A importância de aprender a expressar as emoções na educação infantil

Entender os próprios sentimentos é essencial para o desenvolvimento socioemocional das crianças. Projeto de escola em Canguçu (RS) mostra como a literatura permite envolver toda a turma e ajudar nesse aprendizado

“As emoções fazem parte da nossa essência como seres humanos. Assim como nos alfabetizamos para ler e escrever, contar, somar e dividir, precisamos nos alfabetizar emocionalmente.” É o que afirma a psicóloga Beatriz Ferraz, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora da Escola de Educadores. Ela ressalta que “saber lidar com emoções e sentimentos é algo que precisamos aprender para toda a vida e aprendemos por toda a vida”.  

É na primeira infância, fase em que as crianças estão formando as bases de sua identidade e aprendendo a se relacionar, consigo mesmas e com o mundo, que esse processo de alfabetização emocional se inicia. Desde o nascimento, os bebês já vivenciam emoções básicas, como alegria, tristeza, medo e raiva. À medida que crescem, aprendem a identificar e expressar esses sentimentos com o apoio de responsáveis, cuidadores e professores.  

“As crianças que aprendem a identificar e expressar suas emoções compreendem melhor a si mesmas e aos outros, conseguem criar estratégias eficazes para lidar com sentimentos difíceis, como raiva ou tristeza, e têm mais chance de ter um desenvolvimento emocional saudável”, explica a especialista, que tem vasta experiência no campo da educação infantil. De acordo com ela, esse entendimento em relação às próprias emoções e às dos outros ajuda a desenvolver habilidades sociais como empatia, colaboração e resolução de conflitos, fundamentais para que estabeleçam interações sociais positivas. 

Para Daniela Alonso, psicopedagoga especialista em educação inclusiva e consultora de projetos educacionais, o desenvolvimento socioemocional é parte curricular do berçário ao ensino médio. “Eu diria que até o ensino superior, porque, partindo do princípio de que são habilidades que se modulam à medida da convivência, da educação e do ensino, a gente continua regulando [as emoções]”, comenta.  

“Lino de Macedo [pedagogo, doutor e especialista em psicologia do desenvolvimento] diz algo com que concordo muito: hoje temos de pensar na educação incluindo também as questões de convivência. Temos visto, por exemplo, que o convívio com crianças e estudantes público-alvo da educação especial contribui para o desenvolvimento socioemocional de todo o grupo, e não só daqueles com deficiência”, enfatiza Daniela.  

Como apoiar as crianças 

“Quando os pequenos brincam juntos, é normal surgirem conflitos e, por consequência, emoções que eles ainda não conseguem regular ou mesmo identificar. Além disso, momentos de frustração quando estão fazendo uma atividade muito desafiadora também podem gerar emoções que levem a criança a ficar agitada ou mesmo a desistir [do que está fazendo]”, diz Beatriz. Mas, afinal, como professores dessa etapa podem apoiar as crianças nesse aprendizado?  

A educadora enfatiza que as aprendizagens socioemocionais se desenvolvem ao longo da vida a partir das experiências vividas e que, portanto, podem ser ensinadas no contexto escolar. Para isso, é importante que o professor tenha intencionalidade e saiba como organizar contextos que favoreçam tais aprendizagens — previstas, inclusive, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), principalmente no campo de experiências “O Eu, o Outro e o Nós”, que aborda o fortalecimento da identidade, a formação de vínculos e o aprendizado da convivência social, promovendo a empatia, o respeito às diferenças e o desenvolvimento de valores essenciais para a vida em sociedade. Isso pode ser feito, por exemplo, ao planejar experiências diversas, nas quais as crianças poderão interagir em pequenos e grandes grupos, em atividades com graus de desafios diferentes etc.  

Daniela afirma, porém, que é interessante olhar para o trabalho com as emoções de maneira orgânica, e não como se fosse uma disciplina, com dia e hora para ser abordado. “Acredito que não pode haver uma dissociação entre o que as crianças sentem e a prática docente, ou seja, o professor não precisa esperar algo acontecer nem criar uma situação para trabalhar com as emoções como se fosse uma coisa encaixada no cotidiano. Quaisquer momentos ou situações são propícios para isso”, ressalta.  

