Brincadeiras sensoriais favorecem inclusão em escola de Minas Gerais 

Por explorarem os cinco sentidos, atividades ajudam todas as crianças a compreender melhor o próprio corpo e suas capacidades e a desenvolver a percepção de mundo 

Três bebês estão em pé, um ao lado do outro. Juntos, eles exploram materiais de diferentes tamanhos e texturas, como flores de plástico e uma campainha, acoplados a uma estrutura de madeira presa a uma parede azul.
Bebês brincam com objetos colocados em parede. Crédito: Eva Cristina de Sousa Tavares

“Tchau, vou pá paia!”, diz Isabel, de três anos, antes de entrar em uma das salas do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Eunice Maria Caixeta, em Patos de Minas (MG). Ao atravessar a porta, o encantamento é imediato: “Uau! É o fundo do mar!”. Com satisfação, Arthur, que tem a mesma idade, se deslumbra com os peixes projetados na parede. “Alá o tubarão!”, exclama Bernardo, com brilho nos olhos, enquanto Lívia aprecia a textura da areia nos pés. Juntos, eles exploram e se maravilham com as possibilidades do espaço, repleto de elementos relacionados ao mar. 

Essas são algumas das observações registradas pelas professoras do CMEI Tia Nicinha, como o centro é conhecido, durante as atividades do projeto “Contextos Sensoriais”, desenvolvido ao longo de 2023. O objetivo era despertar a multissensorialidade em uma proposta planejada para garantir a inclusão de todas as crianças da escola, uma vez que prevê a oferta de materiais e objetos diversos para exploração das turmas, com cada criança escolhendo com o que quer interagir.   

A iniciativa surgiu como um dos resultados da participação das educadoras no curso de formação realizado no âmbito do projeto “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade”. O programa é uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Movimento Bem Maior, Instituto Ambikira e o Instituto Machado Meyer. Essa experiência contribuiu para a construção de um olhar mais amplo e inclusivo para as práticas da instituição.   

Simone Costa, pedagoga, psicopedagoga e tutora do curso de formação do Alavancas, acompanhou todas as etapas de desenvolvimento do projeto no CMEI e explica que experiências sensoriais são fundamentais na Educação Infantil porque ajudam a criança a compreender melhor o próprio corpo e suas capacidades, além de desenvolver habilidades cognitivas e de consciência corporal. Ao explorar diferentes objetos e texturas, todas as crianças aprimoram as habilidades de coordenação motora (fina e grossa) e olho-mão (que permitem realizar movimentos que necessitam do uso dos olhos e das mãos ao mesmo tempo) e aos poucos vão ampliando o repertório, já que atividades sensoriais envolvem o estímulo aos cinco sentidos: tato, visão, audição, olfato e paladar”, ressalta a especialista em educação inclusiva.   

De acordo com Silvana Augusto, assessora pedagógica para redes municipais de educação infantil e professora do Instituto Singularidades, práticas como essa também colaboram para o desenvolvimento da percepção de mundo das crianças. “Quanto mais pudermos favorecer a exploração de diferentes materiais, texturas e cheiros, e de tudo aquilo que possa informar sobre o mundo e os sentidos, é melhor para a criança, porque é nessa idade que isso está se constituindo”, frisa a especialista, que também atua como coordenadora pedagógica da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental do Colégio São Domingos.

Formação como ponto de partida

O CMEI Tia Nicinha atende cerca de 220 crianças de seis meses a três anos e 11 meses de idade, das quais oito são pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e uma tem surdez e mobilidade reduzida. Há dez anos, havia apenas duas matrículas do público-alvo da educação especial na creche. Com uma demanda crescente, a equipe escolar precisou repensar as práticas para garantir a inclusão de todas as crianças.   

“Eu via a dificuldade que todos nós, profissionais, tínhamos para lidar com o aumento desse público, principalmente porque a gente não tinha formação em educação especial inclusiva”, lembra a professora Eva Cristina de Sousa Tavares, que atua na creche há dez anos. “Sempre tive vontade de desenvolver algum trabalho para mudar esse cenário, mas achava que, sem formação, seria impossível. Até que a nossa escola foi selecionada para o Alavancas.”

