Eleições 2024: como dar prioridade às crianças e aos adolescentes?

Agenda 227, composta por 452 organizações, entre as quais o Instituto Rodrigo Mendes, lança documento com diretrizes para orientar políticas públicas municipais comprometidas com a efetivação de direitos

Abraçados, quatro crianças, sendo duas meninas e dois meninos, posam e sorriem para foto. Eles estão em uma área aberta com gramado. Fim da descrição.
Crédito: Freepik

Toda criança e adolescente têm direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de estar a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Tornar todos esses direitos, previstos no artigo 227 da Constituição Federal, uma pauta prioritária no debate das eleições municipais de 2024 é o desafio assumido pela Agenda 227. Para isso, o movimento, que reúne 452 organizações signatárias, entre as quais o Instituto Rodrigo Mendes (IRM), lançou nesta semana o documento Prioridade Absoluta nas Eleições 2024 Diretrizes para uma Gestão Municipal Comprometida com a Infância e a Adolescência”. 

O foco nas eleições municipais é necessário, como indicado no documento, porque “é nos diferentes territórios que a vida acontece e onde as populações estabelecem vínculos e uma complexa teia de trocas econômicas e simbólicas. É também onde o acesso aos serviços públicos efetivamente se materializa, cabendo à municipalidade a prerrogativa de dispor sobre temas essenciais para o bem-estar da comunidade, como o acesso à educação infantil e ao ensino fundamental, a oferta de serviços em saúde e as políticas de preservação ambiental, de planejamento urbano e de saneamento básico, entre tantas outras”. 

Segundo Renato Godoy, gerente de relações governamentais do Instituto Alana e membro-executivo da Agenda, o movimento entende as eleições como um espaço de debate amplo na sociedade brasileira, mas deseja incidir de forma perene nas políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes. “Depois das eleições de 2022 [quando a Agenda 227 apresentou o “Plano País para a Infância e a Adolescência”], nós continuamos estabelecendo um diálogo com o governo federal, e agora seguiremos debatendo com as candidaturas tanto nas capitais quanto nas cidades do interior”, explica. 

O documento foi elaborado a partir de um esforço coletivo de três grupos de trabalho da Agenda 227, que se debruçaram para analisar e propor ações que visem efetivar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Artigo 227 da Constituição Federal [que prevê a prioridade absoluta dos interesses de crianças e adolescentes], o Marco Legal da Primeira Infância e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Ao todo, foram elaboradas diretrizes para 22 temáticas, que dialogam com a proposta do Plano País, apresentada em 2022. 

Segundo Renato, a Frente Parlamentar Mista da Criança e do Adolescente da Câmara dos Deputados já tem utilizado as 137 propostas do “Plano País” como ferramenta norteadora, o que motiva a Agenda 227 “a desenvolver um processo contínuo de advocacy e de incidência junto aos poderes Legislativo e Executivo para fazer valer esse trabalho também no processo eleitoral municipal”, diz. 

Desafios da educação inclusiva 

Para Karolyne Ferreira, especialista da área de Advocacy do IRM, dentre as temáticas defendidas no documento “Prioridade Absoluta nas Eleições 2024”, merecem destaque aquelas que envolvem educação e pessoas com deficiência.  

“A escola é um espaço para a formação de uma sociedade mais justa e democrática. Para além disso, as pessoas com deficiência foram impedidas de estudar e frequentar as escolas comuns durante muito tempo. Ao acolher as diferenças, a escola está valorizando a sociedade como um todo, no sentido mais amplo, pois isso representa o que a gente encontra nas ruas  pessoas diferentes e com suas particularidades”, afirma Karolyne.   

Carla Mauch, coordenadora do GT 7 de Inclusão da Agenda 227 e coordenadora-geral do Mais Diferenças, afirma que, com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (13.146/2015), o Brasil conquistou avanços em relação ao tempo que demorou para assumir que o direito à educação de todos os estudantes fosse entendido como uma prioridade absoluta. “No entanto, é importante salientar que tivemos retrocessos nos últimos anos, como a tentativa de retomar as escolas especiais e o modelo médico interferindo nas pautas escolares e nas questões pedagógicas. Ou seja, esse direito e a efetivação dele ainda são muito frágeis na perspectiva de implementação das políticas públicas”, explica.  

Ela reforça que as pessoas com deficiência seguem convivendo com o capacitismo, termo utilizado para expressar a discriminação por motivo de deficiência (leia reportagem sobre o assunto), e afirma que continuam existindo barreiras, principalmente nos processos de aprendizagem, que impedem a plena participação desses estudantes.   

“Temos uma demanda reprimida, de quase inexistência dos materiais pedagógicos acessíveis em múltiplos formatos. Há outra demanda em relação à formação continuada dos professores, e é importante que se pense sobre elas, pois muitas ainda estão pautadas no modelo médico da deficiência, de uma perspectiva de reabilitação, sem valorizar a heterogeneidade e as múltiplas formas de aprender e de ensinar”, completa a coordenadora.  

