Educador com TEA estimula e amplia olhar inclusivo em escola de SP

Inspirado por um professor de história, Leonardo Duarte Salomão escolheu a carreira docente com o intuito de reconhecer e apostar nas potencialidades dos estudantes

Foto do professor Leonardo Duarte Salomão, de 23 anos de idade, dentro de uma sala de aula falando com seus alunos. Ele é um homem de pele clara, tem cabelo e barba escuros e usa óculos de grau. Ele veste uma blusa azul de mangas compridas, uma camisa de listras por cima, uma calça jeans azul e calça sandálias. Fim da descrição.
Em sala de aula, professor Leonardo Duarte Salomão busca ter um olhar atento e acolhedor para as necessidades de todos e de cada estudante da turma. Crédito: Raoni Maddalena

Ele chegou no começo do ano letivo de 2024 com o intuito de lecionar para uma turma de 3º ano do ensino fundamental. Desde então, sua presença tem sido fundamental dentro e fora da sala de aula. É assim que o professor Leonardo Duarte Salomão, de 23 anos, é visto por colegas e estudantes da Escola Municipal (EM) Prof. José Antonio Verzegnassi, em Ilhabela, no litoral norte de São Paulo. Isso porque o educador tem contribuído, a partir da sua própria história de vida, com a construção de uma cultura inclusiva no ambiente escolar. 

Há cerca de quatro anos, quando estava na faculdade de pedagogia, Leonardo recebeu o diagnóstico de transtorno do espectro do autismo (TEA). Desde então, dá palestras em que aborda, dentre outros temas, suas vivências como pessoa com deficiência.  

A escolha pela carreira docente ocorreu quando ele ainda cursava o ensino médio. “Senti que alguém me enxergava”, referindo-se Leonardo ao professor de história que o incentivou a participar de atividades de estudo de matemática, disciplina da qual sempre gostou. “Quando senti que ele realmente acreditava em mim, foi uma sensação de ‘Caramba, ele me viu! Eu existo para alguém’. Então a minha mente foi mudando em relação a várias coisas. Vi a importância disso e passei a querer ser professor para, assim como ele, enxergar as potencialidades dos meus alunos”, explica. 

Ao revisitar seu processo de escolarização, Léo, como é conhecido, lembra como foi difícil a relação com colegas e educadores. “Desde pequeno, eu sabia que destoava das outras crianças com as quais convivia, mas naquela época não se falava em autismo.” Ele conta que, durante os anos em que foi aluno da educação básica, foi vítima de violência física e psicológica por parte de outros estudantes e não teve o acolhimento esperado pelos adultos — nem os da escola, nem os de casa. 

“Eu era visto como um menino esquisito e atrapalhado que tirava notas altas e fui perseguido. Muitas vezes, chorava sem entender o motivo, o que era visto como frescura. Assim, fui reprimindo muitas emoções ao longo dos anos”, recorda. 

Leonardo conta que suspeitava ser uma pessoa com TEA e que o diagnóstico chegou em um momento difícil, pois ele enfrentava depressão e crises de pânico. Durante o estágio na área, o então estudante de pedagogia percebeu que seu quadro estava se agravando e que, por isso, precisava de ajuda profissional. Foi então que, a partir de conversas com sua psicóloga e de uma série de avaliações com outros especialistas, a suspeita se confirmou.  

Para ele, a confirmação não impactou de forma significativa suas relações. “As pessoas mais próximas a mim, como amigos e familiares, também supunham que eu tinha uma condição diferente. O que mudou foi que, com o diagnóstico, passamos a ter um nome para isso”, afirma. Por outro lado, não demorou para que o novo entendimento sobre si mesmo começasse a refletir não só na vida pessoal como na profissional — o que traria, também, novos significados aos seus dias.   

“Chá com as famílias”: o começo de uma parceria  

O primeiro contato de Leonardo com a EM Prof. José Antonio Verzegnassi ocorreu durante a pandemia, quando foi convidado a participar de um dos encontros do projeto “Chá com famílias na escola”. Idealizada por Bruna Maia, diretora da unidade, e Cássia Aparecida de Castro Dedate, professora do atendimento municipal de educação especial e inclusiva (Ameei), a iniciativa surgiu durante a pandemia de Covid-19 com o objetivo de acolher familiares de alunos com deficiência por meio de rodas de conversa. 

 “Leonardo veio até a escola como convidado, conversou com os familiares e nos trouxe novas perspectivas sobre o autismo. Ao ouvi-lo, repensamos, por exemplo, nosso modo de lidar com situações estressantes que ocorriam com alguns de nossos estudantes. Ampliamos nossa compreensão de que primeiro precisamos entender e acolher esses alunos para, depois, criar estratégias de aprendizagem. Daquele dia em diante, passamos a querer que Leonardo viesse trabalhar com a gente. Felizmente, isso se tornou possível neste ano, quando ele foi contratado e começou a dar aulas na nossa escola”, lembra Bruna. 

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 A coordenadora pedagógica Natália Ruiz lembra que a chegada de Leonardo impactou — e provocou — toda a escola. “No começo, era algo bastante intrigante para mim, porque eu nunca tinha sido coordenadora de uma pessoa com TEA e fiquei pensando em como eu deveria agir”, recorda. Mas com o tempo a parceria foi se construindo de forma orgânica. “Como ouvia o Léo nas rodas de conversa, fui percebendo o que o incomodava. Assim, fomos criando juntos uma rotina que fazia — e faz — sentido. Por exemplo, conversas em particular e com hora marcada costumam deixá-lo mais ansioso. Então, combinamos que algumas comunicações seriam feitas por e-mail. Hoje vejo que fui descobrindo o Léo e como ser sua coordenadora”, frisa.  

