Akô Tinunkiâ: encontro entre o brincar e as culturas indígenas
Por meio de um intercâmbio com escola indígena da Bahia, professoras da EMEI CEU Uirapuru (SP) valorizam as infâncias e a diversidade
Lupa, slime e marshmallow. Gemas de vidro, jogo de varinha e gibi. Tintas, pincéis e papéis coloridos. O que mais cabe em uma caixa de brincar? Desenhos, pinturas e livros. Maracás, cocares e bonecas de meia. Petecas, conchas e sementes. Será que cabe também subir em árvore, andar de canoa, ouvir uma história, cantar e dançar? De quantas texturas, sonoridades, cheiros e memórias é feita uma “akô tinunkiâ” (caixa de brincar em tupi-guarani)?
Promover o encontro entre as culturas da infância e o conhecimento sobre os povos indígenas foi a inspiração das professoras Vanessa Dias da Silva e Zely Ferreira da Rocha ao criarem o projeto “Akô Tinunkiâ” — A Caixa do Brincar, desenvolvida na EMEI CEU Uirapuru, na zona oeste da capital paulista. A ideia nasceu por conta da participação das educadoras no Programa Especial de Ação (PEA) da escola, que desde 2023 tem promovido estudos e práticas de educação antirracista envolvendo o corpo docente, as crianças atendidas e suas famílias.
“O acesso e o respeito à diversidade é direito das crianças. A ideia era aproximá-las de um povo indígena específico, para que conhecessem a cultura e a história deles”, conta Vanessa. “Mas como trabalhar essa temática na educação infantil? Para que participassem concretamente, precisaríamos partir do cotidiano das nossas turmas”, pondera Zely.
Recém-ingressa na educação infantil, Zely já havia trabalhado a temática étnico-racial com estudantes do ensino fundamental, investigando com eles as riquezas culturais e geográficas do continente africano. Mas as culturas indígenas estavam em um horizonte distante para a educadora. “Apesar de eu ter ascendência indígena, nunca fui a uma aldeia nem tive proximidade com um povo originário”. Após algumas pesquisas, Zely se encantou com uma proposta de intercâmbio. “Compartilhei a ideia e as minhas dúvidas com Vanessa, e fomos amadurecendo a proposta”, revela.
A princípio, as educadoras cogitaram procurar uma escola de Parelheiros, na zona sul de São Paulo, onde há várias aldeias indígenas. Mas, por meio da pesquisadora e professora indígena Edna Gama do Nascimento, que já havia feito um trabalho no CEU Uirapuru, decidiram convidar para participar do projeto educadoras do Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Acuípe de Baixo (Ceitab), em Ilhéus (BA), onde Edna desenvolve sua pesquisa de doutoramento.
O que é PEA
Todas as escolas municipais de São Paulo têm de desenvolver um projeto voltado às necessidades formativas dos docentes. Para isso, no início de cada ano, a coordenação e a gestão escolar levantam com a equipe as demandas formativas a serem abordadas ao longo do ano e propõem um tema gerador de estudo (saiba mais).
Brincadeiras, escuta e protagonismo das crianças
O projeto envolveu duas turmas de quatro a seis anos da pré-escola, totalizando 55 crianças. Dessas, duas são público-alvo da educação especial. Uma terceira aguarda o laudo. As propostas foram realizadas com os dois grupos juntos.
O objetivo inicial das educadoras da EMEI CEU Uirapuru era montar com as crianças uma caixa de brinquedos e outros objetos do cotidiano delas e enviar para a turma do colégio baiano para, em troca, receber outra caixa de lá.
O projeto aconteceu de março a junho e se desenrolou em cinco etapas:
- Primeira: contato com lideranças de um povo que aceitasse a proposta de fazer um intercâmbio sobre a cultura do brincar;
- Segunda: troca de experiências sobre as rotinas e as vivências entre as crianças dos dois territórios;
- Terceira: apresentação do contexto histórico, cultural e geográfico do povo tupinambá na Bahia para as turmas de São Paulo;
- Quarta: preparação e organização dos materiais para compartilhar com as crianças tupinambás;
- Quinta: troca das caixas com brinquedos e sugestões de brincadeira.
