Alinhadas com projeto de pesquisa, atividades da disciplina potencializaram percepções em relação à construção de identidade e ao olhar para o outro
Os códigos de uma performance artística muitas vezes são considerados pouco acessíveis para o senso comum. O corpo, ao criar gestos ou mesmo ficar estático, é um universo que pode potencializar experiências estéticas e de aprendizagem significativas.
Pensando nisso, durante o ano de 2019, três turmas de 9º ano da EMEF Profª Marina Melander Coutinho, em São Paulo (SP), investigaram a linguagem performática no sentido de desafiar o próprio corpo como meio de expressão e pesquisa. Ao mesmo tempo, desenvolveram o projeto de pesquisa proposto pela Secretaria Municipal de Educação (SME), intitulado de Trabalho Colaborativo Autoral (TCA).
Por definição, o TCA pretende promover o protagonismo juvenil. Uma vez que entendemos a aprendizagem escolar como ação acolhedora do condensado de experiências que formam o estudante/cidadão em todas as esferas da vida.
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Desse modo, idealizei que cada grupo, a partir de seu tema (racismo, feminicídio, saúde pública, entre outros), desenvolvesse uma ação performática, por meio do projeto “Corpo performático: imagens e palavras”. A ideia era aprofundar questões da pesquisa e fatorar o potencial da arte nas percepções em relação à própria construção identitária e ao olhar para o outro.
Embora cada grupo tivesse seu próprio orientador, a abordagem da pesquisa permitiu o alicerce para a articulação com o território e equipamentos do entorno da escola. Cada entrevista ou local visitado pelos adolescentes e seus orientadores eram trazidos para a aula e se tornavam material para roteiro performático. Assim, a todo o momento buscou-se pensar na pesquisa e na arte ajudando a problematizar e combater questões locais.
Arte e vida
Para iniciar os estudos, buscamos referências no livro didático de arte “Projeto Mosaico”, utilizado como um dos materiais de aula, que tratassem de questões como arte, vida e cotidiano.
Como havia o interesse de explorar os temas da pesquisa autoral e a criação artística, sugeri que investigassem o capítulo “Performance”. Deixei que olhassem as imagens e fizessem os apontamentos sobre as primeiras impressões acerca do tema.
Paralelamente, começamos a mapear no livro didático de arte imagens que pudessem disparar o desejo de aprofundamento. Chegamos, assim, no conceito de performance, com destaque para o trabalho de Marina Abramovic.
No vídeo da apresentação “A artista está presente” (2012), analisamos o papel do corpo como suporte da arte e investigação dos limites pessoais. Abramovic, em uma composição com uma mesa e duas cadeiras, se mantém imóvel encarando quem desejar ficar frente a frente com ela.
Refletimos sobre a exploração dos limites entre arte e vida e a forma da linguagem da performance atrair o espectador em ações que nos trazem reflexões sobre o cotidiano.
Também como estratégia de aproximação do repertório visual dos estudantes, pedi a eles que registrassem por escrito imagens presentes em séries, filmes, canais do YouTube e outras redes que, de alguma maneira, chamassem sua atenção.
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Corpo como suporte da arte
Após esse primeiro contato com os conteúdos, os estudantes se agruparam para a escolha de integrantes e temas de pesquisa. Dessa maneira, passamos a debater sobre aquilo que é anterior ao resultado da obra de um artista, tendo como base alguns trabalhos realizados pelos estudantes do ano anterior, enfatizando a relação entre pesquisa e arte.
Cada grupo elencou assuntos de seu interesse, e começamos a tratar expressão do corpo e conceito de performance/o trabalho do performer por meio das imagens do livro didático, bem como a definição do conceito. Deixei que elaborassem a prática considerando as primeiras percepções sobre o material. A atividade foi gravada e compartilhada com os colegas para análise do potencial estético e performático.
Aprofundamento da performance
Em seguida, os estudantes tiveram liberdade para buscar suas próprias referências visuais, audiovisuais ou literárias para a performance. Assim, surgiram para estudo materiais como o videoclipe “Eminência Parda”, de Emicida, para falar sobre racismo; Cartas de Van Gogh para Theo, no tema depressão; e o material de divulgação “O que o SUS oferece”, para abordar saúde pública.
Ao final desse primeiro percurso, nos reunimos em roda de conversa na sala de arte para comentar as ações. Fiz isso com cada turma. Aqui podiam comentar sobre as próprias experiências e reflexões.
Com as ideias determinadas, fizemos um mapa visual da pesquisa do TCA para ter de forma mais clara a relevância do tema e as referências coletadas até o momento. E, assim, ficamos habilitados a seguir para a próxima etapa: exercícios de improviso para a performance, como jogos com palavras, respiração e caminhada no espaço escolar.
