Tendo estudado em escolas comuns durante toda a vida, jornalista com deficiência relata benefícios da educação inclusiva para toda a comunidade escolar
Se a vida é mesmo curta e o tempo passa depressa, sem volta, devemos aproveitar cada segundo com intensidade e responsabilidade. Eu parecia saber disso mesmo antes de nascer. Afinal, foram pouco menos de seis meses para minha mãe ouvir meu choro pela primeira vez. Eu cheguei ao mundo muito adiantado.
A prematuridade me levou à incubadora. E foi aí que surgiu minha deficiência. A incubadora onde eu estava quebrou e, em poucos minutos, fui transferido para outro aparelho. Não houve tempo suficiente, porém, para evitar a falta de oxigenação cerebral, ocasionada pela falha no equipamento primário. Me tornei, então, uma pessoa com deficiência, diagnosticada como paralisia cerebral.
A deficiência, no entanto, jamais foi um impeditivo para desfrutar da vida com intensidade e responsabilidade. Porém, a situação poderia ter sido outra se eu não tivesse tido o carinho e o apoio incondicional da minha família, como também, estudado a vida toda na escola comum. Meus pais sempre me ensinaram que a deficiência não me define como uma pessoa pior que as demais.
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Essa consciência deles foi fundamental para que eu não me fechasse para o mundo em escolas especiais, por exemplo, sob risco de não ter a chance de alcançar o meu melhor como ser humano, condicionado pela falsa verdade de que a deficiência é algo limitante.
Desde pequeno, meus pais decidiram me matricular em escolas comuns. Para eles, esse seria o modelo ideal para que eu pudesse receber a melhor educação possível e, assim, estar mais preparado para o futuro. Além disso, teria a oportunidade de desmistificar algum eventual preconceito oriundo da minha condição física, à medida que as pessoas à minha volta tivessem conhecimento das minhas potencialidades, desenvolvidas desde a infância com base nos aprendizados adquiridos na escola comum. Estavam absolutamente certos!
Estudar na escola comum me confirmou as convicções de minha família. Durante a trajetória no ensino regular, habilidades foram desenvolvidas e potencializadas. Isso porque nunca fui deixado de lado pelos professores e pelos meus colegas. Participava em igualdade de condições das atividades propostas para toda a turma, inclusive nas aulas de educação física.
É verdade que as práticas esportivas nas escolas onde estudei não foram adaptadas, mas era da vontade de todos que eu fizesse parte daquele momento também. Consigo me manter em pé com algum apoio e caminhar curtas distâncias. Lembro-me que, durante as competições de queimada, por exemplo, eu me mantinha em pé com a ajuda de uma pessoa que me segurava por trás, contribuindo para o meu deslocamento quando a bola era arremessada em minha direção, evitando que eu fosse “queimado”.
Nas partidas de futebol, um colega de turma e eu dividíamos o mesmo gol. Cada um ficava em um canto da baliza. Eu sempre sentado em minha cadeira de rodas. Dois goleiros em uma só meta é pouco comum, mas isso nunca foi um problema para os meus colegas. É fato que, inicialmente, evitavam chutar a bola em minha direção, pois achavam que eu poderia me machucar. No entanto, esse receio foi se diluindo à medida que nossa convivência se intensificava e que ganhávamos confiança uns nos outros. Quando percebemos, eu já estava fazendo algumas defesas e, na linguagem futebolística, tomando “frangos” também.
Nas aulas de natação, uma professora ficava comigo dentro da água constantemente e me auxiliava a praticar o mesmo tipo de nado que os meus colegas. Às vezes, jogávamos polo aquático.
Durante o período de competições esportivas entre as classes, conhecido como “Jogos Interclasses”, que acontecia nas últimas semanas de cada ano letivo, eu era o treinador da minha classe. Essa reivindicação foi liderada por mim e pelos meus colegas de turma, tornando-se habitual e bem aceita pela escola, que permitiu a outras classes terem um treinador também, se assim desejassem.
Ser incluído nessas atividades fez com que eu me tornasse apaixonado por esportes de maneira geral. Além disso, estudar em escola comum me permitiu ter acesso à universidade, me possibilitou trabalhar na área da comunicação de empresas multinacionais e estar onde estou hoje. Entendo que a deficiência não me torna incapaz e, tampouco, uma pessoa de “impossível convivência”.
As pessoas com quem convivi sempre me trataram com igualdade, naturalidade e sem estranheza ou preconceito, pois, se houve uma percepção negativa sobre a minha deficiência em algum momento, logo ela foi dissipada. Afinal, a convivência com colegas de turma e professores foi estabelecida desde a infância e perdura até hoje. Criamos laços de amizade muito fortes, inclusive fora do ambiente escolar.
Essa atitude foi construída a partir de diálogos constantes entre mim, minha família, a escola e a comunidade escolar, uma vez que o desconhecido pode nos causar temor, pânico, insegurança, entre outros, somente até ser conhecido em minúcias. À medida que passamos a conviver com as diferenças, elas se tornam cada vez mais naturais e menos incômodas.
A postura adotada pela minha família, pelos amigos e pela escola desde a fase inicial da minha vida fez com que eu me tornasse uma pessoa bastante sociável e sem vergonha para falar sobre a minha deficiência, o que certamente contribui para a desconstrução do capacitismo, termo que pode ser definido como um preconceito sobre as capacidades que uma pessoa com deficiência tem ou não.
Os benefícios de estar na escola comum não se restringiram somente a mim, mas a toda a comunidade escolar, pois a escola ficou mais acessível a todos e nos tornamos também mais empáticos, solícitos e respeitosos. Tenho convicção de que as pessoas que conviveram comigo entenderam, assim como eu entendi, a importância da diversidade para a construção de uma sociedade mais pacífica e justa. Afinal, se a beleza desta vida se dá por ser diversa, por que excluir pessoas com diferentes características do direito ao convívio social de forma plena?
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William Truppel é formado em Comunicação Social: Jornalismo e pós-graduado em Master in Business Communication (MBC). Trabalhou no departamento de comunicação de empresas multinacionais, tais como Santander Brasil S.A. Já fez parte da equipe de comunicação do Instituto Rodrigo Mendes.