A escuta das crianças foi fundamental para a participação efetiva delas no projeto. Para isso, as professoras promoveram conversas sobre o que mais elas gostavam no dia a dia. Elas também perguntaram quais eram as curiosidades das crianças sobre os povos indígenas, o que elas gostariam de saber sobre a vida dos colegas tupinambás e quais as dúvidas e opiniões sobre o projeto.
“Junto a isso, vieram os contextos afetivos de cada uma. Quando falamos que a aldeia fica em Ilhéus, na Bahia, algumas crianças disseram que tinham familiares dessa região. Todas essas contribuições foram se articulando, como se fosse um quebra-cabeça. Assim foi se revelando o protagonismo das crianças, que se sentiram cada vez mais parte do projeto. Elas perguntavam: ‘Professora, hoje a gente vai ver alguma coisa do povo tupinambá?’”, conta Vanessa.
Uma caixa, diversas formas de brincar
A seleção dos brinquedos que comporiam a caixa a ser enviada à Bahia foi uma aprendizagem em si. “Todos os objetos foram escolhidos junto com as crianças. Todas queriam colocar algo na caixa, o que foi bonito de se ver, porque em geral elas são muito apegadas aos seus brinquedos”, revela Zely. As educadoras também traziam propostas, e as crianças iam dizendo do que gostavam ou não. “Na unidade, temos gemas de vidro como opção para as brincadeiras, então perguntamos: ‘Será que os amigos lá de Ilhéus vão gostar de receber essas gemas?’. E eles acharam a ideia boa”, relembra a professora.
Eles também colocaram na caixa diversos tipos de papel que costumam usar no cotidiano escolar. “Além dos objetos, enviamos sugestões de como usar o que estava na caixa e fotos de produções das crianças. Por exemplo: mandamos um bloco de massinha e, junto, a imagem de um bichinho modelado por elas.”
Uma preocupação das professoras foi enviar uma quantidade de objetos que contemplasse todas as crianças envolvidas no projeto. Pensando nisso, mudaram a ideia original de enviar livros — o que deixaria a caixa pesada pela quantidade necessária para atender toda a turma — por gibis. “Também produzimos um livro que chamamos de álbum de fotos, mostrando nossa história. Apresentamos a turma, as brincadeiras, o território onde estamos inseridos e todos os espaços da nossa escola. Achamos importante materializar em forma de livro essas imagens, que já tínhamos enviado por WhatsApp para as professoras, porque fazem parte do contato estabelecido entre as crianças”, conta Vanessa.
Quando a caixa de Ilhéus chegou à EMEI, foi uma bela surpresa: estava repleta de brinquedos, cocares, instrumentos musicais e diversos objetos artesanais confeccionados pelas próprias crianças tupinambás junto com suas professoras. Livros, desenhos e camisetas com estampas representativas da cultura indígena também recheavam a caixa, além de sementes e penas que trazem as cores, os odores e as texturas do litoral sul baiano.
De muitas vozes se faz um intercâmbio
De início, os objetivos das educadoras em relação ao intercâmbio giravam em torno da montagem e do envio da caixa de brincadeiras. “Não tínhamos grandes expectativas de que o projeto teria reciprocidade”, afirma Vanessa.
Mediada pela pesquisadora Edna, que estava em Ilhéus, a comunicação entre as educadoras dos dois territórios acontecia via WhatsApp. “Não foi possível realizar chamadas em vídeo por causa da diferença no horário dos turnos das turmas das duas escolas e pela dificuldade de acesso à internet no local. Elas nos enviaram áudios e vídeos e nós mandamos o jornal da escola mostrando os espaços e também as fotos. Dessa forma apresentamos os contextos e construímos um vínculo, quase como um correio”, conta Vanessa.
Com o diálogo, muitas questões surgiram: “Fomos percebendo que precisávamos conhecer mais aquela cultura e o cotidiano daquela escola e das educadoras”, revela Zely.
