“Motoca na Praça” mostra diversas formas de aprender com o território

Vencedora do Prêmio Educador Nota 10 na categoria Direitos Humanos, a professora Lívia Arruda leva crianças para explorar o entorno da escola e se aproximar da comunidade local

Um grupo de crianças entre 4 e 5 anos, vestindo coletes de identificação na cor verde, pedalam em motocas em frente ao Theatro Municipal de São Paulo durante um dia ensolarado, com duas professoras à frente. Fim da descrição.
Turma da professora Lívia pedala em frente ao Theatro Municipal. Crédito: Acervo Pessoal/ Lívia Arruda



Imagine um espaço público que, além de servir diariamente como passagem para centenas de pessoas e ser palco de manifestações políticas, culturais e sociais, também é território de crianças de quatro a cinco anos que, pelo menos uma vez por semana, passeiam de triciclo por lá. Assim é a Praça da República, um dos principais pontos turísticos do centro de São Paulo. Apesar da intensa movimentação diária, o que muita gente não sabe é que ali funciona uma escola de educação infantil, a EMEI Armando de Arruda Pereira, que atende cerca de 370 crianças de 20 nacionalidades, moradoras da região.
 

A invisibilidade foi um dos motivos que inspiraram a professora Lívia Guimarães Arruda a criar, em 2019, o projeto Motoca na Praça: andanças e aventuras de triciclo pela Praça da República e centro de São Paulo. “A ideia era aproximar as crianças do entorno da praça de forma contínua e, com isso, quebrar preconceitos, transformar o espaço e dar mais visibilidade às crianças e à escola”, explica ela, que foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10 deste ano na categoria Direitos Humanos. 

O projeto, porém, foi além. A iniciativa, também reconhecida pelo Prêmio Territórios, promovido pelo Instituto Tomie Ohtake, e pelo Prêmio Paulo Freire de Qualidade do Ensino Municipal, da Câmara de São Paulo, permitiu que as turmas, ao ultrapassarem os muros da escola, acessassem diversas formas de aprender com e no território, exercendo o direito delas à cidade.

O eu, o outro e o nós: visibilidade

“A gente quebra preconceitos, faz com que as crianças sejam enxergadas e que o ato de educar fora do padrão esperado seja visto”, afirma Eni Pereira, diretora da escola. O vice-diretor, André Panachi, comenta que a região central tem estado cada vez mais degradada, com muitos problemas sociais, e que as crianças não tinham lugar nesse espaço. “Hoje, com as saídas de motoca, elas ocupam um espaço que é democraticamente delas e aprendem a cada nova experiência. Por isso dizemos aqui que não são apenas passeios, são uma ocupação do centro, são aulas de cidadania sem janelas.” 

Para Sandra Medrano, selecionadora do projeto no Prêmio Educador Nota 10, garantir o direito à cidade é importante para que as crianças possam se sentir realmente cidadãs e habitantes desse espaço. Ela argumenta que o Motoca na Praça inova ao propor, com intencionalidade pedagógica, uma ação que deveria ser uma prática, mas não é: dar a oportunidade de as crianças conviverem com as pessoas da comunidade do entorno da escola, habitar e fazer uso dos espaços públicos.   

“Infelizmente as cidades e a organização social contemporâneas fazem com que essas atitudes e práticas não sejam naturais e nem tranquilas. São desafios que precisam ser enfrentados para que, quem sabe num futuro próximo, isso se torne menos inovador e mais uma ação de garantia de direitos das crianças em seu desenvolvimento”, afirma Sandra, que também é coordenadora pedagógica do Colégio Santa Cruz e da Comunidade Educativa CEDAC. 

Motoca na prática: quando a infância ganha espaço 

Antes do projeto, as saídas a pé já faziam parte da rotina da escola. “A pé nós tínhamos um tipo de cerceamento, porque as crianças sempre tinham de estar de mãos dadas com alguém e geralmente em fila”, lembra Lívia. Com a chegada das motocas, os pequenos ganharam mais liberdade e oportunidade para construir autonomia.  

O primeiro passo com cada turma é, dentro do pátio da escola, ensiná-las a usar os triciclos. Depois começam os passeios curtos que podem ficar mais longos conforme o desenvolvimento das atividades e o avanço das crianças na conquista da autonomia.   

Hoje, os passeios acontecem semanalmente. Desde o início da atividade, as crianças são acompanhadas de perto, seja para chamar a atenção delas para o trajeto ou para os demais colegas, ou para dar orientações sobre pedalar, ajudando-os a ajustar a direção do triciclo ou a força utilizada, por exemplo.   

