A chegada de Breno, garoto de 15 anos que apresenta transtorno do espectro autista (TEA), a uma turma do 8º ano na Escola Municipal Oswaldo Cruz marcou o início de uma experiência inédita para professores, funcionários e equipe gestora. Situada no bairro Jardim América, região da cidade de Belo Horizonte (MG) marcada por grande pobreza e vulnerabilidade social, a escola atendia cerca de 800 crianças e adolescentes do ensino fundamental. Até então a escola nunca havia sido frequentada por um estudante com autismo.
Após muita dificuldade para encontrar material bibliográfico que nos informasse como lidar com esse novo contexto, percebemos que a efetiva aprendizagem do estudante somente seria possível se conhecêssemos de perto suas capacidades e habilidades.
Na prática, o trabalho de interlocução de saberes entre a equipe de professoras dos conteúdos de matemática, ciências, história, língua portuguesa e língua inglesa e do atendimento educacional especializado (AEE) nos mostrou que, para que o aluno pudesse aprender, nossa prática pedagógica só poderia ser conjugada em sala de aula. Assim, aos poucos, fomos entendendo as características de Breno e os desafios políticos e sociais envolvidos em sua inclusão.
As referências teóricas que sustentaram nosso trabalho transitaram pelas bibliografias de autores como Lev Vygotsky, segundo o qual a linguagem tem um papel fundamental nos processos de ensino e aprendizagem, e ainda em Piaget, para quem “o pensamento do sujeito é construído com a participação fundamental do grupo social ao qual está inserido”. São ainda usados como fundamentos as ideias de David Ausubel sobre a aprendizagem significativa e de Paulo Freire, que nos dá a dimensão político-pedagógica de que “é possível mudar” e também de que “o ensino dos conteúdos implica o testemunho ético do professor”.
Conhecendo o aluno
Como posso ensinar um adolescente que repete o que eu falo? Como vou saber o que ele sabe? Como me comunico? Quais atividades desenvolvo? Como posso saber se ele aprendeu? Diante daquele novo desafio, muitas dúvidas como essas surgiram. Em diálogo com o AEE, a equipe de docentes regulares percebeu que, em primeiro lugar, era necessário estabelecer uma visão geral da situação. Levantamos, então, os seguintes questionamentos: Quem era o Breno? Quais conhecimentos ele já tinha e que poderiam contribuir para a aquisição de novos conteúdos?
As primeiras semanas de aula foram, portanto, dedicadas à observação. O adolescente fazia movimentos repetitivos e ritmados (estereotipia), reiterava palavras sempre com a mesma tonalidade (ecolalia) e tinha dificuldades para se expressar. Sempre que era posto diante de alguma situação adversa, se mostrava inflexível. Segundo a mãe, o diagnóstico de TEA foi dado tardiamente, aos 8 anos, após a família ter transitado por várias avaliações médicas.
Em sala de aula, percebemos que o estudante sabia ler e escrever em ritmo lento e tinha dificuldades em entender ordens e combinados. Além disso, ele apresentava muita facilidade em utilizar dispositivos eletrônicos e sempre andava com músicas do Pink Floyd em seu celular. Copiava tudo que era posto no quadro, mas não construía nenhuma relação de aprendizado com o conteúdo. Era detalhista e caprichoso – gostava de desenhar, colorir, recortar, colar, etc. – mas, frequentemente, não completava as atividades.
Flexibilizações
Passamos a questionar: como tornar Breno visível sem recorrer a soluções baseadas na visão caricata de pessoas com autismo? Após o diagnóstico inicial, então, definimos alguns métodos para usar aquelas informações em estratégias pedagógicas mais atrativas. Passamos a organizar uma rotina na qual antecipávamos as atividades que o aluno realizaria – apresentando fotos do ambiente, de pessoas e dos objetos que ele encontraria – e articulamos os conteúdos das aulas com seus gostos e interesses pessoais.
• Matemática: para que não criasse resistência, a professora conversava com Breno antes das aulas, mostrando o que seria feito e o que ela esperava dele. A preocupação em não descontextualizar suas atividades com relação às da turma foi constante. Por isso, os momentos de avaliação aconteciam em grupo, como a ida até o quadro para a realização dos exercícios, o que também o ajudou nos âmbitos da socialização e da comunicação. Em algumas semanas, sua postura em sala de aula mudou – ele sabia o que iria acontecer a contava com o apoio dos colegas.
• Ciências: a utilização de recursos de imagens capturou a atenção do adolescente. Com perguntas mais curtas e objetivas, a docente conseguiu obter respostas coerentes e os momentos de repetição de palavras diminuíram. As aulas tornaram-se mais interativas e visuais e isso resultou em melhor aproveitamento de toda a classe. As avaliações passaram a ter mais gravuras e ilustrações. Ao longo do ano, percebemos que ele tinha dificuldades em compreender bem as questões, por isso, ao realizar as provas, ele era mediado pelo auxiliar de apoio.
• Inglês: as atividades de vocabulário tornaram-se mais lúdicas, com utilização de recursos de colorir, cortar, colar, montar, completar, ligar e desenhar. As avaliações para o estudante eram diferentes na forma (verificação do caderno, trabalhos individuais e em grupo), mas o conteúdo cobrado era o mesmo de seus colegas. Seu gosto pela banda de rock britânica foi aproveitado em exercícios nos quais a turma deveria completar os espaços em branco das canções. Ele não só cumpria a atividade rapidamente como também expressava muito prazer e satisfação em cantar as músicas para a turma.
• História: as fotografias foram os principais instrumentos de curiosidade e de aprendizagem do aluno. A professora montava pequenos textos sobre a matéria, inseria gravuras e solicitava a ele que apontasse as frases que representassem a imagem. O exercício oposto também funcionou bem: ela apontava o conteúdo e pedia para que ele fizesse a correspondência entre uma série de ffotos. Como ele adora desenhar e colorir, os mapas foram muito explorados. Ele os pintava e identificava os países, continentes.
• Língua Portuguesa: trabalhar a definição de verbo de modo abstrato, enquanto noção de um estado, foi uma tarefa complicada. Bem mais simples foi mostrá-lo como uma classe de palavras que indicam ações e fenômenos da natureza – algo bem mais concreto para Breno. Para o estudo de tempos verbais, a professora solicitou que ele selecionasse figuras de revistas que representassem ações que poderiam ter acontecido com ele em momentos diferentes de sua vida e que ele desejaria que um dia ocorressem. Uma outra experiência foi a de criar atividades que introduzissem a ideia de sujeito. Para isso, a professora procurava inserir imagens e frases relacionadas àquilo que ele gostava de fazer.
Avaliação e perspectivas
Por algumas semanas, o adolescente ficou sem o auxiliar de apoio. Durante esse período, os colegas se revezaram para acompanhá-lo nas aulas e na hora do recreio. Com o passar do tempo, contudo, ele adquiriu autonomia tanto na sala de aula, quanto em outros espaços da escola (cantina, quadra, pátio, sala de informática) e fora dela (museus, clubes, cinema, etc.). Durante todo processo, houve uma forte preocupação em não descontextualizar as atividades do estudante em relação às dos outros colegas da turma. As capacidades e habilidades trabalhadas eram as mesmas para todos, porém a forma de cobrá-las era diferente.
Há muito ainda a ser feito se não quisermos ficar omissos e negligentes à história de segregação e exclusão. Há um sujeito que aprende, há um sujeito que interroga a nossa prática. Breno nos mostrou que muita coisa é possível quando os professores não consideram a deficiência, mas sim o sujeito.
Projeto 3º colocado no 1º Prêmio Paratodos de Inclusão Escolar.