Escola indígena rural, estabelecida em uma aldeia, tem o tupi e o português em seu cotidiano, atende crianças indígenas e não indígenas, desde a educação infantil até o ensino médio, em turmas multisseriadas: a realidade do Ceitab é muito diversa da EMEI. Também o perfil das professoras era uma incógnita para as docentes de São Paulo. “Como ainda não tínhamos vídeos ou fotos delas, queríamos saber, por exemplo, se todas eram indígenas e se tinham estudado em escolas indígenas”, conta.
Por fim, Vanessa e Zely elaboraram um roteiro de perguntas. Em resposta, receberam um vídeo gravado por Edna, que entrevistou as professoras do colégio tupinambá com base no roteiro enviado. “Apesar da distância, ainda é possível trocar saberes e experiências e falar um pouco da dinâmica de trabalho nesta escola”, diz Edna em uma das cenas.
O diálogo com as educadoras indígenas foi uma grata surpresa para as professoras da EMEI CEU Uirapuru. “Elas realmente aceitaram nosso convite, envolveram as crianças na proposta, produziram a caixa com elas e tiveram o trabalho de enviá-la a nós. Foi uma entrega efetiva ao nosso projeto”, celebra Zely. “A gente queria só agradecer e dar um abraço em cada uma, porque sentimos que elas foram muito generosas”, afirma Vanessa.
Desafios e aprendizados
Para as professoras Vanessa e Zely, o grande desafio na realização do projeto foi o tempo. “Iniciamos esse intercâmbio em março, mas o trabalho foi ganhando força em maio e junho. No próximo semestre, pretendemos trabalhar com mais tranquilidade para observar mais as interações e fazer mais intervenções no sentido de ampliar os conhecimentos com a exploração das novas brincadeiras”, revela Vanessa.
Durante o intercâmbio, toda semana as professoras reuniam as duas turmas e realizavam atividades ligadas às culturas indígenas, ao brincar e à natureza. As conversas sobre o povo tupinambá renderam produções que mesclam desenhos de casas, animais e pessoas à colagem de conchinhas. As crianças mostraram grande entusiasmo com as vivências ao ar livre, entre elas uma brincadeira sensorial com folhas, a experiência de balançar na rede e a de fazer uma fogueira.
As trocas com as crianças e as educadoras na escola indígena geraram reflexões sobre o fazer educativo. “Vendo como as culturas indígenas respeitam a terra, as águas, as árvores e os animais, a dimensão ambientalista ganhou mais força para mim”, diz Zely. “As crianças amam estar na natureza, subir em árvore e brincar na terra. Elas precisam viver essas experiências. Pretendo promover ainda mais essas vivências com minhas turmas”, complementa.
Ao ampliar os espaços e momentos de vivência e aprendizagem além da sala de aula, multiplicam-se as condições de criação, reflete Vanessa. “Depois que fizemos a fogueira com as crianças, vemos várias delas imitando os gestos e coletando madeiras. Nós abrimos possibilidades de outros contextos para as brincadeiras, como, por exemplo, fazer comidinha com plantas e sementes ao brincar de casinha. As crianças buscam essas experiências, pois elas são naturalmente investigativas.”
Além do respeito e dos conhecimentos que os povos indígenas têm em relação à natureza, o contato com outras línguas, ritmos e brincadeiras permite que as crianças ampliem seus horizontes culturais. “Se não damos a oportunidade para que entrem em contato com a diversidade, elas não vão dar valor a outras experiências e apenas seguirão reproduzindo os mesmos costumes, gostos e padrões”, ressalta Zely.
A importância de respeitar os povos indígenas e não reproduzir preconceitos foi um assunto abordado ao longo do projeto: “Chamar todos os povos indígenas de índios e a ideia da ‘perninha de índio’ são questões sobre as quais falamos com as crianças. Mas na verdade a gente já não percebia esse vocabulário e comportamentos neles”, afirma Vanessa. “Uma hipótese é que isso seja fruto de um trabalho educativo anterior, resultado da formação que os novos educadores têm recebido, e que está materializado nessas crianças. Elas percebem que, para além das diferenças, os tupinambás são crianças iguais a elas”, reflete Zely.