Um menino entre 4 e 5 anos de idade empurra um carrinho adaptado onde está outro menino. Eles passeiam em uma praça. Fim da descrição.
Escola conta com carrinhos de passeio com encosto e cinto para as crianças com deficiência física. Crédito: Acervo pessoal/Lívia Arruda

Para garantir a participação plena e segura de todos, dois pontos são importantes: identificar crianças e adultos por meio do uso de coletes com o nome da escola e definir o número de adultos que vai acompanhar a atividade considerando o tamanho do grupo de crianças. O objetivo é contemplar as necessidades de cada criança, respeitando o tempo e o ritmo dela.  

A escola também conta com carrinhos de passeio com encosto e cinto para as crianças com deficiência física, sejam elas usuárias de cadeiras de rodas ou com mobilidade reduzida. Segundo a professora Lívia, os carrinhos adaptados foram comprados pela própria escola pensando na inclusão de crianças cadeirantes, mas, com o tempo, outras acabaram sendo beneficiadas, especialmente as que têm Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). 

“Percebemos que o carrinho nos ajudou com crianças que se distraíam mais ou que sentiam que pedalar era muito cansativo, e também com crianças com Síndrome de Down. Mas, nesses casos, o uso do carrinho é temporário, porque a ideia é que elas, aos poucos, se sintam seguras e confortáveis para utilizar as motocas”, diz.  

Aprendizado também para famílias e comunidade

Sandra frisa que a proposta de Livia é ousada, pois possibilita uma ampliação dos espaços de aprendizagem, interação social com outros adultos, além da equipe escolar, e acesso à cultura, ao lazer e à história. Isso porque o projeto garante às crianças, e a muitas pela primeira vez, idas a equipamentos culturais situados nos arredores da escola, como Theatro Municipal de São Paulo, Edifício Copan, Biblioteca Mário de Andrade, Sesc 24 de Maio, Viaduto do Chá e Vale do Anhangabaú. Nesses momentos das visitas, o que não falta é interação com quem está na rua, sejam moradores da região, trabalhadores ou transeuntes.  

“Uma das cenas mais marcantes para mim foi um dia em que encontramos um senhor em situação de rua que se emocionou com o ‘bom dia’ das crianças”, relembra a professora Ivone Moreira, parceira de Lívia desde os primeiros meses do projeto. “Ele ficou tão feliz que pediu para tirar uma foto com as crianças. Então tivemos a ideia de imprimir a fotografia e lhe dar de presente. Quando segurou a impressão, ele chorou de alegria, pois se sentiu visto”, recorda a educadora. “Essas vivências colaboram muito com o desenvolvimento da percepção de mundo e da empatia das crianças”, acrescenta. “A professora demonstra muita clareza em relação à responsabilidade da formação integral das crianças”, completa Sandra. 

Como está situada no centro da cidade, a unidade atende crianças de diversas nacionalidades, como Angola, Bolívia, Congo, Equador, Moçambique, Paraguai, Peru e Venezuela, dentre outros países, uma vez que muitas famílias de imigrantes vivem em ocupações e hotéis sociais dessa região enquanto buscam se estabelecer no Brasil. “Para essas crianças, o projeto é ainda mais especial, porque muitas estão chegando agora no país, se apropriando de um espaço completamente novo que também é delas. Então, esse também é um trabalho de acolhimento”, comenta André.  

 “Um ponto de destaque é que os envolvidos no projeto compreendem que há troca, uma dupla colaboração na proposta: de um lado, a formação das crianças e, do outro, a ação delas impactando o dia a dia das famílias e da comunidade do entorno”, observa a selecionadora. Exemplo disso é o movimento de negociação e de preparo que precisou ser feito em muitos dos locais visitados pelas turmas, desde pensar como estacionar as motocas até orientar as equipes dos estabelecimentos sobre como recepcionar crianças. Da parte das professoras, há também um cuidado anterior de fazer o trajeto para mapear obstáculos e pontos de atenção.  

Um grupo de crianças entre 4 e 5 anos, vestindo coletes de identificação na cor verde, pedala pelo centro de São Paulo em motocas e interagem com os garis que trabalham na rua. Fim da descrição.
Projeto possibilita maior interação social com outros adultos além da equipe escolar. Crédito: Acervo pessoal/Lívia Arruda

Na casa dos pequenos também há desdobramentos. “As famílias relatam que os equipamentos culturais visitados pelas crianças nas saídas com a escola passam a fazer parte dos passeios de final de semana delas, tornando o convívio com a comunidade mais intenso”, acrescenta Sandra.   

E nada disso poderia ser diferente, já que sair de motoca é um dos momentos favoritos das crianças. “Passear de motoca é a minha coisa preferida na escola, porque é muito legal. É tipo passear com seu pai, sua mãe, sua família, e eu me sinto muito feliz”, conta Wellandy César Silva de Lima, de cinco anos. “Eu gostei também de dar chazinho pela rua, as pessoas gostaram muito”, lembra o menino, se referindo a uma das ações de distribuição de chá quente para pessoas que dormiam ou passavam pela Praça da República em um dia frio. Em outras saídas houve, ainda, a distribuição de água gelada em dias quentes, de flores e de desenhos feitos pelas crianças.  