Para ela, a realização de um bom trabalho com as emoções pressupõe que o professor olhe primeiro para si e observe suas próprias emoções. “As crianças também se apoiam na imitação, naquilo que recebem dos adultos, para construir seus conhecimentos”, diz Daniela. Por isso, elas estarão atentas à maneira de agir dos professores durante as situações desafiadoras.  

“É essencial que o educador tenha habilidades socioemocionais bem desenvolvidas para perceber, com sensibilidade, o que está por trás dessas situações como, por exemplo, quando uma criança agride outra aparentemente sem motivo. Na verdade, pode não ser um motivo racionalmente declarado, e sim uma emoção que a assolou naquele momento”, pontua.  

Nesse sentido, Beatriz acrescenta que o professor deve atuar como aquele que tenta traduzir emoções e sentimentos em linguagem, sem julgar, apenas compartilhando com a criança o que lhe parece que ela está sentindo a partir do que aconteceu. “Ao mesmo tempo em que ele nomeia a emoção ou sentimento para a criança, deve perguntar a ela se é isso mesmo, deixando-a confortável para validar ou não. É nesse movimento que o professor pode apoiar as crianças a aprenderem sobre suas emoções”, diz.  

O educador, diz ela, também pode perguntar como a criança acha que poderia lidar com o que está sentindo e com a situação em si, ajudando-a a pensar nas consequências de seus atos e comportamentos. 

Um olhar para todos e para cada um 

No geral, as intervenções devem ser as mesmas com toda a turma, a menos que, considerando as crianças público-alvo da educação especial, haja a necessidade de eliminar barreiras. De acordo com Daniela, o professor deve entender que o transtorno ou a deficiência é uma característica e que um laudo pode ser um ponto de partida, mas não retrata a criança, muito menos os seus comportamentos.  

“Quando uma criança chega à escola e conta que o avô morreu, o professor deve perguntar: ‘Você gostaria de falar sobre isso comigo ou com o seu grupo?’. Isso vale para outras situações e para todas as crianças. É claro que, às vezes, a criança precisa de algo individualizado, de modo que nem toda situação deve ser aberta para o restante da turma, e perceber tais nuances é algo que demanda formação e sensibilidade do professor.”  

A especialista destaca a importância de uma rede de apoio formada pela família, os professores da sala regular e do atendimento educacional especializado (AEE) e os demais profissionais da escola. “Por mais que eu legitime a capacidade do professor de ensinar qualquer criança, nós não temos todos os recursos necessários, então devemos contar com essa rede de apoio”, afirma Daniela. O docente precisa ter informações para entender em que momento do reconhecimento da própria identidade essa criança está. Para isso, além de observá-la, ele pode perguntar à família, por exemplo, se a criança sabe que tem uma deficiência e como ela se reconhece no grupo. “Essas informações são importantes porque nós, como educadores, colaboramos, e muito, para a construção da identidade das crianças. Esse é o papel da educação infantil”, complementa. 

Lidando com as emoções por meio da literatura  

A literatura é uma das principais estratégias que podem ser utilizadas pelos professores para ajudar a criança a aprender mais sobre o mundo e entender a si mesma. “Há muitas histórias que sensibilizam e convidam as crianças a explorarem situações emocionais complexas em um ambiente seguro”, destaca Beatriz. Ao entrar em contato com essas narrativas, a criança tem a oportunidade de refletir sobre como os personagens enfrentam os desafios e fazer relações com a maneira como ela mesma lida com seus desafios emocionais. Quando o professor apresenta à turma enredos que envolvem uma variedade de situações e emoções, explica a especialista, ele colabora para que a criança tenha um repertório maior para fazer conexões com aquilo que ela já sentiu e consiga identificar, nomear e atribuir novos sentidos ao que vivenciou ou está vivenciando.  

Exemplo disso é o que fez a professora Josiane Braga Soares, que atua na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental na rede municipal de Canguçu (RS). Ela utilizou a leitura de “O Monstro das Cores”, livro de Anna Llenas, no início de 2023, para trabalhar as emoções com crianças de cinco anos da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) São João Batista de La Salle, localizada na zona rural do município gaúcho, a 274 quilômetros da capital Porto Alegre.  

No início daquele ano letivo, os pequenos estavam com dificuldade para enfrentar os sentimentos que apareciam na rotina. “Muitos não conseguiam lidar com o ‘não’, com a necessidade de compartilhar objetos com o colega ou com momentos de tristeza e raiva, o que geralmente desencadeava comportamentos agressivos por parte de alguns”, relembra Josiane. “Eu percebia que eles não conseguiam entender o que estavam sentindo, por isso quis propor atividades que os ajudassem a compreender melhor as próprias emoções.”  

