Além de debater a importância do movimento durante a pandemia, professor orientou atividades de dança com familiares para motivar estudantes
Como professor de educação física há 6 anos na EEM Mariano Martins, situada em Fortaleza (CE), a pandemia do coronavírus foi um desafio completamente diferente de tudo que já havia enfrentado na docência. Se antes o aluno dividia comigo um espaço, um momento, um sentimento de aula, a pandemia colocou por terra todos as bases nas quais nós professores construímos nossos métodos de ensino.
Nesse contexto, emerge o auxílio da tecnologia como um apoio à prática pedagógica para garantir que os estudantes não ficassem sem aula. No caso da educação física, o desafio era promover a atividade física, ou antes disso, a motivação para experienciar a atividade física durante o ensino remoto.
De forma geral, os desafios se colocaram a todos os professores, sobretudo desafios ligados às ferramentas tecnológicas e seus usos no processo de ensino: qual utilizar, como gravar e editar um vídeo, como criar um formulário on-line.
Todavia, para mim, o mais importante não foi necessariamente aprender a usar uma ferramenta, mas sim entender a forma de ensinar e a forma que o aluno tem de aprender pela internet, por meio da tecnologia. Ou seja, mais do que saber operar tecnicamente as ferramentas, entender como elas se inseriam no meu processo de ensino para atender os objetivos que eu tinha se tornou fundamental.
Relacionado aos desafios tecnológicos, outro desafio (que não é novo, pelo contrário): a pandemia e a exigência de um ensino totalmente remoto escancaram as desigualdades para que ninguém conseguisse mais ignorá-las.
Percebemos com profunda nitidez que cada um possui uma realidade, uma condição específica de vida, um apoio ou a inexistência dele para estudar. Há um drama diário para enfrentar e também um contexto tecnológico singular que pode ou não ser favorável para a participação num modelo de educação on-line.
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Educação Física Sem Vergonha
Eu dou aula para o ensino médio, meus estudantes têm na maioria entre 15 e 20 anos, alguns mais. A tecnologia em si pode não ser um problema, afinal eles vivenciam um período histórico tecnologicamente mais diverso e acessível.
Entretanto, será que apenas o simples acesso ao aparelho tecnológico garantiria a participação e a eficiência do ensino remoto? Ou existiriam modos de usar que afetariam diretamente o processo? Para deixar mais explícito: será que é motivante para um público de jovens assistir a uma videoaula de 35 ou 50 minutos numa tela de celular? Eu posso gravar com a maior boa vontade, mas, até pelo ponto de vista ergonômico, será efetivo?
Os questionamentos e as experimentações provocados pelo ensino remoto me fizeram pensar muito e tendo a acreditar que cheguei em três conclusões momentâneas sobre um ensino remoto mais satisfatório (e aqui situo a realidade da escola pública, com certeza o ensino privado tem outra dinâmica):
- buscar ser tecnologicamente o mais simples e acessível que pudermos (ou seja, na escolha de aplicativos e ferramentas necessárias para a participação) – mesmo o menor dos aplicativos pode não ser possível de ser instalado no celular básico de um aluno, ou da mãe dele, porque ele pode não ter): essa conclusão me encaminhou a priorizar ao máximo o celular (pois a maior parte dos alunos só acessa por esse meio) e os aplicativos nativos da maior parte dos aparelhos (leitores de texto pdf, navegadores de internet, players de vídeo etc.).
- buscar apropriar-se da “linguagem e dos costumes da internet” para produzir um ensino remoto mais atraente: nesse ponto, surge a reflexão sobre o tempo dos vídeos, a utilização de memes, de quizzes, animações em apresentações de slides, enfim, tudo que fosse legal, divertido (muito disso os professores já faziam no ensino presencial, mas agora a realidade demandou maior refinamento de entendimento do processo para utilização).
- buscar organizar o ensino remoto para facilitar o entendimento do aluno de todo o processo: esse ponto também não é novo, é até mesmo óbvio, mas também tem exigido um refinamento maior no ensino on-line, pois a inexistência do tempo/espaço específico de estudo pode acarretar ainda em uma maior desorganização e esquecimento (se o aluno vê uma lista de vídeos ou de atividades, mas não sabe por onde começar, ele provavelmente não se sentirá motivado a começar; se um aluno não sabe como se dá a avaliação, qual o peso, quais os prazos, ele pode se sentir perdido; se um aluno não sabe especificamente onde encontrar as informações que precisa, ou ele desiste de procurá-las ou vai a todo momento buscar o professor).
Tendo em mente as três considerações citadas, criei o blog “Educação Física Sem Vergonha“. No site (uma página na internet que pode ser acessada por qualquer aplicativo de navegação com facilidade), passei a publicar conteúdos teóricos e atividades práticas que estavam programadas para serem realizadas pelos segundos e terceiros anos da minha escola.
Meu intuito foi o de organizar em um espaço único, simples e acessível tudo o que eles precisariam para entender todo o processo; ao mesmo tempo, esse espaço propiciou a utilização de diversas ferramentas (vídeos, imagens, links para outras publicações, questionários, áudio, gravações etc.).
O nome do blog, antes que assuste o leitor preocupado, não está ligado a safadeza (hehe). O termo é literalmente o que parece ser: uma tentativa de educação física escolar que não precisa ter vergonha de ser educação física. Não requer “imitar” a prática pedagógica de outras áreas para se estabelecer como legítima; que reconhece a diversão/prazer não como consequência, mas como objetivo; que tenta ao máximo explorar a corporeidade em todas as aulas, em todos os conteúdos, admitindo-a como essencial para a metodologia de ensino da educação física escolar. O termo era, na verdade, ligado a prática pedagógica presencial de educação física, mas também pode se encaixar na nossa tentativa de produzir um ensino remoto.