“No processo formativo, é fundamental que os educadores olhem para a própria realidade e procurem aliar os conteúdos abordados nas aulas à prática pedagógica. Durante o curso do Alavancas, eles foram desafiados a elaborar e desenvolver um projeto que envolvesse todos os estudantes, partindo de uma situação desafiadora”, conta Katia Cibas, coordenadora de Formação do IRM.   

O primeiro passo para elaborar um projeto para a escola, nessa ação sugerida como parte da formação do programa, foi fazer um diagnóstico para entender melhor o contexto escolar na perspectiva da educação inclusiva. Uma das conclusões foi a de que algumas crianças, principalmente aquelas com deficiência, não participavam de todas as atividades propostas pelas educadoras. “Isso ocorria porque não criávamos ambientes inclusivos. Mas só fomos perceber isso após a formação do Alavancas, quando passamos a ver coisas que antes não víamos”, explica Eva.  

A professora conta que teve uma ideia de projeto, modificada conforme foi compreendendo o que, de fato, eram práticas inclusivas. “Primeiro, pensei em montar uma sala de sensorialidade só para as crianças com deficiência, mas no processo de construção do projeto, vi que isso não seria inclusivo”, pontua. A decisão, então, foi de por traçar como objetivo o planejamento de espaços para brincadeiras sensoriais, um tipo de atividade que poderia incluir todas as crianças. 

Em uma sala escolar, uma cabana feita com um tecido vermelho abriga luzes e flores de plástico sobre um tapete. No cômodo, há galhos com folhas verdes, estruturas de madeira e outros objetos menores espalhados pelo chão e, na parede, a projeção de uma cachoeira.
A cada duas semanas, a sala sensorial ganha um novo contexto para que as crianças possam explorar diversos materiais, objetos e cenários. Crédito: Roberta Gomes.

Aprendendo pelos sentidos 

O projeto teve como ponto de partida a criação de um corredor sensorial na entrada da escola, com diferentes materiais para que todas as crianças pudessem experimentar diversas sensações.   

Por ser um ponto de passagem, no começo, as crianças exploravam pouco o espaço. Ao perceberem isso, as educadoras passaram a planejar momentos específicos para levar os pequenos até ali e deixá-los livres para brincar com os elementos. E não parou por aí.   

Hoje, a escola conta também com a sala sensorial, um espaço que, a cada duas semanas, ganha um novo tema, pensado a partir das observações dos professores, para que as turmas possam experimentar brincar com diversos materiais, objetos e cenários [veja no próximo tópico dicas de quais recursos escolher e como organizá-los]. “A sala é preparada para que a criança fique mais tempo explorando os contextos temáticos, com a mediação de uma educadora”, explica Eva.  

Vale pontuar que, para construir aprendizagens, as crianças precisam de tempo e oportunidades para repetir a atividade. Assim, elas podem tentar explorar algo no ambiente que não chamou a atenção na primeira vez ou verificar se vão ter as mesmas sensações com o que já brincaram antes. Daí a importância de incorporar a proposta na rotina, como atividade regular ou permanente. Aos poucos, pode-se modificar os elementos, o que permite aos pequenos compararem com o que vivenciaram antes (quais materiais provocam as mesmas sensações?) e ampliar o seu repertório de experiências (que textura nova é esta?). E, assim, eles vão se apropriando de conhecimentos e saberes.   

“Durante as atividades, as crianças estão sempre acompanhadas por um educador, que vai orientando sobre o que pode ou não fazer, pensando em questões de segurança, por exemplo”, conta Eva. “Mas a ideia é deixá-las livres para brincar e explorar, e fazer intervenções conforme o interesse demonstrado por elas”, complementa. Isso é essencial na construção da autonomia.   

Silvana Augusto concorda que a proposta fica mais rica quando acompanhada de educadores. “Pela mediação de um adulto, é possível ir colocando mais uma camada de significação. Por exemplo, a criança põe a mão no gelo, e aí alguém diz: ‘Nossa, que frio! Que gelado!’, e todas as palavras que têm a ver com isso. Ou seja, o adulto também vai narrando para a criança essas experiências que ela está vivendo, nomeando as coisas, ampliando o vocabulário, atribuindo outros significados e a ajudando a entrar nesse universo”, complementa.   


Como escolher e organizar os materiais  

Ao trabalhar com a sensorialidade na educação infantil, é preciso considerar alguns pontos de atenção, tais como:  

Segurança – Como crianças pequenas exploram também pelo paladar, é indispensável atentar-se a objetos pontiagudos, se têm terminações com proteção, se são muito pequenos de modo que possam ser engolidos e se, de fato, são seguros.   