Assim, surgiu a ideia de desenvolver o projeto “Inclusão: Um Olhar para as Emoções”, ao lado da professora do AEE Natália Romero Weirich e das educadoras Lídia Maria de Farias Ibeiro e Fabiane Mota Machado da Fonseca. A iniciativa nasceu durante a formação “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade”, proposta pelo Instituto Rodrigo Mendes (leia mais sobre a iniciativa no final deste texto).   

Primeiro, Josiane apresentou a história para as crianças. A escolha do livro se deu principalmente por conta do interesse delas. “Na educação infantil, as cores chamam muito a atenção, assim como as histórias, que sempre despertam a imaginação e instigam a curiosidade de todos”, frisa. Em seguida, foram realizadas diversas rodas de conversa para falar das emoções e sentimentos que vinham à tona durante a leitura.  

De acordo com Beatriz, conversar em grupo sobre essas histórias — outros livros podem ser usados como disparadores do bate-papo — oferece a oportunidade de as crianças aprenderem com as experiências dos personagens e com as de seus colegas, que podem compartilhar interpretações diferentes, construídas a partir do contexto em que vivem. Isso contribui também para o desenvolvimento da empatia. 

Josiane aproveitou o potencial desses momentos e as crianças puderam compartilhar com o grupo o que sentiam. “Alguns diziam, por exemplo: ‘Estou com raiva porque briguei com meu irmão’. Ou: ‘Estou triste porque perdi meu cachorrinho’. Eles falavam abertamente, o que já era um grande passo porque estavam conseguindo se expressar”, comenta.  

O principal objetivo, diz a professora, era que todas as crianças se sentissem incluídas. Ela conta que Pedro, uma criança com transtorno opositor desafiador (TOD) e transtorno do espectro do autismo (TEA), por exemplo, ficou encantado com os monstrinhos e participava ativamente das rodas de conversa com a turma. “Queríamos que as crianças compreendessem que cada um de nós temos suas diferenças e que isso nos torna únicos, e é preciso aceitar e respeitar essas diferenças, o que requer olhar para o que sentimos”, explica.  

O projeto também envolveu, ao longo de pouco mais de um mês, a exibição de vídeos que permitiam refletir sobre emoções e sentimentos, entre outras atividades. Em uma releitura de “O Monstro das Cores”, as crianças criaram outros personagens que representavam emoções e, assim, confeccionaram um novo livro. Por fim, foi realizada uma gincana com alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, com o objetivo de fortalecer a convivência, o respeito e a empatia entre todos.  

“Nós queríamos a inclusão de todas as crianças e vimos que elas participaram das atividades com muito entusiasmo e empolgação. Ao final do projeto, ficou nítido que elas aprenderam a se enxergar, observar as próprias emoções e também as do outro e, assim, ter mais respeito e empatia. Esse foi o maior resultado”, completa Josiane. 

Clima escolar: a importância da rotina 

De acordo com as especialistas, o clima escolar é crucial para o bom andamento do trabalho com as emoções. “O clima influi diretamente em como as crianças se sentem, por isso é importante que o professor faça um planejamento considerando o conforto delas. As emoções dos adultos que estão com essa criança logicamente também interferem, porque a gente tem uma metacomunicação. Não adianta dizer que estamos bem quando, na verdade, não estamos, pois o corpo fala”, explica Daniela.  

Beatriz frisa que um ambiente acolhedor é aquele que favorece as relações e as aprendizagens. “Um bom clima depende disso e é fator fundamental no cotidiano escolar. Por isso, é muito importante que as crianças possam ter seus direitos garantidos e ser reconhecidas e tratadas levando-se em conta suas potencialidades. É essencial acreditar nas crianças e dar voz a elas; favorecer suas interações com os outros, o mundo, a natureza e consigo mesmas; buscar sempre mediar com compreensão, e não fazer por elas”, diz. 

Nesse contexto, a construção da rotina ganha destaque na educação infantil. Uma vez estabelecida e apropriada pelas crianças, a rotina ajuda com que elas se sintam protagonistas e com controle de suas emoções, sentimentos, atitudes e comportamentos. “Elas podem aprender o que se pode fazer a cada momento da rotina, regulando seus comportamentos e desejos. Podem se tornar menos dependentes dos adultos em contextos em que sabemos que estão seguras, o que é fundamental para que possam desenvolver autoestima e autoconfiança e aprender sobre segurança e bem-estar”, completa Beatriz.  