“De hoje em diante, que fique combinado que não haverá mais ‘índio’ no Brasil. Fica acertado que os chamaremos indígenas, que é a mesma coisa que nativo, original de um lugar. Certo? Bem, calma lá. Alguém me soprou uma questão: mas índio e indígena não são a mesma coisa? Pois é. Não, não são. Digam o que disserem, mas ser um indígena é pertencer a um povo específico, Munduruku, por exemplo. Ser ‘índio’ é pertencer a quê? É trazer consigo todos os adjetivos não apreciados em qualquer ser humano. Ela é uma palavra preconceituosa, racista, colonialista, etnocêntrica, eurocêntrica. Acho melhor não a usarmos mais, não é?”
(Daniel Munduruku, in Currículo da Cidade: Povos indígenas – orientações pedagógicas, 2023)
“Esse projeto me ajuda a entender o quanto os diferentes contextos dialogam em torno da cultura do brincar na educação infantil. Essa articulação é possível quando se tem intencionalidade, quando há uma proposta e um planejamento”, destaca Vanessa.
Todo mundo na brincadeira
Durante o projeto Akô Tinunkiâ, todas as crianças participaram. “A ideia é que toda a turma faça as atividades. É claro que analisamos as necessidades de cada criança e oferecemos apoio individualizado, se for necessário. Mas o objetivo é eliminar as barreiras para que todas participem das propostas que estão acontecendo.”
Em geral, quando a proposta foge muito da rotina, algumas crianças com transtorno do espectro do autismo (TEA) ficam incomodadas. Para que isso não ocorra, a estratégia da equipe escolar é comunicar o que está planejado. “As professoras procuraram sempre antecipar as propostas para as crianças, respeitando os tempos de cada uma”, afirma a diretora Michele Pereira da Silva.
A EMEI conta com uma professora do atendimento educacional especializado (AEE). “Essa profissional traz um olhar e um cuidado a mais para a nossa escola. Se necessário, pensamos juntas em como garantir a participação das crianças com deficiência para que possam brincar e interagir da mesma maneira que as demais”, revela Michele.
A articulação da equipe escolar é um aspecto central para que a inclusão seja efetiva. “Nós nos organizamos à medida que as demandas surgem. Por exemplo, nesse projeto, quando as professoras decidiram fazer uma fogueira com as crianças no pátio, eu desci junto para ajudar, pedi para a professora do AEE e outra professora regente acompanharem, além de acionarmos um brigadista. Para apoiar uma das crianças com TEA que precisa de ajuda na locomoção, disponibilizamos uma auxiliar de vida escolar [AVE, nome utilizado pela rede municipal para os profissionais de apoio escolar]”, revela a diretora Michele.
A professora Vanessa também destaca a importância de que as atividades propostas sejam significativas para todas as crianças: “Percebíamos que, quando o assunto era o intercâmbio, elas prestavam muita atenção. Uma das crianças com TEA, quando a proposta não agrada, não fica no lugar e procura outro foco de interesse, mas, no momento de abertura da caixa, estava muito compenetrada, porque aquilo fez sentido para ela.”
Intencionalidade, planejamento e parceria são essenciais
A EMEI CEU Uirapuru atende 400 crianças, dentre as quais mais de 20 são pessoas com deficiência e cerca de dez estão em investigação. Além de pessoas com TEA, há matrículas de crianças com transtorno opositor desafiador (TOD) e de usuárias de cadeira de rodas ou com restrição de mobilidade. “Obviamente, não temos todos os recursos que gostaríamos para atender a todas as necessidades. Temos na equipe uma professora do atendimento educacional especializado (AEE), o que, para uma escola do nosso porte, é pouco. Além disso, contamos com duas estagiárias remuneradas, estudantes de pedagogia, que dão suporte nas salas com matrículas do público-alvo da educação especial”, considera a diretora.
Há na equipe três auxiliares de vida escolar, que ajudam na alimentação, locomoção e higienização de crianças com deficiência. “Elas são contratadas pela Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) e são parceiras dos nossos projetos. Tanto elas como as agentes de busca ativa escolar (Abaes) participam das nossas reuniões formativas — momentos nos quais ouvem os relatos das professoras e ficam sabendo dos contextos e dos objetivos de cada uma de nossas ações. A ideia é formar essa equipe de maneira articulada com o projeto político-pedagógico da escola.”
