Pela primeira vez em 13 anos como professora de língua portuguesa, recebi em minha classe um estudante cego. Nas primeiras semanas na Escola de Educação Básica São José, localizada na cidade de Herval D’Oeste (SC), o jovem Danilo* revelou-se um garoto tímido. Em sala de aula, isolava-se em sua carteira e apenas respondia com “sim”, “não” ou “pode ser”. Tive muitas dúvidas e inseguranças. Após muito estudo, pesquisas, tentativas e erros, superei o medo inicial e consegui desenvolver um projeto de literatura inclusiva, que acabou por envolver todas as turmas do 7º e 8º anos da unidade.
O início da convivência entre Danilo e eu foi desafiador. Embora fosse responsável em relação aos estudos, o adolescente de 17 anos necessitava de estímulos para participar das atividades junto aos demais colegas e para apresentar trabalhos. Mas como eu poderia intervir? Era preciso buscar novas alternativas metodológicas de ensino-aprendizagem. Logo, minha primeira ação foi procurar a professora Deise Kruhs, do atendimento educacional especializado (AEE), para obter mais informações.
Comecei a observar como o aluno se portava nas aulas do AEE no contraturno para conhecê-lo melhor. Na sala regular, passei a chamá-lo mais vezes para participar em conjunto com os colegas e instigava-o a falar. Mas durante aquele ano letivo, usamos um determinado livro didático que não contava com uma versão em braile. Por isso, o aluno passava toda a manhã somente escutando as explicações dos conteúdos nas aulas e, no período da tarde, desenvolvia as atividades na sala de recursos multifuncionais (SRM), único lugar onde tinha acesso a materiais acessíveis.
O ideal era que ele pudesse acompanhar os exercícios com os demais, de forma inclusiva. Foi um ano de muito esforço por parte da docente do AEE que, junto à gestão escolar e à Gerência de Educação do Estado, lutou para viabilizar exemplares em braile. O material que nos era enviado era sempre diferente da versão impressa em tinta, mas não desistimos.
Buscando parcerias
No ano seguinte, ao iniciarmos nosso planejamento, buscamos desenvolver uma prática pedagógica que realmente oportunizasse a todos o desenvolvimento de suas competências de leitura e escrita. Como as atividades anteriores não surtaram o efeito desejado, procuramos alternativas para proporcionar a participação plena do educando com deficiência visual.
A solução foi buscar parcerias com entidades não governamentais que nos deram subsídios para colocar em prática um projeto de literatura inclusiva.
Nossa primeira parceria foi estabelecida com o escritor Laé de Souza, que desenvolve projetos de incentivo à leitura junto a escolas em todo o país. Ele nos doou 76 exemplares da obra “Nos bastidores do cotidiano” nas versões impressa em tinta e em braile. Trata-se de uma coletânea de crônicas bem-humoradas sobre situações corriqueiras. São histórias que abordam questões ligadas ao cotidiano dos alunos, como preconceito, ética, cidadania, bullying, entre outros.
Outras instituições nos apoiaram voluntariamente, como a Coordenadoria do Curso de Ciências Humanas da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), a Gerência de Educação da Regional de Joaçaba e a Fundação Dorina Nowill.
Literatura inclusiva
Após apresentar o livro para a classe, demos início ao projeto de literatura inclusiva com as seguintes etapas: leitura silenciosa e oral dos textos, reflexão sobre os assuntos abordados, estudo linguístico, morfológico e semântico e observação de neologismos.
O envolvimento da turma na discussão foi muito positivo. Antes desse momento, foram poucas as vezes em que os colegas presenciaram Danilo lendo em voz alta e participando das atividades. Depois dessa conversa inicial, a sala decidiu apresentar os livros em braile para as demais classes do 7º e 8º ano. Essa foi uma iniciativa muito importante, pois nos revelou como era urgente adotar novas estratégias: por não conviverem com o estudante cego, muitos sequer haviam escutado sua voz e acreditavam que ele não falava.
Nas etapas seguintes, passamos a envolvê-los na “nova” realidade que acabavam de descobrir. Eles manusearam a obra em braile e aprenderam alguns fundamentos do sistema de escrita e leitura com o próprio Danilo, que lhes explicou como as combinações de pontos formavam as letras. Todos reunidos em determinados períodos interagiram lendo e relendo, escrevendo e reescrevendo seus próprios textos, observando erros gramaticais, concordância entre palavras e orações, coerência, enredo, tempo, espaço, narradores etc.
Como professora, eu já havia trabalhado, em anos anteriores, com alunos com outras deficiências. Receber Danilo foi, para mim, uma experiência nova. Quando a insegurança passou, a convivência e admiração pelo empenho que o adolescente demonstrava em querer aprender e buscar o conhecimento me fez superar todas expectativas negativas que, em certos momentos, se fizeram presentes.
*Nome fictício.
Projeto participante do Prêmio Educador Nota 10 de 2012.