O potencial pedagógico e inclusivo da mini-história

Com narrativas sobre a infância, educadora capixaba aprimora a própria prática e compartilha com a comunidade escolar os percursos de aprendizagem das crianças

Imagem mostra a professora Priscilla, uma mulher branca com cabelos longos, em pé sorrindo ao lado do mural da escola onde estão algumas mini-histórias produzidas durante o projeto. Na parte superior do mural há o nome da escola “Cecília Meireles”. Fim da descrição.
Priscilla expõe algumas das mini-histórias para a comunidade escolar. Crédito: Acervo pessoal/Priscilla Castro dos Santos

“Produzir uma mini-história requer um olhar sensível e generoso para as crianças e suas infâncias.” Foi a partir dessa premissa que a professora Priscilla Castro dos Santos desenvolveu o projeto “Mini-história: um olhar poético do cotidiano das crianças com autismo”, no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Cecília Meireles, em Vitória, no Espírito Santo. Como reconhecimento do potencial inclusivo do trabalho desenvolvido, ela foi agraciada na categoria Direitos Humanos do Prêmio Educador Nota 10, iniciativa do Instituto Somos e da Fundação Victor Civita, com o apoio do Instituto Rodrigo Mendes (IRM).

Apesar de o título do projeto enfatizar o trabalho realizado com crianças com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), ele foi desenvolvido com todos das turmas nas quais Priscilla atuou em 2022. Naquele ano, ela acumulou duas funções no CMEI: professora regente de uma turma com crianças de três e quatro anos pela manhã; e professora do Atendimento Educacional Especializado (AEE) à tarde.

Ao narrar o cotidiano por meio das mini-histórias, Priscilla comunicou de forma assertiva para outros educadores e para as famílias os diferentes percursos e ritmos de aprendizagem de cada criança, demonstrando que todas elas, e não apenas as que são público-alvo da educação especial, têm necessidades educativas singulares.

Os registros produzidos pela professora favoreceram ainda a reflexão sobre o seu fazer pedagógico, o fortalecimento de vínculos afetivos e a valorização da infância, com suas brincadeiras e interações. “Durante o projeto, ao observar a criança no seu tempo, sem acelerar, desenvolvi um olhar e uma escuta sensíveis, o que possibilitou criar um vínculo afetivo e um espaço confortável para que todos possam se expressar da maneira que são, participar efetivamente de cada proposta e conviver com seus colegas de forma harmoniosa”, detalha a professora.

Narrativas que potencializam uma prática pedagógica inclusiva

Produzida por educadores, a mini-história é um pequeno texto poético acompanhado por fotografias, que sintetizam uma sequência de ações realizadas pelas crianças individualmente ou em grupo, como brincadeiras, descobertas, aprendizagens e interações entre elas e com os adultos. Esse formato de registro integra a documentação pedagógica e não se limita à mera descrição de fatos.

Segundo Paula Zurawski, doutora em Educação, especialista em Educação Infantil e selecionadora do Prêmio Educador Nota 10, escrever uma mini-história pressupõe que o professor inclua suas impressões e reflexões sobre a cena em questão, de modo que ela possa ser compartilhada com outros educadores e com a comunidade escolar. Por isso, é importante que seja autoexplicativa. “Esse instrumento dá visibilidade à criança, explicita o fazer pedagógico e evidencia como a equipe escolar atua em determinadas situações”, complementa Paula.

Apesar de simples, a escrita de uma mini-história não se resume a contar o que as crianças estão fazendo. Exige escrever uma narrativa poética,  em uma linguagem simples e acessível, selecionar informações e fotos relevantes e desenvolver uma observação apurada, atenta aos detalhes, que permita gerar reflexões sobre o processo de aprendizagem. “O grande desafio está em dar um sentido mais profundo às situações cotidianas, tornando-as importantes para o olhar do adulto, reconhecendo cada experiência infantil e construindo uma memória pedagógica”, explica Priscilla. Confira a seguir um exemplo de mini-história produzida pela educadora durante o desenvolvimento do projeto premiado.