Higiene – Todo material precisa passar, regularmente, por um processo de higienização e organização. Além disso, é importante que sejam materiais que secam bem e não acumulam fungos e bactérias.   

Diversidade – Um dos pontos mais interessantes desse tipo de proposta é poder apresentar uma diversidade de materiais que permitam às crianças conhecer as várias sensações que o corpo pode produzir.  

Organização – Os materiais podem ser organizados por elementos, como um cesto exclusivo para materiais naturais que estimulam os sentidos, proporcionando experiências táteis e olfativas agradáveis. Outra abordagem possível é organizar, por exemplo, itens presentes na cozinha e que produzam sons agradáveis ao serem tocados, que apresentem texturas interessantes para explorar manualmente e diferentes pesos e tamanhos. Vale, ainda, levar em conta a temperatura dos objetos, agrupando os mais frios, feitos de metal ou alumínio, e os mais quentes, feitos de madeira. 


Desde que o projeto começou, além do fundo do mar, em que algumas das reações ao ambiente estão descritas no início deste texto, um dos temas que mais se destacaram foi o “parque dos dinossauros”. “As crianças adoram dinossauros, por isso aproveitamos o interesse nesses animais para organizar um contexto na sala sensorial”, relembra a professora Eva.    

Para isso, foram utilizadas folhas secas, pedras e terra para cobrir o chão. Pequenos dinossauros de plástico foram espalhados pela sala e uma caixa de som reproduzia o que seriam os sons emitidos pelos animais enquanto um retroprojetor exibia árvores e folhagens nas paredes.   

As educadoras fizeram uma caixa de luz, com um tampo de vidro com proteção nas extremidades, para que as crianças pudessem observar de perto os elementos. Elas também colocaram um nebulizador com cheiros de floresta, o que deixou o ambiente mais vívido. “É uma imersão completa. Alguns acham que realmente estão vivendo aquela situação, de tão aguçados que ficam os sentidos.”    

Atualmente, a escola não tem uma sala somente para a montagem dos contextos sensoriais e, por conta disso, a solução encontrada foi usar a sala dos professores, de modo que, periodicamente, o cômodo é destinado à exploração das crianças. Nesse caso, os docentes se reúnem, de maneira improvisada, no refeitório da escola.   

Cinco crianças pequenas estão em volta de uma mesa de luz. Cada uma delas observa e interage com elementos de diferentes tipos, como folhas, flores e dinossauros de brinquedo. Uma floresta é projetada na parede da sala, onde outros materiais, como galhos e madeiras, foram espalhados para exploração das crianças.
Educadoras aproveitaram o interesse das crianças por dinossauros para criar um contexto temático sobre a floresta e os animais. Crédito: Roberta Gomes

Agrupamento, observação e registro  

“O espaço é para todas as crianças, mas, como a sala é pequena e temos de observá-las para registrar esses momentos, levamos pequenos grupos de quatro crianças com idade de seis meses a dois anos. Com o grupo das maiores, a partir dos três anos, o tema começa a ser conversado na sala para que elas já saibam do que se trata quando chegarmos a uma nova sessão de exploração. Nessa hora, conversamos sobre o que tem ali e o que podem ou não pegar”, explica a professora.    

De acordo com Silvana, o momento de observação é um dos mais importantes em atividades como essa. “Tudo o que é notado enquanto as crianças estão explorando é subsídio para alimentar novas propostas. Logo percebemos se a exploração está ficando entediante. Quando isso acontece, é hora de trocar o contexto, pois significa que elas já sabem o suficiente sobre aquilo que exploraram”, sugere a especialista.  

No CMEI Tia Nicinha, as professoras utilizam uma pauta de observação para acompanhar o desenvolvimento de cada criança e contam com o apoio de uma estagiária para registrar as percepções sobre aquelas com algum tipo de deficiência. 

“É um recurso que serve para avaliar o que funciona ou não e, assim, poder replanejar as atividades”, diz Eva. Um exemplo disso é que, no começo da estruturação do corredor sensorial, as educadoras perceberam que as crianças não interagiam com os materiais dispostos no chão, especialmente porque chegavam calçadas. “Vimos que essa proposta não deu certo e, a partir do que foi observado, decidimos explorar outras possibilidades, como montar uma parede com objetos diversos (veja na primeira foto deste texto)”, conta a professora.     