Para Natália, a presença do professor Leonardo fortaleceu o compromisso da escola de ser cada vez mais inclusiva. Dos 384 estudantes matriculados nos anos iniciais do ensino fundamental, 34 são público-alvo da educação especial. “Com a chegada dele, educadores e funcionários mudaram a forma de olhar para pessoas com deficiência, isto é, sem rotulá-las. A presença dele colabora com a ampliação desse olhar”, afirma Natália. 

Ela comenta, por exemplo, mudanças que a equipe escolar adotou para eliminar barreiras. “Dentro da sala dos professores, o barulho diminuiu muito. Às vezes, eu tenho vontade de abraçá-lo quando estou empolgada com algo, e logo me contenho. Isso porque nós todos sabemos que o ruído e o contato físico, por exemplo, são coisas que, geralmente, causam desconfortos a ele”, diz.  

Para a diretora Bruna, a presença de Leonardo tem estimulado e ampliado o olhar de todos para a inclusão. “Tê-lo como professor em nossa escola confirma que todos são capazes, que escola é para todos, que a deficiência não é um limitador e que o professor ensina não só conteúdos, o professor ensina para a vida”, ressalta.   

Olhar atento e acolhedor para todos e cada um 

Hoje, Leonardo é um dos 129 professores regentes com TEA que atuam na educação básica no Brasil, de acordo com dados do Painel de Indicadores da Educação Especial do Instituto Rodrigo Mendes (IRM). Embora o número seja pequeno quando comparado ao universo dos mais de 2 milhões de educadores que atuam no país, esse valor já foi bem menor: em 2019, havia somente 14 professores regentes com TEA atuando nesse campo no país.  

Leonardo tem um aluno com deficiência em sua turma, com o mesmo diagnóstico que o seu. A vivência e o trabalho com o público-alvo da educação especial fazem com que o educador tenha um olhar atento e acolhedor para as necessidades de todos e de cada um. 

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Exemplo disso é que, no começo do ano letivo, um de seus alunos com TEA ficava desconfortável toda vez que via a lousa repleta de palavras. “Ele tinha pavor, dizia que as letras o assustavam. Aos poucos, fui tentando acessá-lo de diferentes modos, e nada funcionava. Até que passei a sentar ao seu lado e fazer parte das atividades junto com ele, com a sua caneta favorita, conversando sobre as emoções que estava sentindo. Com o tempo, as crises foram diminuindo drasticamente, e hoje ele faz a maioria das atividades sozinho”, conta Leonardo. Para ele, esses momentos de acolhimento colaboraram para o desenvolvimento da autonomia e socialização do garoto que, até então, não interagia muito com os colegas. 

“Sempre trabalhei com estudantes com deficiência e, quando falamos de deficiência, logo surge a questão do diagnóstico. Mas o diagnóstico é só uma interpretação clínica. Há pessoas que passam por muitas questões emocionais e têm dificuldades reais em sala de aula. Então, não é sobre uma deficiência específica, mas, sim, sobre enxergar meu aluno de maneira integral. Acredito que esse é o papel de um professor”, enfatiza.  

No cotidiano escolar, Leonardo “empresta a sua voz para os alunos que não falam”, segundo Natália, uma vez que três dos estudantes com TEA são não verbais. “Aprendemos a nos comunicar com esses alunos pelo olhar. E o Léo nos ajuda a entendê-los, a nos mostrar o que podem estar sentindo em determinados momentos”, explica.   

Um dos momentos mais ricos de troca entre os colegas acontecem durante o horário de trabalho pedagógico coletivo (HTPC), realizado uma vez por bimestre. “Em muitos dos nossos encontros formativos, ele compartilha o que os professores faziam com ele na educação básica e o quanto isso ficou marcado como algo a não ser feito com um estudante. Isso com certeza enriquece a nossa prática diária e nos possibilita não repetir erros que foram cometidos com ele enquanto aluno”, comenta a coordenadora.      

Construções e reflexões sobre a docência 

A diretora Bruna, que atua na educação há 20 anos, sete deles na gestão escolar, afirma que “tem sido lindo ver Leonardo descobrir as dores e as alegrias da docência”. Uma das coisas que mais chamam a atenção de todos na escola, segundo ela, é “a maneira como ele interage com cada aluno e o quanto se disponibiliza para cada criança, de modo que, aos poucos, também vai se deixando ser tocado, beijado e abraçado”.    

Para Léo, tudo o que vem acontecendo em sua trajetória pessoal e profissional tem embasado algo maior. “O meu sonho de vida para a minha carreira é poder influenciar a educação de maneira ainda mais direta, seja dando palestras ou escrevendo um livro, e, para isso, eu quero viver a educação”, completa.   

De acordo com ele, um dos momentos mais marcantes como educador, até agora, aconteceu há alguns meses. “Uma aluna me perguntou: ‘Professor, por que você dá aula?’. Respondi: ‘Porque um professor me deu uma boa aula e eu queria ser igual a ele’. Ela rebateu: ‘Ele era muito, muito bom?’ e eu respondi que sim. Ela disse: ‘Então você já é igual a ele’. Sei que nem todos os dias minhas aulas são boas, mas acho que isso é um bom sinal”, brinca Léo.  

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