realidade de muita vulnerabilidade social”, ressalta.
Ao concluir o Ensino Médio, João prestou o vestibular e entrou na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) para cursar Engenharia de Produção, em 2012 — quatro anos após a criação do atendimento educacional especializado (AEE) por meio da implementação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), em 2008. “Acho que não tive qualquer acesso a um atendimento especializado durante a Educação Básica porque as perspectivas de uma educação inclusiva ainda não eram conhecidas”, diz. Atualmente, João é estudante de Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc), mestre em Psicologia Social pela mesma instituição, consultor e assessor de acessibilidade e inclusão.
Para Guilherme Isaque de Sousa Ferreira, jovem de 18 anos com paralisia cerebral, a história foi um pouco diferente. Aprovado neste ano em 2º lugar para o curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o garoto teve os anos de Educação Básica marcados pelo enfrentamento ao capacitismo, mas também pelo acesso à educação inclusiva, principalmente por meio do AEE — serviço que sequer existia na época de João —, com uma professora que acreditou em sua potência (leia o relato completo).
Além das políticas públicas direcionadas à educação inclusiva serem relativamente recentes e, portanto, ainda ser preciso avançar no processo efetivo de sua implementação, Adriana pontua que o acesso ao Ensino Superior para qualquer pessoa da população ainda é restrito. Apesar da criação de políticas públicas para a democratização desse acesso — como o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o Programa Universidade Para Todos (Prouni) e a Lei 13.409/2016, que inclui pessoas com deficiência no programa de cotas de instituições federais de educação superior —, esse nível de ensino continua elitizado, isto é, ele não é e nunca foi para todos. “O ingresso na universidade é um caminho mais distante para pessoas com deficiência do que para a maioria da população, pessoas sem deficiência, que são mais estimuladas a continuar os estudos”, ressalta.
Para ela, a falta de acesso à informação é uma das principais barreiras para que estudantes com deficiência possam cursar uma faculdade. “A política de cotas para a inclusão de estudantes com deficiência no Ensino Superior em âmbito federal é muito recente, de 2016, ou seja, tem menos de dez anos. Ainda há uma enorme falta de conhecimento sobre os direitos desses alunos e sobre como acessá-los”, explica.
Barreiras continuam no Ensino Superior
O processo de acessibilização das instituições de Ensino Superior é outro desafio, principalmente no que diz respeito à acessibilidade pedagógico-curricular. Essa é uma das avaliações de Ana Rebeca Medeiros, que também pesquisa a inclusão de estudantes com deficiência no Ensino Superior, em seu mestrado em Educação, na Universidade Federal do Ceará (UFC).
Exemplos disso são as barreiras arquitetônicas, comunicacionais e atitudinais — que validam o estigma de incapacidade e o preconceito —, além da falta de acessibilidade pedagógica, especialmente no que diz respeito à fundamentação curricular dos cursos, às metodologias de aula e à avaliação de conhecimentos assimilados pelos estudantes. “As pesquisas acadêmicas e a escuta aos estudantes revelam que, muitas vezes, eles são negligenciados em sala de aula, visto que os recursos empregados não favorecem a sua participação”, diz.
João passou por algumas situações desse tipo durante a graduação. “Já aconteceu, por exemplo, de um professor exibir um vídeo e, ao ser questionado se havia legenda, ele simplesmente responder que não. Então eu disse que sairia da sala porque aquela aula não era para mim”, lembra. Com Neyara não foi muito diferente. “A estrutura da universidade sempre foi desafiadora por ter muitas barreiras tecnológicas, falta de acessibilidade, seja estrutural, seja humana, em materiais e plataformas, e um desconhecimento geral sobre como lidar com uma aluna cega e, mais tarde, autista também”, acrescenta.
Ana Rebeca pondera que outro ponto delicado ao falar de estudantes com deficiência no Ensino Superior é a lacuna na formação de professores e servidores técnicos que, por vezes, relatam não saber como proceder no atendimento aos estudantes público-alvo da Educação Especial. “É perceptível que, em alguns momentos, a responsabilidade de promover uma prática acessível pedagogicamente é remanejada para os técnicos do núcleo de acessibilidade e para os bolsistas (monitores das disciplinas ou bolsistas de inclusão) da instituição, apontando uma postura mais omissa por parte do professor”, comenta.
Muitas vezes a situação é ainda pior e a responsabilidade pela acessibilidade das aulas recai para o próprio estudante, como o que foi vivido por João. “Alguns professores me pediram para fazer coisas que meus colegas não precisavam fazer, como gravar uma aula para ouvir em casa, com os recursos de acessibilidade que eu tinha disponíveis. São episódios em que colocam na conta da pessoa com deficiência a responsabilidade por sua participação em sociedade, o que eu rejeito”, diz.

Como ampliar a presença no Ensino Superior
“A presença de estudantes com deficiência nas universidades é um gesto político, um grito silencioso que diz: ‘Nós também pertencemos a esse lugar’. Não se trata apenas de garantir o direito ao estudo, mas de transformar os espaços de saber em ambientes verdadeiramente plurais. Cada vez que uma pessoa com deficiência entra em uma sala de aula universitária, ela leva consigo uma história de atravessamentos, de superações invisíveis e de conquistas que muitas vezes o sistema nem reconhece. Estar na universidade, para nós, não é apenas uma etapa acadêmica, é uma conquista social, afetiva, histórica”, reforça Neyara.
Para que a presença de pessoas com deficiência na universidade seja real, e não apenas simbólica, é fundamental garantir também condições de permanência. Neyara defende que é preciso romper com o modelo que valoriza apenas quem se encaixa em uma lógica produtivista, que não contempla outros ritmos, outras formas de aprender, de existir e de contribuir.