Card com fundo branco tem quatro imagens em sequência na parte superior e uma à esquerda no lado inferior. Todas elas registram o menino Davi enquanto brinca em um cavalinho de balanço na cor azul. No lado esquerdo, título “Palmas para Davi” e texto “No pátio, percebi um movimento com os dedos do Davi onde ele estava todo concentrado. Paro para observar a relação que ele estabelece com o corpo. A amiga Liz também se interessa com seu olhar atento e curioso para acompanhá-lo. Davi faz representando com os dedos o numeral 1, 2, bate na boca como uma contagem, uma marcação, seguindo a sequência numérica até chegar no numeral 5. Quando completa sua sequência, bate palmas, vibra a conclusão do seu raciocínio. Mãos que são extensão de um cérebro que pensa… A criança apresenta nas sutilezas das suas ações o seu repertório de conhecimento e assim vamos acolhendo e conhecendo o seu mundo interior”. No rodapé, os créditos: Texto e fotografia: Priscilla; Criança: Davi; Maio de 2023; Nome da escola: CMEI Cecília Meireles. Fim da descrição.
Crédito: Acervo pessoal/Priscilla Castro dos Santos

Ao capturar e rever posteriormente as cenas acima, Priscilla identificou situações que não foram percebidas no momento em que aconteceram. “Ao recuperar uma das gravações, percebi que Davi — uma criança com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), de três anos e que não se comunicava muito — fazia um gesto com os dedos, encostando-os no queixo. Percebi que ele estava aprendendo a contar: um, dois, três dedos, e seguindo assim até onde ele sabia. Em um momento seguinte, volto à sala e faço, intencionalmente, o mesmo movimento para observar sua reação: ele sorri. Com isso, consegui estabelecer um vínculo maior com ele.”

Esse registro permitiu não apenas evidenciar uma nova aprendizagem de Davi, o que contribui para a continuidade do trabalho pedagógico, mas também se tornou uma potente ferramenta de devolutiva para a família sobre os avanços dele e sobre o quanto os educadores estão atentos e empenhados para que todas as crianças aprendam, dando visibilidade ao potencial e ao desenvolvimento de cada um.

Da formação para a prática

Com quase duas décadas de docência, Priscilla lembra que sempre quis ser professora. Formada em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), tem especialização em Psicopedagogia e AEE. Ao longo da carreira sempre atuou na educação infantil, tendo uma curta passagem pelo ensino fundamental. Para ela, trabalhar com crianças é objeto de realização pessoal e motivação para seguir aperfeiçoando sua prática.

Apesar do contexto adverso do isolamento, a educadora recorda que aprendeu a produzir mini-histórias durante a pandemia, quando, por conta própria, participou de algumas formações voltadas à educação infantil. Em um desses cursos — ministrado por Paulo Fochi, pedagogo, doutor em Educação e professor de Pedagogia da Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos) —, ela pôde rever seus conhecimentos sobre o papel da documentação pedagógica.

“Essa formação mudou meu olhar sobre as crianças, tornando-o mais refinado. Percebi o quanto esses registros contribuem para a reflexão sobre o dia a dia em sala”, conta. Após o curso, a professora decidiu colocar o novo conhecimento em prática. Foi assim que nasceu o projeto. Os registros começaram em março com a turma da manhã, que tinha 25 crianças, das quais quatro eram público-alvo da educação especial.

No turno da tarde, no AEE, esse trabalho só teve início em maio. Nos primeiros meses do ano letivo, o CMEI Cecília Meireles passou por uma redução no quadro de profissionais de apoio que atendem as crianças que são público-alvo da educação especial. Por conta disso, nesse período, Priscilla desempenhou esse papel, o que impossibilitou produzir os registros.

Para a produção das mini-histórias, Priscilla contou com o apoio de duas assistentes de turma. Além disso, ela utilizou os momentos de planejamento com a coordenadora pedagógica, que a ajudou na análise e seleção das imagens que seriam utilizadas para a produção das narrativas.

“Registro diariamente minhas crianças. É claro que nem tudo vira uma mini-histórias, mas todos [os registros] contribuem para que eu possa conhecê-las melhor. Entre foto e vídeo, prefiro filmar. Acredito que facilita capturar suas narrativas”, explica a professora, que produziu ao longo do ano cerca de 200 mini-histórias.