Nenhuma criança para trás

Para a professora, as experiências têm sido exitosas, já que o desenvolvimento das crianças é evidente. “Observamos que as crianças autistas, em especial, ficam extasiadas quando estão na sala e não querem sair, tamanho o encantamento. Foi com esse projeto que eu realmente aprendi o que é inclusão”, diz a educadora.   

Silvana Helena da Mota, coordenadora do Núcleo de Educação Infantil da Secretaria de Educação de Patos de Minas, afirma que a iniciativa deu tão certo que a rede está levando os contextos sensoriais para outras escolas do município. Antes disso, a equipe técnica se reuniu com os gestores escolares para apresentar a proposta e se colocar à disposição para colaborar com a implementação.   

“Todos abraçaram a ideia, e foi melhor do que esperávamos”, lembra a técnica, que foi diretora do CMEI Tia Nicinha por quatro anos. Para ela, não restam dúvidas sobre o quanto o projeto é inclusivo. “Antes, a gente focava sempre em duas propostas: uma para as crianças sem deficiência e uma para as crianças com deficiência. No Alavancas, vimos que estávamos fazendo errado e, graças a essa iniciativa, pudemos mudar as nossas práticas”.    

As mudanças impactaram toda a comunidade escolar. Luciene dos Reis Silva, atual diretora da escola, ressalta que os contextos sensoriais aproximaram os pais e responsáveis da escola. “Como algumas crianças não conseguem contar tudo que acontece na sala sensorial, as famílias ficam curiosas e nos procuram para conhecer de perto o projeto. Todos ficam encantados e alguns se tornam muito mais presentes, inclusive apoiando a continuidade das atividades porque percebem os resultados”, assegura a gestora.   

Em outras realidades 

Para Silvana Augusto, brincadeiras sensoriais podem – e devem – ser desenvolvidas em qualquer realidade. Antes, é preciso olhar atentamente para o contexto no qual a escola está inserida, observar o entorno e a cultura do lugar para, então, perguntar quais são as atividades sociais mais presentes que envolvem sensorialidade.    

“O nosso contato com o mundo é sensorial e se dá não só no plano das ideias, mas também pela atuação de um corpo presente neste mundo. Por isso, vale se perguntar: quais são as práticas sociais e culturais da nossa comunidade e quais delas estão mais presentes no dia a dia das crianças? Quais contextos sensoriais essas práticas podem contextualizar? Esse é o principal cuidado para se ter”, completa.   

 


Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade  

O projeto “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade” é uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Movimento Bem Maior, o Instituto Ambikira e o Instituto Machado Meyer, e visa a formação de educadores, gestores escolares e técnicos de secretarias municipais de Educação de todo o país. O objetivo é potencializar práticas e políticas públicas locais que proporcionem uma educação de qualidade para todas e todos.   

Dividido em diferentes etapas, que vão de 2023 a 2025, o programa é realizado em parceria com dez secretarias municipais de Educação, contemplando todas as macrorregiões do Brasil: Maués (AM), Óbidos (PA), Campo Formoso (BA), Gado Bravo (PB), Irauçuba (CE), Lucas do Rio Verde (MT), Cajati (SP), Patos de Minas (SP), Alvorada (RS) e Canguçu (RS).     

No ano passado, a equipe do IRM conduziu uma formação semipresencial com cerca de 400 educadores desses municípios, que incluiu orientações e apoio para a elaboração e o desenvolvimento de cem projetos de práticas pedagógicas inclusivas, com foco na promoção do protagonismo e da autonomia de todos os estudantes.   

Neste ano, as ações formativas do projeto Alavancas terão como público-alvo técnicos e profissionais de órgãos ligados ao executivo, ao legislativo e ao judiciário dos municípios participantes. O objetivo é que, ao final do percurso, cada rede elabore uma política pública de educação especial na perspectiva inclusiva. Em 2025, está previsto o monitoramento das políticas elaboradas no ano anterior e uma pesquisa sobre os impactos gerados pelas formações, além de dois cursos autoinstrucionais que serão disponibilizados na plataforma de formação do IRM.


Este conteúdo faz parte de uma série de reportagens sobre os projetos desenvolvidos no âmbito do “Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade”, iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM).  

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