Possibilidades de relações e avaliações
Eu sinto saudade dos meus alunos e vê-los em movimento me deixa muito feliz. A pandemia tentou me tirar esse prazer, mas logo percebi que a tecnologia poderia resgatar (pelo menos um pouco, que seja) a felicidade de ver meus alunos em movimento. Para isso, gravei vídeos pedindo atividades de vídeo (se eu quero vê-los, eles também devem me ver).
As atividades não deveriam ser encaradas de um ponto de vista burocrático, como apenas uma obrigação para ganhar uma nota. Para dar essa tranquilidade, tentei retirar ao máximo o peso de nota delas e continuei utilizando um modelo de avaliação que já promovia presencialmente (o melhor que acredito, diga-se de passagem): a autoavaliação, que vale metade da média final do aluno.
Mais importante que receber as tarefas feitas para atribuir notas, minha preocupação era com o bem-estar deles. Eu queria saber se eles estavam bem, felizes, e se tinham motivação para continuar as lutas do dia a dia. Nesse sentido, os vídeos foram um grande acalento para a alma: quando recebia os trabalhos, podia vê-los e senti-los, se não como antes, pelo menos de alguma forma.
Acredito que temos que ter cuidado com a vida, com a saúde física (com certeza), mas também com nossas emoções. Como nós e nossos estudantes estamos nos sentindo nesse momento é um ponto chave. O medo de ser reprovado não pode ser a tônica principal; o aprender por obrigação não pode ser costumeiro; o aluno, qualquer que seja, não pode ser só um número na chamada. Entendo a escola como um espaço que vai além da técnica, do ler, escrever e fazer conta; nosso maior aprendizado é aprender a ser gente. A escola serve para nos humanizar. Mesmo a distância.
Dança para todos
No terceiro bimestre, iniciei com o segundo ano os estudos sobre dança. Passamos por conceitos, historicidade e qualidades físicas relacionadas. Busquei reafirmar que a dança é uma manifestação corporal possível a todas as pessoas, sem qualquer tipo de distinção de gênero, idade, credo, raça, orientação sexual ou padrão corporal.
Todavia, apenas falar (da boca para fora) não é suficiente. A garantia de que a dança é aberta a todas as pessoas só vai existir quando todas as pessoas dançarem sem culpa, sem medo, sem vergonha.
Para potencializar a ideia de que a dança é para todos nada melhor do que fazer todos dançarem. Propus atividades em vídeo com desafios rítmicos e dançantes. No último, a ideia era que eles interagissem inclusive com a família em casa, dançando juntos (para isso, a pontuação até dobrava se um familiar participasse – nada como um incentivo desse pra convencer a mãe).
Minha felicidade foi imensa ao ver uma aluna minha dançando com a avó, outra com a irmã de 5 anos, outra colocou mãe e irmão juntos. Distantes da escola, os familiares tomaram papel central no apoio à educadores e estudantes. Inserir a família no processo de aprendizagem vai muito além da nota, não só pra mim, mas com certeza pra eles.
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“Professor, eu não quero aparecer”
Apesar das ações positivas, a questão de produzir atividades em vídeo abriu uma outra discussão pertinente à educação física: a importância da aparência corporal. Um aluno me procurou e apresentou um problema concreto: “professor, eu não quero aparecer, não me sinto bem com isso”. Esse não é um problema menor, pelo contrário. A nossa autoimagem corporal está relacionada intimamente com a nossa autoestima, com a nossa autoconfiança, até mesmo com as nossas expectativas de futuro.
Corpolatria (termo ligado à ideia de adoração à aparência corporal) é um tema trabalhado com as turmas de terceiro ano, que inclusive tem certa pertinência na prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Entretanto, esse tema acabou sendo central para todas as turmas e em diversos momentos tentei provocar pensamentos sobre.
Para essa juventude, de uma forma geral, a tecnologia trouxe consequências relacionadas à autoimagem que as gerações passadas não tiveram. Eu, particularmente, acho que tenho quatro ou cinco fotos da minha adolescência inteira; meus alunos tiram uma dezena de fotos a cada dois minutos.
É uma lógica de autopercepção completamente diferente, porque, no passado, muitas vezes, eu não fazia a mínima ideia de como era a minha aparência (a não ser na frente de um espelho, que também não traz uma percepção estática).
As redes sociais nos dias de hoje acabam por construir como a gente se vê e esse processo precisa ser levado ao nível consciente para que não perpetuemos danos que porventura estejam construindo para abalar a saúde mental de todos nós, não só dos jovens.
Expressão corporal
Dar vazão à expressão do corpo, de se perceber de uma forma diferente daquela cotidiana, é um dos benefícios que a educação física pode contribuir para uma melhor condição de saúde mental. A gente precisa dar vazão aos pequenos grandes dramas que vivemos. A corporeidade, as práticas corporais são um canal natural, positivo, até mesmo fácil de libertar o corpo de suas tensões inerentes a experiência humana.
Por um lado, foi bastante difícil promover as práticas corporais no ensino remoto; por outro, nunca antes foi tão necessário. Recebi falas de estudantes que gostaram das atividades sobretudo por elas os retirarem do comum, do esperado, do ler e escrever tão presente na escola.
Além disso, nas atividades em vídeo, a superação dos dilemas relacionados ao corpo e até mesmo relacionados às condições sociais da própria residência foram um fruto que me causou muito orgulho. Essas questões não foram resolvidas agora, mas talvez estejamos plantando hoje para que nossos jovens possam colher lá na frente.
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