Como recursos de acessibilidade, a escola dispõe de rampa e elevador, de modo que todas as crianças conseguem participar de todas as atividades e acessar todos os espaços. “Recentemente fizemos uma reforma no parque e adquirimos mais balanços, um brinquedo que os pequenos adoram. Já tínhamos um balanço de ferro que comporta a cadeira de rodas, mas a criança brincava ali sozinha. Sem dúvida a compra foi bem-intencionada, mas o equipamento não propiciou a inclusão dela na turma”, afirma Michele. Pensando nisso, desta vez, no momento da compra, a escola solicitou balanços que pudessem ser utilizados por todos. “Diante da nossa demanda, o prestador criou um balanço de borracha com suporte que oferece o apoio necessário para que todas as crianças brinquem juntas. Agora, todas participam, incluindo a que utiliza cadeira de rodas”, completa a diretora.
Como resultado da articulação da equipe escolar, no decorrer do ano, os avanços são visíveis, segundo as educadoras: crianças que tinham dificuldade de fala e de socialização começaram a conversar, brincar e a interagir mais com as professoras e as outras crianças.
“A cada semestre, apresentamos relatórios individuais para as famílias e fazemos a comparação do quanto cada criança se desenvolveu”, conta Michele. “Temos uma criança não oralizada que utilizava cadeira de rodas. Ela teve uma melhora tão significativa na locomoção que hoje não usa mais a cadeira de rodas. Esse é o último ano dela na EMEI. É muito gratificante ver os avanços dela, perceber como as outras crianças a acolheram e acompanhar a dedicação das professoras e de toda a equipe para que isso acontecesse”, celebra a diretora.
A professora Vanessa que o diga. “Nós, educadoras, somos muito capazes de propor experiências significativas a todas as crianças, independentemente da condição financeira, estrutural ou física.”
Formação para uma educação que valorize a diversidade
“A busca de viver em harmonia com as diferenças culturais e étnicas precisa se iniciar desde cedo, já na educação infantil”, defende Zely.
Mas, para desenvolver práticas educacionais significativas em torno da diversidade, a formação docente é fundamental. Para Priscila dos Santos Silva, coordenadora pedagógica da EMEI CEU Uirapuru, entender melhor as histórias e os contextos diversos também é essencial para o acolhimento e o desenvolvimento das crianças locais. “Nós temos uma diversidade cultural significativa em nossa escola. Atendemos crianças de outros estados e países, como Angola, Bolívia, Haiti e Venezuela. Temos famílias que falam outras línguas, porque muitas ainda não dominam o português.”
Em 2023, a EMEI elegeu como foco do PEA a temática da descolonização do currículo e da educação antirracista. “A ideia é dialogar com essas outras culturas em nossas práticas pedagógicas. Mas não basta falar de diversidade, é preciso estudar os referenciais da educação étnico-racial e o currículo da cidade para se embasar nesses documentos”, ressalta a coordenadora pedagógica.
Além de uma pesquisa em livros e outras fontes, é importante ouvir as pessoas que vivem essas experiências diversas, pondera a educadora. “Ao longo de 2023, entrevistamos muitas famílias para ouvir suas histórias, porque elas nos ajudam a entender melhor o contexto das crianças que atendemos. Identificamos muitas oriundas de outros estados e de regiões muito próximas de territórios indígenas. Também temos crianças bolivianas de origem indígena.”
As contribuições dos povos originários, portanto, estão presentes na EMEI CEU Uirapuru, que inclusive tem nome de origem tupi-guarani. Já em 2023, a temática indígena foi abordada na formação docente da escola, em diálogo com o currículo da cidade de São Paulo, que orienta a realização de práticas de educação antirracista nas escolas da rede municipal. “Trouxemos um grupo indígena de Pernambuco para fazer um encontro com as professoras. Com essa formação e com as necessidades, interesses e dificuldades que cada professora identificou em seu grupo de crianças, foram surgindo projetos em cada turma”, afirma a coordenadora Priscila.