Mas vale lembrar que rotina não deve ser sinônimo de rigidez e inflexibilidade. “A rotina é muito importante para algumas crianças, mas acredito que não existe desenvolvimento socioemocional se o professor tiver rigidez e não puder ter a flexibilidade de, a depender do clima da sala, parar e mudar a atividade. Se houver disponibilidade, naquele momento, pode-se até mudar o ambiente para transformar o clima”, avalia Daniela.  

Quando as crianças aprendem a expressar suas emoções, isso também contribui para o trabalho do professor, afinal esse processo de autoconhecimento ajuda as crianças a desenvolverem a linguagem e ampliarem seu repertório de palavras, o que permite enriquecer suas devolutivas ao contar como estão sendo afetadas pelo que está sendo realizado na escola. Com isso, o docente tem mais elementos para entender se as atividades e experiências que propõe para a turma estão funcionando ou se algo precisa ser ajustado.   

Pontos de atenção 

Crie ambientes de diálogo e acolhimento. O risco de expor as crianças ao estimular que elas contem sobre seus sentimentos existe, de acordo com Beatriz, na medida em que questões emocionais são tratadas com julgamentos que elas não conseguem compreender. Por isso, “o importante é o professor sempre criar um clima de diálogo e acolhimento no grupo. Isso ajuda as crianças a entenderem que sempre podemos aprender com as nossas experiências e com as dos nossos colegas e que, para isso, é preciso muita escuta, abertura e empatia”.  

Esteja atento para não fazer julgamentos. “É essencial que o professor evite julgar e achar que ele é quem mais entende a criança. É preciso acreditar que as crianças são capazes de falar de si mesmas e que precisam apenas de oportunidade e apoio”, afirma Beatriz. 

Garanta a participação de todos. Na educação infantil, nomear e criar espaços para que as crianças reconheçam suas emoções é essencial para o desenvolvimento socioemocional. Esse processo pode variar, de modo que algumas crianças precisarão de mais tempo e apoio, especialmente aquelas que enfrentam barreiras. Por isso, use estratégias acessíveis para garantir que todas possam participar das vivências e se desenvolver no seu próprio ritmo. 

Evite o “mito da eterna criança”. É fundamental partir da perspectiva de que todas as crianças podem aprender. Em oposição a isso, um dos erros mais comuns, segundo Daniela, é o “mito da eterna criança”. “É aquela relação em que o professor sente um misto de dó e culpa ao lidar com uma situação desafiadora, tratando a criança de uma forma muito carinhosa, mas também extremamente protetora e infantilizada, às vezes inadequada para aquela faixa-etária.” 

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Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade 

O projeto “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade” é uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Movimento Bem Maior, o Instituto Ambikira e o Instituto Machado Meyer, e visa a formação de educadores, gestores escolares e técnicos de secretarias municipais de Educação de todo o país. O objetivo é potencializar práticas e políticas públicas locais que proporcionem uma educação de qualidade para todas e todos.  

Dividido em diferentes etapas, que vão de 2023 a 2025, o programa é realizado em parceria com dez secretarias municipais de Educação, que representam as cinco macrorregiões do Brasil: Maués (AM), Óbidos (PA), Campo Formoso (BA), Gado Bravo (PB), Irauçuba (CE), Lucas do Rio Verde (MT), Cajati (SP), Patos de Minas (SP), Alvorada (RS) e Canguçu (RS).    

No ano passado, a equipe do IRM conduziu uma formação semipresencial com cerca de 400 educadores desses municípios, que incluiu orientação e apoio para a elaboração e o desenvolvimento de cem projetos inclusivos, com foco na promoção do protagonismo e da autonomia de todos os estudantes.  

Neste ano, as ações formativas do projeto Alavancas tiveram como público-alvo técnicos das secretarias municipais de Educação. O objetivo era que, ao final do percurso, cada rede elaborasse uma política pública voltada à educação inclusiva. Em 2025, está previsto o monitoramento das políticas elaboradas neste ano e uma pesquisa sobre os impactos gerados pelas formações, além de dois cursos que serão disponibilizados na plataforma de formação do IRM. 

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