Educação inclusiva na Conae: desigualdades e diferenças na ordem do dia
Marta Avancini analisa os principais pontos discutidos durante a conferência de 2024 e que indicam os desafios para a construção de escolas que efetivamente pratiquem uma educação para todas as pessoas
O que podemos esperar para a educação especial na próxima década? Tomando como referência o documento final da Conferência Nacional de Educação (Conae) 2024, que servirá de base para o projeto de lei do novo Plano Nacional de Educação (PNE), o principal desafio nos próximos dez anos continua sendo assegurar o acesso das crianças, adolescentes e jovens que compõem o público-alvo da educação especial à escola.
O uso do gerúndio é proposital, pois esse já era o objetivo do PNE 2014-2024: o texto da meta 4 previa a universalização do acesso da população de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidades ou superdotação à escola até o final da vigência do plano.
Agora, o objetivo é universalizar o acesso dessas crianças e adolescentes até o segundo ano de vigência do novo PNE, previsto para a década de 2024-2034, como descreve a proposição 4 do documento final da Conae 2024.
Supondo que o PNE seja votado e aprovado este ano, como quer e defende o ministro da Educação, Camilo Santana, a proposição 4 alinha-se com o plano de fortalecimento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), anunciado pelo Ministério da Educação (MEC) em novembro do ano passado: a meta é colocar dois milhões de crianças e adolescentes atendidos pela educação especial em escolas públicas. Mas desde o anúncio ainda não há detalhamento sobre as ações para colocar o plano em prática.
Embora o acesso seja central no texto da Conae, ele vai além dessa dimensão, na medida em que define que a universalização do atendimento escolar do público-alvo da educação especial deve se dar com garantia de permanência e padrão de qualidade. E também avança na definição das condições de como o acesso e a permanência devem ocorrer, incorporando a necessidade de acessibilidade, suplementação e complementação (quando for preciso), infraestrutura adequada, formação docente inicial na área e capacitação continuada, além de financiamento.
Um aspecto que chama atenção na caracterização da capacitação continuada tal como descrita na proposição 4 é a ênfase “na perspectiva da Permanência e Aprendizagem dos Estudantes Surdos Público-Alvo da Educação Bilíngue de Surdos (Paebs)”, tendo em vista assegurar a esse grupo o acesso a escolas e classes regulares bilíngues, com suas necessidades atendidas.
Ou seja, a proposição da Conae acaba por destacar um grupo em meio aos diversos que integram o público-alvo da educação especial. É verdade que as demandas da comunidade surda ganharam visibilidade e espaço nos últimos anos, materializando-se, por exemplo, na inclusão da educação bilíngue de surdos como uma modalidade de ensino independente da educação especial na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com a sanção da Lei 14.191/2021 durante o mandato do então presidente da República Jair Bolsonaro.
No entanto, sem questionar a legitimidade das reivindicações da comunidade surda, chama atenção que o texto, que servirá de referência para as políticas voltadas para o conjunto do público-alvo da educação especial, enfatize um grupo entre tantos outros.
Ao mesmo tempo, é preciso levar em conta o fato de que a Conae ter dado destaque ao público-alvo da educação bilíngue de surdos não significa que essa formulação será mantida no texto do projeto de lei a ser submetido ao Congresso Nacional — o texto ainda está em fase de redação no MEC, sem previsão de data para ser encaminhado ao Legislativo. Ainda assim, o destaque às demandas específicas de um grupo pode ser lida como um indício das disputas de sentido do que significa a educação inclusiva.
Conceito de educação inclusiva ampliado
Outro ponto a destacar é a comparação do texto da proposição 4 com o da meta 4 do PNE 2014-2024 em relação à maneira como o conceito de educação inclusiva aparece. A meta 4 faz uma conexão explícita da educação especial com a educação inclusiva, ao mencionar que o acesso perpassa a necessidade de se garantir “um sistema educacional inclusivo, com salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados públicos ou conveniados”.
Já o documento final da Conae 2024 atribui um sentido ampliado à educação inclusiva, caracterizada na abertura do eixo 2 como diretamente relacionada ao direito à educação e à garantia do direito à “igualdade e à diversidade étnico-racial, de gênero, de idade, de orientação sexual, de origem e religiosa”, assim como à “garantia dos direitos aos (às) estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidades ou superdotação”.
Isso quer dizer, aqui, que educação inclusiva não diz respeito apenas ao público-alvo da educação especial. Ela vincula-se à superação das desigualdades que historicamente marcam o Brasil, partindo da compreensão das diferenças que existem entre as pessoas, o que exige que o processo educacional ocorra de maneiras e em ritmos diferentes. Dessa forma, a educação inclusiva é apresentada como o fundamento do direito à educação: “educar na e para a diversidade significa trabalhar efetivamente para garantir a educação a todas as pessoas, como direito”, define o texto.
Nessa perspectiva, a Conae 2024 defende a necessidade de transformar os sistemas educacionais em sistemas educacionais inclusivos, a fim de garantir a “transversalidade da educação especial”, tanto no atendimento quanto na formação docente, contemplando a diversidade, a igualdade e a equidade à participação.
Essa visão ajuda a entender a ênfase do documento da Conae 2024 na perspectiva interseccional ao prever políticas de equalização do acesso e da permanência dos estudantes público-alvo da educação especial que priorizem as camadas mais pobres da população, além de negros, indígenas, quilombolas, moradores do campo e ribeirinhos das regiões mais afetadas pelas desigualdades e vulnerabilidades.
Para isso, defende o texto, é essencial a existência de mecanismos de monitoramento do acesso, da permanência e dos atendimentos no contexto da educação especial — uma demanda antiga, ainda não materializada e que prejudica sensivelmente o desenho e a implementação das políticas na área.
Esses elementos, entre outros contemplados no documento final da Conae 2024, traduzem, de um lado, alinhamento com questões contemporâneas e urgentes — como a necessidade de se incorporar o olhar para as desigualdades às políticas educacionais. De outro, porém, revelam desafios profundos enfrentados no campo educacional e que são cruciais quando se pensa na educação para todos: como trazer para o centro do dia a dia de cada escola a educação inclusiva?
Afinal, esse desafio não envolve apenas infraestrutura adequada e professores bem formados — embora esses aspectos sejam essenciais, a principal questão é de natureza pedagógica e de visão da escola que queremos para nossas crianças e adolescentes. Uma escola que, de fato, no dia a dia da sala de aula, reconheça e potencialize capacidades e talentos e que seja capaz de flexibilizar metodologias de ensino e avaliações de modo a dar visibilidade e a valorizar a diferença.
Sobre a autora
Marta Avancini é jornalista de educação e consultora de organizações sociais de educação, infância e juventude e inclusão de pessoas com deficiência. É Jornalista Amiga da Criança premiada pela Andi – Comunicação e Direitos da Infância e vice-presidente da Fundação Síndrome de Down, de Campinas-SP.
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A educação inclusiva visa contribuir para diminuir as desigualdades no processo de aprendizagem. Infelizmente, essa prática ainda está muito aquém do desejado, pois nós, professores não estamos totalmente preparados para implantá-la e ainda encontramos muitos obstáculos no caminho. Matricular um aluno com necessidades especiais em uma escola regular, não garante uma educação realmente inclusiva.