A visão médica da deficiência foi superada pelo modelo social, que norteia a legislação atual. No modelo social, o foco não está na pessoa e em suas características, e sim nas diversas barreiras — atitudinais, arquitetônicas, de comunicação, tecnológicas etc. — existentes na sociedade e que criam impedimentos para que a pessoa com deficiência se desenvolva e expresse seus potenciais. 

Para Carla, o problema da acessibilidade arquitetônica, que envolve o uso da infraestrutura, com materiais pedagógicos adequados e acesso à tecnologia assistiva, também é latente. “Muitas vezes o processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças não é garantido porque não se dão as condições, porque continuamos criando barreiras [em vez de eliminá-las] para que elas possam se desenvolver de forma plena e integral, a partir das suas potencialidades”, diz.  

Propostas da Agenda 227 para a inclusão 

Com o documento “Prioridade Absoluta nas Eleições 2024”, a Agenda 227 pretende contribuir com a criação de planos para as gestões municipais que “assegurem o direito a uma educação de qualidade desde a creche a partir de políticas de acesso, permanência, qualidade e financiamento adequado, de acordo com o previsto na Constituição Federal e normatizado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e pelo Plano Municipal de Educação”. 

Algumas das propostas do grupo são: 

  • Garantir a totalidade de matrículas em escolas comuns da rede municipal a estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento/transtorno do espectro do autismo (TEA) e altas habilidades/superdotação; 
  • Criar e fortalecer programas intersetoriais de busca ativa escolar e de apoio à permanência de crianças e adolescentes com deficiência na escola; 
  • Implementar planos de acessibilidade (física, comunicacional e atitudinal) e inclusão nos diferentes equipamentos e espaços de programas culturais, de esporte e de lazer, favorecendo a convivência e a interação entre crianças com e sem deficiência; 
  • Políticas de valorização e formação continuada dos profissionais da educação, gestão e infraestrutura; 
  • Políticas de educação integral, inclusiva, do campo e de equidade racial e de gênero, com a implementação da Lei 10.639/2003 na rede municipal de educação. 

Para Deisiana Paes, coordenadora da Defesa e Garantia de Direitos do Instituto Jô Clemente e membro do GT de Inclusão da Agenda 227, o comprometimento público dos candidatos com as diretrizes da Agenda 227 para a educação inclusiva demonstra responsabilidade com o desenvolvimento local: “Sinaliza o compromisso com a ODS 4, presente na Agenda 2030 da ONU, que se trata de não deixar ninguém para trás e promover, de maneira equitativa e com qualidade, oportunidades de aprendizagem para todos ao longo da vida”. 

Além disso, a coordenadora reforça que a mobilização não termina com o final das eleições e que, para tirar as propostas do papel, é necessário ampliar o conhecimento sobre o “chão da escola”, as necessidades e as angústias dos profissionais da educação, assim como sua maior valorização. “Para que os direitos das crianças e dos adolescentes sejam garantidos, é preciso sair do discurso político e transformá-lo em ações orçamentárias”, diz Deisiana.  

Por fim, Carla considera que a participação da sociedade civil, organizada por meio dos conselhos de defesa dos direitos, é fundamental e precisa ser atuante. “Nós estamos falando de políticas de Estado, então é necessário seguir monitorando as ações e apoiando as gestões municipais para eliminar as discriminações e diminuir as desigualdades que persistem no país”, conclui. 

Dados apontam necessidade de avanços 

A implementação de políticas públicas que garantam plenos direitos às crianças e adolescentes visando a superação das desigualdades educacionais deve estar entre as prioridades das propostas dos candidatos nas próximas eleições municipais. Confira a seguir alguns dos desafios:

Gerais:

  • De acordo com o Censo Escolar 2023, apenas 36,7% de escolas municipais têm acesso à internet. Em termos de recursos tecnológicos, a lousa digital está presente em somente 12,5% das unidades de ensino; 58,8% têm projetor multimídia e 39,6% computador de mesa ou portátil (34,8%) para os alunos;
  • De acordo com o Inep, 53,4% das escolas municipais de educação infantil não contavam com banheiro adequado para as crianças, enquanto nas escolas particulares esse índice era de apenas 15,2%;
  • Há brinquedos para a educação infantil em 65,9% das escolas municipais, enquanto nas instituições privadas esse número chega a 93%. A rede municipal também está em desvantagem na comparação da existência de jogos educativos (79,5% a 90,8%) e de materiais para atividades culturais e artísticas (31,9% a 65,4%), segundo informações do Inep;
  • Somente 23% das escolas municipais possuem biblioteca, de acordo com o Censo Escolar de 2023.

Educação especial:

  • Em 2022, mais de 50 mil professores atuavam no AEE em toda a educação básica no Brasil, segundo o Painel de Indicadores da Educação Especial, iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), em parceria com o Instituto Unibanco e com apoio do Centro Lemann. No entanto, desses, apenas 44,3% indicam ter participado de alguma formação continuada em educação especial; Dentre os professores regentes, apenas 5,8% apontaram terem formação específica;
  • Das 178.346 escolas de educação básica do país, somente 38.314 têm sala de recursos multifuncionais, o que representa 21,5%, segundo informações do Painel de Indicadores da Educação Especial. 

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