Espaço, tempo e observação

Quatro crianças entre 4 e 5 anos de idade observam o entorno da Praça da República, em São Paulo, e desenham sentados em suas motocas. Fim da descrição.
Passeios contam com momentos de observação e reflexão sobre o que há no entorno. Crédito: Camila Cecílio

O contato das crianças com as regiões próximas à escola é potencializado por momentos de pausa quando elas são convidadas a parar com as motocas em um determinado ponto e observar ao redor para, em seguida, produzir um desenho ou conversar com os professores sobre o que foi percebido. “Essas observações da praça e de seu entorno, com prédios, natureza e pessoas, são justamente para as crianças olharem e refletirem sobre o que tem aqui: o que é bonito, o que é legal, o que é problema. Muitas vezes surgem dúvidas específicas, então a gente trabalha a partir da curiosidade que elas trazem sobre os temas”, explica Lívia, pontuando que essas conversas também alimentam o planejamento de atividades em sala.

Como desenvolver o projeto em outros contextos

Observar o entorno da escola para se relacionar com o território. Para Lívia, esse é o ponto de partida para desenvolver o projeto em outros contextos e realidades. “No nosso caso, estamos em uma região com diversos equipamentos culturais, mas também de muita vulnerabilidade social, e isso poderia ter sido um problema. Cada lugar terá seus desafios, mas acredito que, com o apoio dos colegas e da gestão, é possível colocar a ideia em prática”, ressalta a professora.   

Sandra acrescenta que é fundamental ter clareza sobre o que se proporciona de aprendizagem às crianças nesse convívio ampliado com o entorno da escola, a possibilidade de se apropriarem dos espaços e a observação de seu funcionamento. “É importante que essas ações estejam em consonância com o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola para que, dessa maneira, não se torne a ação individual de um profissional, mas seja uma intenção educativa da equipe de educadores da escola, em função do propósito pedagógico compartilhado em direção à garantia dos direitos das crianças”, completa. Foi o que ocorreu na EMEI Armando de Arruda Pereira. Ou seja, a iniciativa entrou no PPP e se tornou parte da rotina da escola, e não apenas um evento esporádico. Tanto é que, no último ano, a professora Lívia esteve de licença maternidade e as atividades com as motocas continuaram.  

Uma menina entre 4 e 5 anos de idade entrega flores a um homem em situação de rua na Praça da República, em São Paulo. Fim da descrição.
Vivências colaboram com o desenvolvimento da percepção de mundo e da empatia das crianças. Crédito: Acervo pessoal/Lívia Arruda

Para Lívia, o maior desafio do projeto foi mobilizar outros colegas da escola. “É uma iniciativa que exige uma grande mobilização interna, então você precisa, em primeira análise, convencer as pessoas a irem com você. Depois, há o desafio de fazer com que entendam o objetivo do projeto para que desejem estar presentes nas saídas. E, claro, contar com o apoio da própria gestão, que é essencial para o sucesso da proposta”.  


Como o projeto dialoga com a BNCC

O Motoca na Praça aposta no desenvolvimento da autonomia desde cedo, propósito que dialoga com os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento da educação infantil, como indica a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Nesse sentido, é fundamental que as crianças sejam incentivadas a “agir de maneira independente, com confiança em suas capacidades, reconhecendo suas conquistas e limitações”.

As ações do projeto condizem com as habilidades EI03EF01 e EI03ET04 da BNCC, que, respectivamente, dizem respeito à expressão de ideias, desejos e sentimentos sobre suas vivências, por meio das linguagens oral e escrita (escrita espontânea), de fotos, desenhos e outras formas de expressão, bem como ao registro de observações usando múltiplas linguagens, em diferentes suportes.  

Além disso, a iniciativa contempla aprendizagens relacionadas aos cinco campos de experiência da BNCC da Educação Infantil, tais como:  

  • Estabelecer relações interpessoais saudáveis;
  • Desenvolver habilidades motoras, como coordenação e equilíbrio;
  • Expressar-se por meio de gestos e movimentos;
  • Explorar diferentes materiais e expressar-se artisticamente;
  • Desenvolver a percepção visual e auditiva;
  • Compreender as características de objetos e elementos do mundo;
  • Desenvolver a linguagem oral;
  • Ampliar o vocabulário e a capacidade de se expressar;
  • Estimular a imaginação e o pensamento lógico;
  • Explorar o ambiente ao seu redor;
  • Desenvolver noções de tempo e espaço.

Publicado originalmente em 28/08/2023 e atualizado em 14/12/2023 para incluir novas informações.

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