Michelle Murta se tornou a primeira professora e doutora com deficiência auditiva da UFMG depois de uma experiência inclusiva no ensino superior
Meu nome é Michelle Murta, mas sou conhecida somente como Murta, e adoro esse sobrenome, pois tem uma força muito grande na construção da minha identidade, porém nem sempre foi assim.
Sou uma mulher de 41 anos, nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, mas com um mês de vida fui para a cidade natal de minha mãe, Salinas, interior do estado mineiro. Foi lá que cresci ao lado dela, que tem deficiência auditiva, a mesma deficiência que eu tenho, diagnosticada somente anos depois de meu nascimento.
Trajetória escolar
No fim da década de 1980, por volta dos meus cinco anos, consegui ser matriculada em uma escola comum, algo que não acontecia naquela época para pessoas com deficiência. Minha tia era professora e me ajudou a iniciar os estudos no ensino fundamental e a minha trajetória na escola comum.
Sempre gostei de ir à escola e de tudo relacionado ao material escolar, como lápis, caderno, o cheiro das atividades que eram passadas no mimeógrafo (método antigo de impressão das atividades até existirem as impressoras). Também gostava de escrever, mas tinha dificuldade na letra cursiva e utilizo a letra de forma até hoje. O contato com os colegas e professores era possível, já que conseguia fazer leitura labial e ouvia um pouco.
Inicialmente, minha família, a escola e eu não sabíamos que eu já tinha uma perda auditiva, algo que estava prejudicando minha aprendizagem e minha autoestima por não conseguir ir bem nos estudos. Por conta disso, fui reprovada cinco vezes no ensino fundamental.
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Aos doze anos, comecei a perceber que eu tinha deficiência auditiva. Essa descoberta foi importante, tendo em vista que eu acreditava não ter desenvolvido a parte cognitiva e, por isso, achava que não conseguia aprender os conteúdos. Outro ponto importante foi não ter tido estratégias pedagógicas acessíveis.
Dentro desse cenário, eu parei de estudar e só retornei anos mais tarde, na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nos primeiros anos nessa modalidade de ensino, já com a deficiência diagnosticada, eu conseguia assimilar tudo o que era ensinado e fui me desenvolvendo nas disciplinas, com apoio dos educadores.
Por conta de questões pessoais, tive que parar os estudos novamente, e somente me formei na EJA com 24 anos, em 2005. Um ano antes, tive o primeiro contato com a Língua Brasileira de Sinais (Libras), que se tornou minha língua de fato.
Ensino superior e o sonho de ser professora
Um dos meus sonhos era ser professora e, depois de formada, fui atrás dessa realização. Passei no vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que tem um polo em Minas Gerais, o CEFET-MG, para cursar Letras/Libras em 2008.
A vivência no ensino superior me mostrou os desafios e os avanços da educação inclusiva no Brasil. Na graduação, com o início de políticas públicas para a inclusão escolar, tive quatro anos muito positivos, uma vez que a universidade teve um olhar inclusivo por trabalhar, por exemplo, com Libras. Os colegas já tinham certo conhecimento da língua de sinais e os professores, total domínio, o que me permitiu acompanhar a turma em todos os semestres.
Após formada, entrei para o mestrado de Letras pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais, em 2015. No mesmo ano, o sonho de ser educadora começou a se tornar realidade: fui selecionada no concurso público para ser professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Como queria voltar para Belo Horizonte, decidi prestar um novo concurso para professora, agora para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em 2016, consegui aprovação e me tornei a primeira educadora surda da universidade.
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Doutorado em Libras
Depois de realizar o desejo de ministrar aulas na UFMG, também comecei a estudar na instituição. Dessa vez, no doutorado em Linguística Teórica e Descritiva. Foi um período de altos e baixos, por conta de barreiras comunicacionais.
Entretanto, no meio do caminho, entendendo a minha situação, a gestão da universidade disponibilizou um orientador que dominava a língua de sinais, a fim de que eu pudesse terminar os estudos. E realmente essa ação foi fundamental. O orientador Guilherme Lourenço foi essencial para que eu pudesse desenvolver minha tese e defendê-la na minha língua, assim, concluindo o doutorado. Em 2022, com três intérpretes de Libras e uma plateia virtual de mais de cem pessoas, apresentei e defendi a tese e, com louvor, fui aprovada, me tornando a primeira pessoa surda a conseguir o título de doutora na UFMG.
Hoje sou professora de Libras no curso Letras/Libras, formado por estudantes surdos e ouvintes. Torço para que um dia eles possam também ser professores e multiplicadores da inclusão, ensinando Libras para crianças, jovens e adultos.
Apesar dessa longa trajetória, minha história não termina aqui, há muito a caminhar, conquistar e expandir.
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