Uirapuru: a palavra vem da expressão tupi-guarani wirapu ´ru ou guirapuru, usada para nomear aves da família Troglodytidae e que significa “pássaro que não é pássaro”, devido ao seu canto harmônico e encantador. O nome do pássaro também é título de uma obra do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos.
A professora Vanessa se lembra bem dessa formação. “Um dos trabalhos resultantes foi o desenho de grafismos em camisetas, pensando nos significados desses símbolos para os povos originários e abordando a importância da igualdade e do respeito a essas culturas.”
Foi no contexto dessa formação que a EMEI recebeu o Grupo de Pesquisa Linguagem, Memória e Subjetividade (GPLIMES), coordenado pela professora Elizabeth Braga, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). O grupo, que estuda as narrativas de memória e arquitetura dos CEUs, tem acompanhado a escuta das famílias na escola. Entre os pesquisadores está a doutoranda Edna.
Em 2024, a descolonização do currículo e das práticas de educação antirracista continuam sendo tratadas nas formações, agora com foco nas diferentes formas de brincar em contato com a natureza e nos quintais. A ideia é não apenas trazer essa temática nos estudos, mas explorar cada vez mais as práticas ao ar livre com as crianças. “Falar sobre isso também é uma maneira de descolonizar o currículo, ainda muito focado nos espaços convencionais da sala de aula. Estamos tentando sair desse quadrado e apresentar às crianças outras possibilidades. Temos um espaço aberto com muitas árvores, o que permite explorar as brincadeiras ao ar livre. Para muitas crianças, esse é o único quintal que elas têm”, afirma Priscila.
Escuta e diálogo para acolher a diversidade
O diálogo com as famílias para compreender as diferentes realidades das crianças é fruto de um trabalho cuidadoso das gestoras e educadoras na EMEI. “Dar lugar de fala e valorizar a cultura de origem são ações fundamentais para promover a aproximação com as famílias e a integração da escola com o território. O olhar sensível para as necessidades e singularidades de cada criança, mesmo que seja uma dentro de uma turma, faz toda a diferença, não só na vida da criança, mas da família como um todo”, afirma a diretora Michele.
No caso dos migrantes, o envolvimento da família gera benefícios concretos para a criança, contribuindo para seu desenvolvimento integral e para a socialização e a inclusão na escola. “Um exemplo: nós temos famílias bolivianas e haitianas com as quais sentíamos muita dificuldade de comunicação por conta da língua”, conta a diretora. “É um trabalho conjunto entre gestão e professoras pensar formas para contornar esse obstáculo, como escrever os comunicados em linguagem acessível ou no idioma dessas famílias para que elas nos entendam e se aproximem da escola”, complementa.
Para o acolhimento adequado, no início de cada ano letivo a equipe escolar faz um mapeamento das diversidades. “Antes de recebermos as crianças, as educadoras analisam os prontuários, buscando saber as origens e as singularidades das famílias. Elas também procuram ler os relatórios enviados pelos Centros de Educação Infantil (CEIs) para compreender a bagagem que as crianças já trazem, suas necessidades e possíveis dificuldades. Quando o ano inicia, as educadoras procuram se achegar mais às famílias e aprofundar a relação”, afirma Michele.
De acordo com as necessidades das crianças de sua turma, cada professora pensa em mecanismos para se aproximar delas e de suas famílias. “No final do expediente, procuramos chamar os responsáveis para conversas individuais, assim eles se sentem mais à vontade. Procuramos falar de forma mais pausada e, se não entendemos o que dizem, pedimos para repetirem”, conta a diretora. “Havia uma família que só se comunicava em Libras e, como temos uma professora que entende a língua de sinais, ela se disponibilizava para fazer um atendimento individual.”
Embora a equipe escolar não possa garantir que sempre haverá profissionais com conhecimentos específicos para atender todas as demandas, todos trabalham considerando que o olhar e a escuta cuidadosos são fundamentais para encontrar caminhos de modo a acolher todas as crianças e suas famílias.