Ao explicar os critérios de seleção de quais registros serão transformados em mini-histórias, Priscilla conta levar em consideração aqueles que explicitam os desafios e os avanços nas aprendizagens de cada criança e que dialogam com o planejamento. “Valorizo as interações das crianças, a relação com a natureza, o brincar, as produções de pintura e desenho, além dos momentos em que elas demonstram progressos na autonomia”, detalha.

Paula Zurawski, ao avaliar o projeto, indica que a proposta está totalmente conectada com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por dar visibilidade e valorizar as interações e brincadeiras realizadas pelas crianças. “Ao considerar a inclusão de quaisquer crianças, independentemente das suas características, Priscilla propõe que todos podem e dever ser atendidos”, destaca a especialista.

Veja a seguir outra mini-história produzida pela educadora, que evidencia o potencial inclusivo do convívio e das interações entre as crianças:

Card com fundo branco tem quatro imagens em sequência na parte superior. Todas elas registram o menino Eric brincando na companhia do colega Benjamim. Na primeira eles estão subindo a escada do escorregador. Na segunda eles estão se ajeitando para descer o escorregador. Na terceira os dois brincam em um balanço. Por último, ambos estão sentados um do lado do outro no chão. Na parte de baixo do card, título “Brincar em companhia” e texto “N Numa manhã ensolarada, no momento do pátio, uma cena chama a atenção da professora Wallesca e da assistente Geicy. Eric estava buscando a companhia do amigo Benjamim para brincar e interagir. Eric seguiu o colega para brincar no brinquedão, descer no escorregador, imitando todos os movimentos que o Benjamim fazia. No balanço Benjamim diz: “Nunca aconteceu”, manifestando a novidade nessa relação. Benjamim sentou para descansar e Eric sentou a seu lado num espaço que mal cabia os dois. Encostou as mãos na perna de Benjamim, que demonstrou espanto ao olhar para esse gesto. Mesmo sem trocar palavras, Eric revelou através do seu corpo que naquela manhã, ele queria estar em companhia, conseguindo romper com uma dificuldade que se faz presença no seu modo de ser e estar no mundo”. No rodapé, os créditos: Texto e fotografia: Priscilla; Fotografia: Wallesca e Geicy; Crianças: Eric e Benjamim; Agosto/2022. Fim da descrição.
Foto: Acervo pessoal/Priscilla Castro dos Santos

Devolutivas que ampliam o envolvimento das famílias

Outro destaque do trabalho é o fortalecimento do envolvimento da comunidade escolar. Priscilla apresentou previamente a proposta para outros educadores do CMEI e para os responsáveis pelas crianças. Ela explicou os objetivos do projeto, contou como os registros seriam feitos e reforçou a importância de observar a riqueza de cada ação dos pequenos no cotidiano. Ao longo de todo o ano, as famílias receberam semanalmente as mini-histórias nos grupos de WhatsApp. Alguns desses registros foram expostos no mural da sala e no pátio da unidade.

Em uma das etapas do projeto, a professora enviou um questionário online para saber como os responsáveis reagiam ao ler as mini-histórias. Uma mãe escreveu: “Sinto como se estivesse resgatando minhas memórias afetivas da infância. Isso também me aproxima da minha filha, que é autista, e o lúdico é muito importante para ela. Sem contar que faz bem para a saúde emocional da gente em tempos tão difíceis [sic]”. Leia a seguir o depoimento de outra mãe sobre o projeto, publicado no Instagram:

Para Paula Zurawski, esse tipo de documentação evidencia para os responsáveis pelas crianças como o Projeto Político Pedagógico (PPP) da unidade e o planejamento educativo da turma estão ocorrendo na prática. Trata-se de um importante instrumento de avaliação em processo, que gera inúmeros assuntos de pauta para aprimorar o diálogo com a família. “Não dá para fazer educação infantil de portas fechadas para a comunidade”, enfatiza.

“Compartilhar a mini-história é uma oportunidade de as famílias conhecerem o dia a dia das crianças no ambiente educativo. Ao ver esses registros, elas choram, se emocionam, pois sentem que os pequenos estão sendo vistos. Elas também aprendem e, em alguns casos, podem até replicar brincadeiras e interações que às vezes não acontecem em casa”, defende Priscilla.

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