Nesse momento, os alunos passaram a trabalhar com roteiros de ação e puderam expressar suas percepções durante o processo por meio de registros em vídeo, gráfico e oralização de seus saberes. Também foram propostas atividades coletivas, envolvendo a expressão do corpo, oportunizando que todos pudessem contribuir à sua maneira.
Os jovens utilizaram seus celulares para a gravação, edição e compartilhamento do material. Levando esses recursos em consideração, abordamos o potencial das redes sociais para a divulgação de trabalhos artísticos e para inspiração e, ainda, como a tecnologia em si facilita o processo criativo.
A partir dessas estratégias pedagógicas, os grupos começaram a aproximar as ideias desenvolvidas nas aulas da disciplina de arte com o tema da pesquisa autoral. Os assuntos abordados foram discussões importantes na atualidade e que estão presentes na realidade dos estudantes, como depressão na adolescência; abandono paterno; formas de preconceito; apropriação cultural/racismo estrutural; saúde pública/SUS; e ética na internet/cyberbullying.
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Evidências de aprendizagem
Quando tratamos de evidências de aprendizagens, podemos elencá-las de maneira direta e indireta. Nas duas, temos aspectos importantes a serem analisados. No caso do ensino de arte, há sempre que se considerar o campo da subjetividade.
Nem todas as aprendizagens são mensuráveis ou podem ser constatadas de maneira objetiva. Diante de uma perspectiva que se questiona “ao final do processo o estudante aprendeu…”, algumas apresentações se estenderam para o dia da exibição da pesquisa do Trabalho Colaborativo Autoral.
Já a aprendizagem que podemos chamar de não localizável, mas igualmente potente, pode ser descrita com a experiência, continuidade e satisfação dos estudantes. Compartilhamento de materiais sobre o assunto via redes sociais, o orgulho em ver sua performance publicada no portal da SME e as mensagens com as devolutivas e agradecimentos são evidências de que a aprendizagem foi significativa.
Outras evidências foram as apresentações realizadas na Mostra Cultural da escola. Aberta para a comunidade escolar, o evento contou com algumas apresentações performáticas desenvolvidas no projeto de arte, que foram apreciadas pelos familiares e responsáveis.
Além disso, uma das performances, que envolveu debate sobre racismo estrutural, foi discutida pela equipe docente da escola em horário de formação, nomeado como Jornada Especial Integral de Formação (JEIF).
O projeto também impactou outras escolas, uma vez que o grupo também promoveu o debate na EMEF Constelação do Índio, a convite de uma educadora da unidade.
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O aprender é singular
Todas e todos participaram das aulas, opinando dentro de seu repertório e conversando com o seu grupo de pesquisa. A análise de características individuais, respeitando o interesse de cada um, também fez parte do processo.
Já no início do projeto, demonstramos que estudantes com e sem deficiência puderam se expressar amparando-se nas diversas linguagens que desenvolvemos para o projeto: os jogos teatrais, o mapa visual com desenhos e a utilização de aparatos tecnológicos para tirar fotos e fazer entrevistas em vídeo.
Essa experiência educativa se mostrou um vasto campo de descobertas, especialmente no que tange ao ensino de arte. Cada grupo, palavra trocada, escuta tem texturas que ressignificam o percurso e tornam aprender algo singular.
Estudante como protagonista
O projeto “Corpo performático: imagens e palavras” contribuiu para expandir o conceito da formação escolar centralizada na fala do professor e nas paredes da sala de aula. Ocupar espaços e validar os aparatos tecnológicos como ferramenta de ensino colocaram o estudante em seu papel de protagonista.
Quando relacionado com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), é possível traçar aproximações, como quando é esperado para os anos finais desenvolver habilidades que integram as artes visuais, audiovisuais, gráficas, cenográficas etc. O diálogo, a exploração e a experimentação de processos criativos como meios de criações individuais e coletivas, discutindo contextos e problemas da sociedade, trazem para a prática aquilo que é descrito pelos documentos e por vezes não se materializam.
A linguagem performática sempre me pareceu um lugar de estranheza, na qual não me vinculava como espectadora ou como professora. Sendo assim, fazer a viagem do conhecimento ao mesmo tempo em que os estudantes permitiram um atravessamento estético que deu mais sentido ao trabalho.
Camila Josefa Nunes Rossato foi uma das 10 vencedoras do Prêmio Educador Nota 10 de 2020 com o projeto “Corpo performático: imagens e palavras”.