“A deficiência não é um entrave ao saber. Ao contrário: ela amplia as possibilidades do conhecimento, traz outras perguntas, outras formas de ver o mundo. Pessoas com deficiência têm muito a ensinar à universidade — sobre empatia, escuta, acessibilidade, humanidade. Mas para isso, precisam ser vistas não como exceções ou como ‘histórias de superação’, e sim como sujeitos plenos, com direito a apoio, estrutura e reconhecimento. A universidade que acolhe estudantes com deficiência não é apenas mais justa, mas mais rica, mais criativa e mais verdadeira”, sustenta.
Para João, que frequentemente participa de discussões sobre o tema, ainda há muito a ser feito. “Fico maravilhado ao ver pessoas com deficiência transitando na mesma universidade que eu e podendo se expressar. Ao mesmo tempo, sinto um certo desconforto ao pensar que essa universidade ainda não é plenamente acessível e em quantas violências podem estar sendo silenciadas, quais capacitismos internalizados continuam a ser reproduzidos. Como estudantes, precisamos refletir e compartilhar experiências. Não há como falar sobre deficiência na universidade sem reconectar essa vivência à nossa história, à nossa família e às pessoas com quem convivemos. Sem esse espaço de mediação e troca, acabamos, de certa forma, aprisionados.”
Ana Rebeca acrescenta que o investimento na formação dos profissionais da educação é outro ponto crucial para mudar o atual cenário, pois pode trazer impactos significativos para a inclusão, uma vez que influencia diretamente a acessibilidade, a permanência e o sucesso acadêmico dos estudantes com deficiência. Alguns caminhos para isso são a promoção de momentos formativos contínuos com o oferecimento de cursos, oficinas e treinamentos regulares, a inserção de temas relacionados à educação inclusiva nos cursos de licenciatura e formação pedagógica, e o fortalecimento dos Núcleos de Acessibilidade — criados a partir de 2005 por meio do Programa Incluir —, proporcionando a expansão e consolidação da oferta de suporte técnico e pedagógico nas universidades.
Na mesma linha, Adriana defende a formação continuada de educadores desde a Educação Básica para que eles possam compreender os paradigmas historicamente relacionados às pessoas com deficiência e adotar práticas mais inclusivas. “A concepção do modelo médico, que considera a deficiência como um problema da pessoa, ainda está muito presente na sociedade e reflete nessa crença de que os estudantes não chegarão ao Ensino Superior. Por isso a formação é tão essencial para mudar essa visão capacitista e termos uma virada de chave para o modelo social da deficiência, visando a identificação e a eliminação de barreiras”, afirma Adriana.
No modelo social, a deficiência é resultado do encontro de dois fatores: as características da pessoa (de natureza física, mental, intelectual ou sensorial) e as barreiras (físicas, atitudinais, de comunicação, tecnológicas etc.) presentes na sociedade, que criam obstáculos para que essa pessoa participe em condições de igualdade com as demais.
A especialista sugere que a escola promova iniciativas que visem levar informação aos estudantes do Ensino Médio, principalmente aqueles com deficiência — trabalho que vem sendo feito por alguns grupos de pesquisa em Educação Especial junto a escolas e redes de ensino. “É fundamental falar sobre os direitos desses estudantes, sobre como, por exemplo, ler e compreender as regras de editais de processos seletivos, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o que e como fazer para garantir a acessibilidade. Essa também é uma forma de encorajá-los a tentar uma vaga na universidade”, diz.
Universidade inclusiva
Enquanto os avanços acontecem a passos lentos, estudantes como João e Neyara continuam sonhando e lutando por universidades com mais acessibilidade e inclusão.
“Uma universidade inclusiva é aquela que reconstrói suas condições e estruturas para garantir que todas as pessoas possam acessar, participar e permanecer nela. Ainda é necessário debater políticas públicas de acesso e revisitar as diretrizes existentes para pessoas com deficiência. Mas não basta garantir a entrada, é fundamental compreender os meios que viabilizam a participação de todos e refletir sobre quais políticas devem ser implementadas para que essa inclusão seja efetiva”, afirma João.
“Para mim, uma universidade inclusiva é aquela onde eu posso ser inteira, sem precisar me moldar, me esconder ou me explicar o tempo todo. É o lugar onde minha forma de perceber o mundo, mesmo que diferente, é compreendida como legítima, como uma linguagem própria que também merece espaço e escuta”, ressalta Neyara. Ela salienta que a inclusão não se limita a rampas ou arquivos em braille, mas que se trata de um processo vivo. “É onde a autonomia de cada estudante é respeitada, e nunca confundida com isolamento.”
Políticas públicas que garantem o direito ao Ensino Superior
Programa de Acessibilidade na Educação Superior (Incluir), criado em 2005, por meio da parceria entre a Secretaria de Educação Superior (Sesu) e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do Ministério da Educação (MEC). Tem o objetivo de incentivar a implementação e o fortalecimento de núcleos de acessibilidade nas universidades federais, responsáveis por coordenar iniciativas institucionais que assegurem a inclusão, com a eliminação de barreiras no ensino, na infraestrutura e na comunicação, garantindo também o cumprimento das exigências legais de acessibilidade.
Lei 13.409/2016, que prevê que, para além do estabelecimento de vagas para estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas, também deve haver cotas para estudantes com deficiência por curso e turno em instituições federais. “Percebo essa política pública como fundamental para a promoção da inclusão nas universidades, buscando proporcionar mais oportunidades de acesso à educação para esse público e fortalecer a diversidade nessas instituições”, afirma Ana Rebeca.